Por Lejeune Mirhan
Lejeune
Mirhan é sociólogo, escritor e arabista. Foi professor de
Sociologia da Unimep entre 1986 e 2006. Presidiu o Sindicato dos Sociólogos de
SP de 2007 a 2010.
Lejeune Mirhan |
Na última semana,
como nunca antes havíamos visto, na Síria trava-se uma guerra completamente
distinta dos campos de batalha: uma guerra de informações. Sem disparar tiros de
canhões, mas uma guerra tão ou ainda mais perigosa que a convencional. Fala-se
na “mãe de todas as batalhas”.
Fala-se em
“combates mortais” em Damasco e Aleppo, a segunda maior cidade. Até o Estadão e
a Folha enviaram repórteres para apoiar o levante “rebelde”. Não se tem certeza
de tantas coisas sobre o futuro deste que é o mais antigo país do mundo árabe.
Mas, qualquer que seja o destino do atual presidente, é preciso que deixemos
registrado pelo menos algumas certezas.
Até quando o governo
Assad resistirá?
Desde março de 2011,
na onda do que a grande imprensa vem chamando de “Primavera Árabe” – não gosto e
nunca gostei desse termo – também a Síria vem presenciando levantes que
pretendem derrubar o seu presidente legitimo e constitucionalmente eleito, o
médico Dr. Bashar El Assad. A imprensa nunca o chama dessa forma. Refere-se a
ele como “ditador”. E sabemos que a cobertura dessa “grande” imprensa e sua
indignação é completamente seletiva. Nunca chamou Hosni Mubarak de ditador do
Egito, ainda que ele tenha sido por 30 anos. Sempre foi amigo dos EUA. Tratava-o
de “presidente” Mubarak. A mesma coisa com os ditadores depostos pelas massas
árabes da Tunísia e Iêmen. Em ambos os casos, até pouco antes de caírem, eram
tratados de “presidentes”.
Já publiquei muitos
artigos nestes quase um ano e meio de levantes e revoltas na Síria. Apontei,
citando estudiosos e analistas internacionais de maior renome, que a situação na
Síria em nada tem a ver com a de outros países árabes, cujos levantes são
justos. Também já tratamos do fato que o caráter e o conteúdo de classe de um
governo e de um estado não são dados apenas pela forma como ele é escolhido. A
apologia que se faz ao voto direto é absurda. Ao acaso os governos que emergiram
das revoluções russa, em 1917, chinesa em 1949 e cubana em 1959 podem ser
tratados de antidemocráticos? Qual o padrão e o parâmetro com que devem ser
comparados? Com a democracia burguesa estadunidense?
Multidão reunida em Damasco em apoio a Bashar al-Assad |
O que dá o caráter
de classe e o conteúdo de um governo e de um estado são as tarefas que ele
assume perante o seu povo, perante a maioria de sua população. Seu projeto
político, sua plataforma, seu programa de ação. Como ele se posiciona no cenário
internacional, ao lado de que países e de que campos políticos ele se
coloca.
Quanto a isso nunca
restou dúvidas sobre a Síria. É o último governo laico e republicano que restou
em todo o Oriente Médio. Uma região completamente dominada pelos Estados Unidos,
que fincaram bases em quase todas as monarquias árabes do Golfo Pérsico-Arábico,
em especial
Kuwait , Arábia Saudita, Bahrein (onde esta baseada a 4ª Frota
dos EUA) e Qatar. Onde não conseguia fincar base militar, acabou por invadir,
derrubar e assassinar seus presidentes, como foi no caso do Iraque com Saddam
Hussein e na Líbia com Muammar Kadafi.
A própria Liga dos
Estados Árabes hoje é instrumento tanto dos EUA, quanto das monarquias feudais
do Golfo e à serviço do sionismo. E nisso, os norte-americanos não cochilam.
Tudo fazem para proteger Israel e essa é a questão central. Além da ajuda anual
de três bilhões de dólares que faz parte do orçamento aprovado pelo Congresso
dos EUA, diversas outras formas de ajuda e proteção são ofertadas pela potência
imperial aos sionistas. Por isso relutaram até o último dia para abrir mão de
seu histórico aliado no Egito. Praticamente morreram abraçados ao ditador
Mubarak. Chegaram a fazer acordos inconfessáveis até com a Irmandade Muçulmana,
antes execrada, mas agora aliada dos EUA, para que os nasseristas não ganhassem
as eleições no Egito (acabaram ficando em terceiro lugar no primeiro
turno).
Agora, é preciso
ocupar a Síria. É preciso mudar o regime de qualquer forma. E não se trata aqui
de defender a democracia. Esse país árabe de 22 milhões de habitantes, mesmo sem
ter petróleo algum, é o maior incômodo para a política estadunidense na região e
para Israel. Uma pedra no sapato do imperialismo. O governo Bashar em um ano
legalizou dezenas de partidos políticos. Televisões e jornais funcionam
amplamente, sem nenhuma censura. Uma nova constituição foi escrita, mantendo a
laicidade do Estado sírio. E a população foi ás urnas referendá-la com quase 90%
de aprovação, mesmo com o boicote da oposição armada (há outra oposição que
participa da política, da mesa nacional de diálogo, que legalizou seus partidos
e que é contra o levante armado para derrubar o governo e nunca pede que
potências estrangeiras ataquem o país). E, finalmente, um novo parlamento foi
eleito e já tomou posse em fevereiro, com 12 partidos que elegeram
parlamentares. Eleições limpas, diretas, democráticas.
Que mais querem os
EUA? Querem tirar o presidente Bashar. Mas não é porque ele é um “ditador”. Os
norte-americanos têm amigos ditadores em todo o mundo. Bashar incomoda
exatamente por isso: ele não é amigo do império do Norte. Ao contrário. Ele
forma com outro campo, com outro eixo, a que o Departamento de Estado chama de
“Eixo do Mal” (sic). Esse campo combate a ocupação estadunidense do Oriente
Médio. Esse campo defende a Palestina para os palestinos e isso gera profundas
contradições com os sionistas e os israelenses. Esse campo faz aliança com o
Irã, o maior demônio que a mídia inventou nos dias atuais. Nesse eixo ainda tem
espaço para o Líbano e o Iraque. Os grupos Hezbolláh, a quem a imprensa chama de
“terrorista” (sic) e a maior parte dos grupos da resistência
palestina.
Mas, mais do que
isso, a Síria hoje soma com a China e a Rússia. Essas duas potências, com
assento no CS da ONU, já vetaram três resoluções dede 4 de fevereiro, que
tentavam impor mais sanções à Síria, mas que, na prática, abririam espaço para
uma intervenção armada externa, até com forças da OTAN.
Ainda assim, fica a
pergunta: até quando o governo do presidente da Síria vai resistir? Aqui,
rigorosamente, é uma pergunta que poucos têm a resposta. Poderia resistir ainda
por muito tempo, a depender de fatores diversos que veremos a seguir. Ou, acabar
caindo, cedendo lugar para novas forças e grupos políticos ascenderem ao poder
central do país, levando a Síria a um rumo completamente imprevisível no momento
atual.
Que certezas nos
restam sobre a Síria?
Se por um lado não
há certezas sobre o destino do governo e do presidente Bashar Al Assad, quais
certezas nos restam nesse momento crítico que vivemos? Resumo a seguir as minhas
principais certezas pessoais.
3. Os EUA apoiam a
derrubada de Bashar não por ele ser um “ditador”, mas por ser inimigo dos EUA –
Aqui, qualquer que venha a ser o desfecho, essa é uma certeza que temos: se
Bashar fosse amigo dos EUA e de Israel, se não apoiasse a causa palestina com
firmeza, jamais existiria esse movimento, essa onda forte contra ele que
presenciamos na atualidade;
5. O Exército “Livre”
da Síria é a OTAN dentro do país – Claro que a imprensa nunca falaria isso, mas
quem arma, treina e financia esse grupo de mercenários estrangeiros que age na
Síria é a OTAN, braço armado do imperialismo estadunidense, francês e britânico.
São apoiados financeiramente pelas monarquias do Golfo e tem apoio tácito do
setor de inteligência de Israel;
8. Salafistas e os
sunitas da Irmandade Muçulmana sonham com novo Califado na Região – Também aqui
está claro. E são fortes essas correntes. Ficaram adormecidas em várias
localidades, em especial no Iraque e na Síria, mas agora colocam suas forças às
claras e estimulados pelo imperialismo para enfraquecer o setor mais
progressista das sociedades árabes, em geral laicos e de esquerda. Esse pessoal
sonha com um Califado Árabe, na sua essência conservador e fundamentalista, com
a sharia como seu primado;
9. O problema no OM não
é religioso, mas político – Apesar da força dos sunitas que menciono acima, a
divergência não é religiosa, mas essencialmente política. Existem lutadores
antiimperialistas na Síria que são sunitas, xiitas, alawitas, drusos, maronitas,
cristãos ou ateus. Tais pessoas sabem exatamente quem são seus inimigos
principais. A imprensa e a mídia-empresa ocidental insistem em apresentar o
problema como sendo religioso, de lutas de facções muçulmanas, de cristãos e
judeus contra muçulmanos. Existem sim, não negamos, componentes religiosos, mas
essa não é a questão central;
10. Certa esquerda no
Brasil e no mundo insiste em aliar-se ao imperialismo – Não preciso nominar, dar
nome aos bois como se diz. Sabemos quem são. Certas pessoas que posam de
esquerdistas e alguns de ultraesquerdistas, seguem afirmando que o que vem
ocorrendo na Síria é uma “revolução popular” (sic). Quanta ingenuidade. Ou seria
mesmo aliança aberta com o imperialismo? Só a história nos dirá. O que lamento
profundamente é presenciar todos os dias, em redes sociais, em clubes sírios, em
artigos postados em páginas na Internet, pessoas autoproclamadas de “esquerda”
fazer eco de suas vozes com as do império norte-americano.
Lamentável.
Este artigo não é
conclusivo. De fato, quando lemos as páginas internacionais comprometidas na
luta anti-imperialista, entendemos a real situação na Síria, o que lá esta em
jogo, quais forças estão em disputa na batalha que se trava. No campo das ideias
e no chão sírio.
Pessoalmente, sinto
falta de uma reação da verdadeira esquerda no país. Em solidariedade ao povo
sírio. Em defesa da soberania do país. Não se trata aqui de apoiar e defender o
governo. Trata-se de defender que a solução para a Síria deve ser encontrada
pelos sírios e não pelas potências estrangeiras. Deveríamos pensar em organizar
um ato que diga alto e em bom som: Fora Imperialismo da síria e do Oriente
Médio! OTAN, Tirem suas patas da Síria!
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