25/7/2012, Dmitry
Shlapentokh, Asia Times Online
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Dmitry Shlapentokh |
Washington está
visivelmente incomodada com a intransigência de Pequim e Moscou no que tenha a
ver com a crise síria e a pouca disposição que os dois países mostram, de querer
ajudar a justificar ataque direto dos EUA contra o presidente Bashar al-Assad
com autorização da ONU. Representantes dos EUA na ONU descreveram vividamente a
brutalidade do regime de Assad, em apelo à moral da “comunidade internacional” e
mais ainda, é claro, de China e Rússia.
Nada consegue
alterar a posição dos governos desses dois países, e por inúmeras razões. A
primeira dessas razões é que não há indignação moral, vinda de Washington, que
resista ao teste da história. Washington foi amiga solidária de Josef Stalin,
Augusto Pinochet e do Xá do Irã. Washington já demonstrou que não há preconceito
ou crime capaz de alterar sua rota, quando a questão são os seus programas
geopolíticos. Washington é capaz de conviver e prestigiar ditadores de direita e
ditadores de esquerda. Washington nada fez para impedir o início nem o
prosseguimento de vários genocídios: do holocausto dos judeus aos massacres de
Rwanda.
Mas,
simultaneamente, ninguém deve supor que Washington não tenha amigos e aliados
estrangeiros vários nessa sua aventura síria. Um desses aliados, que poucos se
lembrariam de listar é o Kavkaz Center, principal página de Internet e veículo
de contato entre os jihadis do Cáucaso Norte, na Rússia.
Recentemente, Moscou intensificou esforços contra essa página, mas o Kavkaz
conseguiu safar-se e continua a operar como blog. Os que militam no Kavkaz
Center elogiam as boas almas que lutam contra Assad; nas entrelinhas dos
elogios, pregam todos os tipos de ações e esforços para derrubar o governo de
Assad.
Não é caso
isolado. Autoridades do Iraque também informaram que está havendo fluxo
constante de jihadis direção à Síria, para unirem-se na luta contra
Assad. Não só elogiam a pressão que os EUA fazem contra Assad, mas até pregam e
elogiam o envolvimento direto dos EUA nos assuntos da Síria. Implicitamente,
pregam entusiasticamente também o confronto contra o Irã. Na verdade, tudo se
passa como se o objetivo final de todas essas discussões fosse mesmo um ataque
contra o Irã. Mas, por mais que preguem o imediato e total envolvimento dos EUA
nos ataques ao governo de Assad, esses
jihadis mantêm-se,
simultaneamente, como inimigos figadais dos EUA.
Logo depois dos
ataques de 11/9, o Kavkaz Center publicou artigo do russo Pavel Kosolapov,
islamista converso – ou de alguém que usou esse nome – no qual os
norte-americanos eram apresentados como zumbis horrendos, imorais e infiéis, que
muito mereciam a dor pela qual passavam naquele momento. O artigo afirmava que
os mortos não eram alguns poucos milhares, mas dezenas, senão centenas de
milhares; e elogiava os que se haviam mostrado capazes de demonstrar ao mundo o
quanto podia ser fácil desmoralizar e praticamente destruir uma super potência,
bastando para tanto mobilizar um punhado de inteligentes e abnegados heróis
da Jihad islâmica.
Pode-se assumir
que essa posição dos jihadis, inclusive dos que estão combatendo hoje na
Síria, não é segredo para ninguém em Washington e, especialmente, não é segredo
para os conservadores, que exigem urgência absoluta no engajamento dos EUA.
Ninguém aí, é claro, está preocupado com ou dedicado a salvar vidas. Seu único
objetivo é destruir o “Obamacare” – e pouco lhes importa quantos milhares de
norte-americanos morram anualmente por falta de tratamento médico.
O único objetivo
que irmana todos esses “democratas” é enfraquecer o Irã. Porque o Irã, não a
Síria, a Rússia ou a China, é o principal problema geoestratégico que os EUA
enfrentam no Oriente Médio.
Mas até onde pode
levar tão estranha associação de incompatíveis? Analistas de fraque e cartola em
Washington – acompanhando, provavelmente o
dictum de Edward Luttwak,
historiador e estrategista norte-americano – creem que Washington pode(ria)
derrotar seus adversários, nessa espécie de jogo bizantino.
Para entender o
mais provável resultado dessa estratégia, é preciso deslocar-se para onde nasceu
o bizantinismo moderno, a Rússia. Ali se pode ver como, há quase um século,
desenrolaram-se eventos similares.
Vladimir Lênin,
marxista radical que floresceu no mundo político no início do século passado,
convencera-se de que massas satisfeitas jamais se levantariam para derrubar a
ordem capitalista global; entendia também firmemente que seu partido, o
Bolchevique, era fraco demais para combater diretamente contra o regime do czar,
cuja derrubada poderia levar à revolução mundial, a partir da qual as massas
poderiam estabelecer uma sociedade socialista ideal, global – que adiante se
tornaria comunista, e que lembra o califato global, objetivo pelo qual lutam
hoje os jihadis.
Na visão de Lênin,
os Bolcheviques, apenas um punhado de militantes no início do século 20, só
teriam sucesso em seu projeto político se os próprios imperialistas se
autodestruíssem ou, no mínimo, se se enfraquecessem eles mesmos. Sem qualquer
simpatia ou amizade pelo
kaiser alemão, Lênin
sonhava com um confronto entre Moscou e Berlin; na verdade, Lênin sonhava com
uma guerra global, para fazer avançar seu projeto revolucionário.
Mas não havia
grande guerra europeia à vista; as guerras napoleônicas, de havia quase cem
anos, já eram passado. E tudo fazia crer, se se pressupunha a sanidade mental
dos grandes líderes europeus, que nenhuma grande guerra houvesse à vista. As
armas haviam-se tornado destrutivas demais; grandes blocos em aliança
contrabalançavam, uns os outros. E os europeus haviam-se construído uma
comunidade tão integrada em termos políticos e econômicos, que só um marginal
louco como Friedrich Nietzsche, que antevia naquele momento um devastador banho
de sangue, acreditaria que os europeus, em pouco tempo, estariam envolvidos em
vastíssima guerra continental.
Lênin extravasou
sua frustração em carta a Maxim Gorky, afamado escritor russo radical. “Caro
Aleksei Maximovich”, escreveu Lênin em 1912 – usando, como é prática na Rússia e
em outros países, os prenomes do amigo – “a grande guerra europeia seria um
grande estopim para a revolução. Mas, infelizmente, nem Nesse [o
tzar Nicolau da Rússia] nem
Willy [o kaiser Wilhelm] nos
darão tal prazer”.
Verdade é que
Lênin (e não era o único) superestimava “Willy” e seus conselheiros. Esses –
como fazem hoje os neoconservadores em Washington – acreditavam que a guerra,
naquele momento, seria rápida como relâmpago (umablitzkrieg). Então,
“Willy”, aproveitando como pretexto o 11/9 que encontrou à mão (o assassinato do
arquiduque Franz Ferdinand da Áustria), inventou a I Guerra Mundial.
Mas a guerra não
seguiu o roteiro nem o cenário alemães. Há quase um século, os eventos tomaram
rumo muito semelhante ao que se vê acontecer hoje no Oriente Médio. A guerra
prevista para ser
blitzkrieg converteu-se
em longa e sangrenta guerra de atrito; os recursos da Alemanha foram incinerados
na guerra, numa versão europeia local do que já se vê no horizonte dos EUA: o
orçamento militar “sequestrou” todos os recursos da nação.
Com europeus
morrendo aos milhões, Lênin via confirmar-se o que previra: o sofrimento das
massas reforçou sofrimentos históricos antigos e tornou possível a revolução
comunista na Rússia. Berlim também observava os movimentos de Lênin e seus
seguidores e – exatamente como Washington faz hoje – supôs que seria fácil
manipular aqueles russos radicais para desestabilizar a situação na Rússia, o
que levaria a Alemanha à vitória.
Berlin então forneceu meios a Lênin e permitiu
que ele e alguns de seus companheiros radicais viajassem para a Rússia em “trens
blindados”, quando o Governo Provisório liberal, que emergira da revolução de
fevereiro-março de 1917, permitiu que voltassem à Rússia. Esses bolcheviques,
como a história ensina, levaram realmente a Rússia a uma nova revolução; e
puseram fim à guerra, com o que Lênin chamou de “o tratado obsceno” de
Brest-Litovsk.
Berlin, contudo,
não teve tempo para beneficiar-se dos frutos de seu estratagema. Os germes da
revolução leninista rapidamente se alastraram até a Alemanha e a nova revolução
empurrou para o fim a monarquia germânica. Poucas gerações adiante, herdeiros
espirituais e políticos de Lênin já entravam com seus tanques em Berlin.
Claro que a
história não se repete linha a linha e palavra a palavra, mas os eventos guardam
semelhanças estruturais. Os jihadis
– do norte do Cáucaso ao Oriente Médio – creem que o colapso de Assad e,
melhor ainda, a guerra contra o Irã, obterão o que a guerra dos EUA ao Iraque
não conseguiu: incendiar, não só o Oriente Médio, mas com o tempo, todo o
planeta. Esse é o cenário de sonho dos
jihadis.
Se acontecer,
porém, a maré já montante do terrorismo não atingirá só Moscou e Pequim,
inimigos que Washington definiu para ela mesma, mas também Jerusalém. Esse é o
motivo pelo qual o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu não dá sinais de
entusiasmo ante o espetáculo do massacre contra Assad.
Pois Washington
não dá sinais, sequer, de ouvir as vozes sóbrias que vêm de Jerusalém, não só
porque acredita que poderia calá-las facilmente, como no Egito de Hosni Mubarak,
apesar de todos os indícios contrários; não só, também, porque Washington
inventou que não será afetada pelo caos e pela maré montante do terrorismo e crê
firmemente em sua invenção; mas, também, pelas mudanças políticas pelas quais
passam os EUA.
À medida que as
dificuldades econômicas vão-se tornando evidentes demais para serem ignoradas,
as elites norte-americanas sentem que não só sua dominância econômica e
geopolítica escapa-lhe por entre os dedos em alta velocidade. Os EUA não são
mulher que envelheça com graça e prepare-se para um futuro – nesse caso uma nova
ordem global – no qual a riqueza, o
american way of living e
a influência norte-americana serão bem menos prestigiados, além de bem mais
modestos.
O presidente dos
EUA Barack Obama e legiões de comentadores continuam a repetir que os problemas
atuais são temporários e que, depois, virá novo apogeu. E que “ela” poderia
continuar a meter-se em aventuras, em
affairs sem amanhã, das
quais não ela, mas seu potente e carismático amante jihadi, que além de pote nte e
carismático é perseverante, paciente e capaz de sacrifícios – qualidades que os
EUA jamais aprenderam a cultivar – será o único beneficiário no longo
prazo.
Pode acontecer,
pois de a história mover-se em outra direção, completamente diferente da
prevista, como aconteceu em 1914, quando pouquíssimos haviam ouvido falar de
Lênin e nem Lênin jamais ouvira falar de Stálin, Adolf Hitler e Benito
Mussolini, quando praticamente ninguém previu o que fariam em futuro nem tão
distante.
Como Georg Wilhelm
Friedrich Hegel ensina corretamente, “a coruja de Minerva só abre as asas depois
que cai a noite” – quer dizer: só em retrospectiva se conhece o significado dos
eventos.
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