3/7/2012, Pepe Escobar,
Asia Times Online - THE ROVING
EYE
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
No
plano geopolítico, todos os progressistas – da América do Norte e do Sul, ao
mundo árabe – bem fariam se começassem a pensar sobre como aconteceu que, a
partir de junho de 2009, quando do golpe contra Manuel Zelaya em Honduras, a
América Latina foi transformada em uma espécie de laboratório gigante, no qual
se testam todos os tipos de mutações e variantes de golpes “democráticos” de
estado.
Pepe Escobar |
Comecemos
com uma bomba. Há dez dias, aconteceu no Paraguai um golpe de estado novinho em
folha, contra o presidente eleito Fernando Lugo. Passou praticamente sem
registro na mídia-empresa global.
Surpresa? Não. Telegrama da
embaixada dos EUA em Assunção, de março de 2009, revelado por
WikiLeaks, [1] já trazia informes detalhados de
como oligarcas paraguaios davam tratos à bola para montar um “golpe democrático”
no Congresso, para depor Lugo.
Naquele
momento, a embaixada dos EUA constatava que as condições políticas não eram
ideais para o golpe. Destacado articulador golpista, naquele momento, era o
ex-presidente Nicanor Duarte (2003 a 2008), severamente criticado
pelos governos progressistas na América do Sul por ter aberto as portas do
Paraguai a Forças Especiais dos EUA para que ministrassem “cursos educacionais”
em solo paraguaio, além de “operações domésticas de manutenção da paz” e de
“treinamento para contraterrorismo”.
Esse
movimento das Forças Especiais dos EUA acontecia décadas depois de “um dos
nossos [deles] filhos-da-puta”, afamado general-ditador Alfredo Stroessner (que
permaneceu no poder de 1954
a 1989) ter permitido a criação de uma pista de pouso
gigantesca, semiclandestina, próxima da Tríplice Fronteira
Argentina-Brasil-Paraguai – que adiante seria usada na “guerra às drogas” e,
depois, na “guerra ao terror”.
Assim
sendo, ninguém se surpreenderá ao saber que os EUA foram o primeiro governo a
reconhecer os golpistas da semana passada como novo governo paraguaio.
Esqueçam a conversa de dividir o
bolo
Os
egípcios progressistas estão-se dando conta agora de que novas democracias
exigem anos, às vezes décadas, de íntima convivência com o pesadelo da ditadura.
Aconteceu, por exemplo, no Brasil – hoje universalmente saudado como nova
potência global. Durante os anos 1980s e 1990s, houve alguma modalidade de
redemocratização de algumas instituições. Mas o Brasil, por anos a fio,
continuou sem ser melhor democracia do que antes – economicamente, socialmente e
culturalmente. O país teve de esperar longos 17 anos – até o presidente Luiz
Inácio Lula da Silva chegar à presidência, pela primeira vez, em 2002 – quando o
Brasil afinal pôde começar a trilhar o caminho que levará o país a ser menos
escandalosamente desigual do que nos sonhos das rapaces elites locais.
Luís Inácio Lula da Silva |
O mesmo processo histórico opera
agora no Egito e no Paraguai. Os dois países enfrentaram décadas de ditadura.
Quando uma ditadura entra nos estertores finais, nas vascas da morte, só
partidos políticos unidos ao – ou tolerados pelo – antigo regime estão em
posição interessante para aproveitarem-se da longa e sempre tortuosa transição
até a democracia. Certos países então se convertem no que Emir Sader, cientista
político brasileiro, apelidou de “democraturas”. [2]
Aplica-se
bem ao Partido Liberal no Paraguai e à Fraternidade Muçulmana no Egito. Nas
eleições presidenciais no Egito, concorreram um ex-ministro do governo de Hosni
Mubarak e um quadro da Ikhwan (Fraternidade Muçulmana). Resta saber (a) se o orwelliano Conselho Supremo das Forças
Armadas do Egito permitirá que essa nova democratura venha algum dia a ser
democracia real e (b) em que medida
a Ikhwan está realmente comprometida com a ideia de democracia.
O
Paraguai estava em estágio mais avançado que o Egito. Mesmo de pois de quatro
anos de uma eleição presidencial democrática, o Congresso continuava dominado
por dois partidos amigos-de-ditaduras, o Partido Liberal e o Partido Colorado. A
operação foi mamão com açúcar, e essa oligarquia bipartidária conseguiu derrubar
o governo de Lugo.
Rápido,
por favor, um impeachment mal-passado
Lugo
foi derrubado por golpe disfarçado em impeachment, processado em apenas 24
horas. Crentes praticantes, em Washington, da mudança de regime, devem ter
alcançado o êxtase: ah, se conseguíssemos fazer o mesmo na Síria...
Fernando Lugo, em 2008 |
O
simulacro de legalidade aconteceu, como seria de esperar, no Parlamento mais
corrupto das Américas – o que é ainda dizer pouco - Lugo foi considerado
“culpado de incompetência” no trato de uma história imundíssima associada –
inevitavelmente – a uma questão absolutamente chave em todo o mundo em
desenvolvimento: a reforma agrária.
Dia
15/6, um grupo de policiais e commandos, encarregados de cumprir ordem de
desocupação em Curuguaty, a 200 km de distância de Assunção,
próximo da fronteira brasileira, foi emboscado por atiradores infiltrados entre
os fazendeiros. A ordem de desocupação foi emitida por um juiz, para proteger
interesses de um rico latifundiário, Blas Riquelme, não por acaso ex-presidente
do Partido Colorado e ex-senador.
Curuguaty, Paraguai Clique no mapa para aumentar |
Mediante
manobras legalistas, Riquelme obteve a posse de 2.000 hectares de terra que
pertenciam ao estado paraguaio. Aquela terra estava ocupada por camponeses
sem-terra, que, já há algum tempo, pediam que o governo de Lugo emitisse seus
documentos de propriedade.
O Observatório da Escola das
Américas [3] já documentara que vastas porções
do território do Paraguai haviam sido roubados de fazendeiros e “doados” a
militares e seus “sócios”, da classe dirigente, durante as décadas da ditadura
de Stroessner.
O
resultado, em Curuguaty foi 17 mortos – seis policiais e 11 fazendeiros – e mais
de 50 feridos. Nada, nessa história, faz sentido; os comandantes da força de
desocupação, uma unidade linha-duríssima, denominada “Grupo de Operações
Especiais”, foram treinados em táticas de contraguerrilha na Colômbia – sob o
governo de direita de Uribe – como parte do Plano Colômbia, concebido pelos EUA.
Quanto
ao Plano Paraguai, é simplíssimo: criminalização absoluta de todas as
organizações de camponeses, para forçá-los a trocar o interior do país por
empregos no agronegócio transnacional.
Tudo
isso para dizer que, na essência, foi uma arapuca. Os direitistas paraguaios –
unidos como irmãos xifópagos a Washington, operando, dentre outros objetivos,
para impedir a qualquer custo que a Venezuela seja admitida ao mercado comum do
MERCOSUL – só esperavam uma oportunidade para derrubar um governo que, até ali,
sequer atacara os interesses da direita paraguaia ou de Washington, mas abrira
amplos espaços para a organização social e protestos populares.
Lugo,
ex-bispo, eleito em 2008 com grande apoio nas áreas rurais, talvez tenha
percebido o que viria, mas nada fez para impedir o golpe. Comparado à capacidade
para mobilizar gente nas ruas, não tinha apoio parlamentar algum: apenas dois
senadores. Mais de 40% da população paraguaia vive na área rural, mas não se
pode dizer que estejam mobilizados. E 30% dos paraguaios vivem abaixo da linha
da pobreza.
Os
“vencedores” no Paraguai teriam de ser os suspeitos de sempre: a oligarquia dos
latifundiários – e a campanha orquestrada para demonizar os agricultores
sem-terra; o agronegócio multinacional, como a empresa Monsanto e seus
interesses; e a mídia associada à Monsanto (como se vê no diário ABC
Color que, todos os dias, acusa de “corruptos” todos os ministros que não
operem como fantoches da Monsanto).
As
empresas gigantes do agronegócio, como Monsanto e Cargill virtualmente não pagam
impostos no Paraguai, porque existe ação nesse sentido do Congresso paraguaio,
controlado pela direita. O latifúndio tampouco paga impostos. Desnecessário
dizer que o Paraguai é dos países mais desiguais do mundo: 85% da terra – cerca
de 30 milhões de hectares – é controlada pelos 2%, a aristocracia rural, quase
todos envolvidos em negócios de especulação com a terra.
Quer
dizer: com mansões estilo Miami Vice, em Punta del Este , no Uruguai ou,
e tanto faz, em Miami Beach; e o dinheiro, é claro, bem guardado nas ilhas
Cayman, o Paraguai é governado, de facto, por esses 2% em que se misturam
o agronegócio e o cassino financeiro.
E,
nas palavras de Martin Almada, conhecido ativista paraguaio dos direitos
humanos, que recebeu o Prêmio Nobel Alternativo – tudo isso se aplica também a
latifundiários brasileiros. O mais rico plantador de soja do Paraguai é o
“brasiguaio” [duas nacionalidades] Tranquilo Favero, que enriqueceu durante a
ditadura de Stroessner.
Um
golpe, por favor, on the rocks
A
UNASUR, União das Nações Sul-americanas [ing. Union of South American
Nations] tratou os eventos no Paraguai como o que são: golpe. Assim também o
MERCOSUL. O contraste, em relação à posição de Washington não poderia ser mais
visível. Frederico Franco, golpista chefe, é frequentador assíduo e queridinho
da embaixada dos EUA em Assunção.
Argentina,
Uruguai, Venezuela e Equador não reconhecerão o governo dos golpista. A
Venezuela interrompeu as vendas de petróleo ao Paraguai. Dilma Rousseff,
presidenta do Brasil, propôs a expulsão do Paraguai das duas organizações, da
UNASUL e do MERCOSUL.
O
Paraguai já está suspenso. Implica que o golpista Federico Franco foi impedido
de participar de uma reunião chave do MERCOSUL, semana passada, em Mendoza,
Argentina , quando o Paraguai receberia a presidência do
MERCOSUL. A oligarquia paraguaia – cumprindo ordens de Washington – sempre
bloqueou a admissão da Venezuela como parceira do MERCOSUL. Isso acabou. No
final do mês, a Venezuela torna-se membro pleno do MERCOSUL.
Mas
os governos progressistas da América do Sul que tomem muito cuidado. Se o
Paraguai for expulso da UNASUL e do MERCOSUL, inevitavelmente pedirá socorro
comercial a militar a Washington. Aí está algo que facilmente pode traduzir-se
por “pesadelo”: bases militares dos EUA, no Paraguai.
Os
oligarcas paraguaios, a imprensa-empresa por eles comandada e, por último, mas
nem por isso menos importante, também a reacionária alta hierarquia da Igreja
Católica no país estimam podem ampliar ainda mais seu poder parlamentar, se as
eleições acontecerem em abril de 2013.
Lugo,
de fato, enfrentava missão de Sísifo: governar democraticamente estado fraco,
que praticamente nada arrecada em impostos (menos de 12% do PIB), sob violenta
pressão dos poderosos lobbies transnacionais e elites locais corrompidas. Essa é, afinal, a
realidade estrutural de grande parte da América Latina – e também, nas linhas
gerais, pode-se dizer, do Egito.
No
plano geopolítico, todos os progressistas – da América do Norte e do Sul, ao
mundo árabe – bem fariam se começassem a pensar como aconteceu que, a partir de
junho de 2009, quando do golpe contra Manuel Zelaya em Honduras, a América
Latina foi transformada em uma espécie de laboratório gigante, no qual se testam
todos os tipos de mutações e variantes de golpes “democráticos” de estado.
Rafael Correa |
O
Paraguai é uma dessas mutações. Outra, foi o fracassado golpe contra
Rafael
Correa do Equador, em setembro de 2010. Todos esses golpes
foram tentados contra governos progressistas que favorecem avanços sociais.
Não
por acaso, Correa, que por pouco não foi derrubado, disse que, um golpe
bem-sucedido no Paraguai “abriria perigoso precedente” para toda a região.
Em
termos de justiça poética, nada supera a história do próprio Correa – alvo de
tentativa de golpe de estado – e que, hoje, analisa a possibilidade de dar asilo
político a Julian Assange... cuja página WikiLeaks revelou, dentre outras
revelações, como a elite paraguaia obrava na preparação de golpe para tirar Lugo do
governo.
No
Egito, aconteceu um golpe militar antes, mesmo, de ter havido eleições e haver
presidente eleito. Os egípcios progressistas, que lideraram de fato a Primavera
Árabe, que fiquem bem espertos, em alerta máximo: o Paraguai aí está, mostrando
ao mundo o quanto a estrada até a democracia pode ser difícil e traiçoeira; e
que tudo sempre pode acabar em “democratura”.
Notas
de rodapé
[1] 09ASUNCION189,
criado: 28/3/2009, 20h24; vazado: 30/8/2010, 1h44 SECRETO; Embaixada de
Assunção, Paraguai, (em
ing.)
[2]
24/6/2012, Boletim Carta Maior, Blog do Emir, “Democraturas”,
[3] Orig. School of the Americas Watch. A School of the
Americas, a partir de 2001 renomeada como Western Hemisphere Institute for Security
Cooperation (WHINSEC) — Instituto do
Hemisfério Ocidental para a Cooperação em Segurança, é instituição
mantida pelos EUA que ministra cursos sobre assuntos militares a oficiais de
outros países. Atualmente situada em Fort
Benning, Columbus, Georgia, EUA, a escola esteve, 1946 a 1984 situada no
Panamá, onde se graduaram mais de 60.000 militares e policiais de cerca de 23
países de América Latina.
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