17/7/2012, Joseph Massad, Al-Jazeera, Qatar
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Joseph Massad |
Joseph Massad é
professor de Política e História Intelectual Árabe Moderna na Columbia University, em New York.
Um
ano e meio depois do que a imprensa e funcionários do governo dos EUA insistem
em chamar de “Primavera Árabe”, há bem pouca democracia nos países árabes,
inclusive nos países que derrubaram ditaduras e ditadores apoiados pelos EUA. A
principal mudança na região é o fim da estabilidade que havia e a implantação de
uma nova instabilidade que tem efeitos negativos para os investimentos do
capital imperial e sobre toda a estratégia imperial na região.
Isso
não implica dizer que, apesar das vacilações iniciais, o imperialismo
norte-americano não tenha conseguido recapturar vários fios do novo jogo
político na região e que já não os esteja manipulando. Só implica dizer que o
imperialismo norte-americano já não controla todos os fios. A evidência de que
os EUA não têm controle total significa que Washington ainda não foi capaz de
restaurar a estabilidade, a qual, em termos norte-americanos, é definida como
governos ditatoriais inchados de funcionários que são obedientes cumpridores do
diktat dos EUA e seus parceiros juniores na região: a colônia-ocupação
judeu-sionista.
Instabilidade
sem democracia
Gerald Feierstein |
No
Iêmen, os EUA tornaram-se novos ditadores diretos absolutos do país, no qual já
dispensaram o agente local. Estão prendendo e matando iemenitas à vontade, sob o
pretexto de combater o terror da al-Qaeda, que sequer existia no Iêmen antes de
os EUA decidirem intervir naquele país empobrecido. O terror que as forças e o
embaixador dos EUA naquele país, Gerald Feierstein [1], ali impuseram é a principal
realização do governo Obama desde o início das revoltas árabes, em janeiro de
2011.
O
outro país árabe sobre o qual os EUA exercem controle quase absoluto é o
Bahrain, apesar de todas as tentativas empreendidas pela ditadura bahraini,
mercenários sauditas operam – sabidamente ajudados por militares e forças de
segurança dos EUA e Grã-Bretanha, que operam no apoio e consultoria – para
esmagar a revolta, violência contra a qual continua a levantar-se o valente povo
oprimido do Bahrain.
Enquanto
o capital regional e imperial vai lentamente abandonando o Bahrain, trocando-o
pelos vizinhos Qatar, Arábia Saudita e Dubai, com êxodo em massa da comunidade
de expatriados, a presença militar dos EUA, para nem falar da hegemonia dos
mercenários sauditas, só se intensifica. De fato, os sauditas lançaram a
ideia-teste, em maio, de anexar o Bahrain, de vez, ao reino; e transformá-lo
demograficamente, o que seria feito pelo mecanismo de usar-se uma monarquia
sunita sectária para oprimir uma maioria xiita.
Na
revolta que prossegue, os sauditas das regiões de Qatif e Al-Ahsa responderam
àquela proposta, nos últimos dias – pregando, em aberto desafio ao despotismo
dos sauditas e suas decisões imperiais sobre o Bahrain, a secessão: querem
separar-se da Arábia Saudita e reunificar-se ao Bahrain, como antes de o estado
saudita ter-se apossado da região.
Na
Líbia, cujo neonome é “instabilidade” (exceto no setor do petróleo), a situação
é semelhante à do Iraque nove anos depois de os EUA terem invadido e ocupado o
país. Recentes eleições na Líbia confirmaram no poder o homem da OTAN, Mahmoud
Jibril, apesar de sua comprovada capacidade-zero para controlar o país (exceto
os campos de petróleo, policiados diretamente pela OTAN).
Fraternidade Muçulmana |
Quanto
à competição eleitoral entre Qatar e Arábia Saudita nas eleições na Tunísia e no
Egito (os sauditas apoiam as forças dos regimes depostos; o Qatar apoia a
Fraternidade Muçulmana), os qataris venceram, mas sem nocaute; e os sauditas
estão impondo condições.
Agentes
do governo dos EUA, como sempre, jogam em todos os times, aliados, ao mesmo
tempo, aos ditadores militares egípcios e aos Irmãos da Fraternidade Muçulmana,
para não falar dos partidos liberais seculares.
Na
Tunísia, a instabilidade do novo governo manifestou-se em disputas pelo poder
entre o presidente e o primeiro-ministro, seculares e grupos salafistas, e entre
o aparelho repressivo de segurança e as massas nas ruas, em protesto. O
vacilante partido Ennahdha está vendo expostas ao escrutínio público as suas
armações e maquinações, a mais recente das quais é ter dado passaporte
diplomático ao líder do partido, Rashid al-Ghannushi, que não foi jamais nem
eleito nem nomeado para cargo algum, e, mesmo assim, contra todas as convenções,
obteve o tal passaporte. Acrescentando insulto à injúria, essa semana
funcionários do estado tunisiano xingaram a mãe de Muhammad Bouazizi – o
primeiro mártir das revoltas árabes – e a meteram na cadeia, por alegados
insultos a um funcionário da Justiça.
No
Marrocos, na Jordânia e em Omã, repressão e cooptação – métodos de controle
tradicionalmente patrocinados pelos imperialistas – continuam ativados por
governos que se mantêm no poder mediante diferentes ameaças contra diferentes
grupos de cidadãos.
Exceto em três casos – Egito,
Tunísia e Líbia – o Qatar, a Arábia Saudita e os EUA mantêm-se em perfeito
acordo sobre como lidar com as revoltas no resto da região (Bahrain, Omã,
Jordânia e Marrocos e, claro, no Iêmen, onde as diferenças que houvesse foram
superadas pela remoção de Abdullah Saleh, que foi substituído no governo pelo
embaixador dos EUA, Gerald Feierstein [1]),
inclusive na Síria, onde a estratégia unificada de todos, para o curto prazo, é
derrubar o governo de Assad.
Yasser Arafat |
Persistem
os desacordos, é verdade, sobre como lidar com a Autoridade Palestina.
Investigação conduzida recentemente pela rede Al Jazeera sugeriu que a
morte do presidente da Autoridade Palestina Yasser Arafat pode ter sido
provocada por exposição a elemento altamente radiativo, o polônio. A ideia, por
sua vez, disparou por todos os lados a crença de que Arafat pode ter sido
assassinado por um complô no qual cooperaram agentes israelenses e da Autoridade
Palestina. Tudo isso aumenta a fragilidade e a instabilidade da Autoridade
Palestina – a qual, além do mais, parece estar falida, apesar dos esforços
empenhadíssimos de Israel para obter empréstimos do FMI à Autoridade Palestina,
os quais, até agora, deram em nada.
O
Qatar talvez goste de ver a desgraça da Autoridade Palestina, mas EUA e Israel
(e os sauditas) não estão gostando. Fato é que Mahmoud Abbas correu para a
Arábia Saudita, para pedir dinheiro para manter à tona a Autoridade Palestina.
A
estratégia dos EUA
Nada
disso opera a favor nem do capital nem da estratégia norte-americanos. De fato,
o aspecto mais importante de todas as estratégias dos EUA na região é abrir
caminho até, e preços baixos para, o petróleo, sempre – além de estimular o mais
possível todas as rixas e atritos entre todos os países da região, para assim
justificar que todos aqueles países consumam todos os lucros que auferem do
petróleo, para comprar armas que os EUA vendem a todos eles e as quais, para que
continuem a comprá-las, os países têm, é claro, que usar e gastar (armas e
munição) – ao mesmo tempo em que mantêm viva a indústria bélica dos EUA.
No
fundo, Washington pouca importância dá às rivalidades entre Omã e Emirados
Árabes Unidos, ou entre Omã e Arábia Saudita – menos ainda, às brigas de Iêmen e
Arábia Saudita, e praticamente dão importância-zero ao que o Qatar pense da ou
faça à Arábia Saudita... desde que esses países não se envolvam em confronto
militar real.
Em
matéria de conflito real, os EUA só admitem um: guerra combinada de todas essas
ditaduras, unidas e acrescidas de Kuwait e Bahrain, contra a República Islâmica
do Irã.
Nessa
arena, nada mudou. Embora a “instabilidade” interna no Bahrain, em Omã e na
região leste da Arábia Saudita seja preocupante, funcionários do governo dos EUA
(com os israelenses aplaudindo e, não raras vezes, tomando a dianteira) investem
grandes esperanças e muito tempo numa pesada campanha de propaganda contra o Irã
– o único, dentre os três produtores gigantes de petróleo da região (além de
Iraque e Arábia Saudita), que se mantém fora da órbita na qual os EUA exercem
pleno controle.
O
fato de os regimes sectários do Golfo identificarem como xiitas as massas
em revolta no
Bahrain e na Arábia Saudita; e como ibadis, em Omã (mas o
sultão de Omã é também crente ibadi; então, os sauditas puseram-se a falar mais
sobre uma dita opressão que os sunitas sofreriam em Omã) facilitou a conexão que
funcionários dos governos de EUA e estados do Golfo estão inventando entre a
chamada “ameaça iraniana” e as revoltas locais. Assim, conseguem explicar
compras cada vez mais gigantescas de armas, e preços mais em conta a pagar pelo
petróleo... o que se chama “sucesso das metas políticas dos EUA”.
O
petróleo e a estrutura de governo do Iraque continuam sob tutela dos EUA. Isso,
aliado à transferência discreta do controle sobre os campos de petróleo líbio,
para as potências europeias, tem conseguido manter a estabilidade por hora e
para o futuro próximo.
Circularam
rumores de que os qataris teriam sugerido que alugariam o Canal de Suez. Os
rumores foram desmentidos. Mas bastaram para tranquilizar ainda mais os
funcionários do governo dos EUA: parece já não haver dúvidas de que a “Primavera
Árabe”, boa parte da qual foi patrocinada pelo Qatar, não prejudica nem impõe
grave ameaça aos interesses dos EUA. Como sempre, não percebem que o que poderia
proteger os interesses dos EUA seria a estabilidade. E o que se vê na região é
só instabilidade e revolta.
Os
qataris aconselham paciência. Argumentam que a região voltará à estabilidade,
tão logo se implantem ali novos governos islamistas amigos do ocidente e do
Golfo; então o bolo econômico afinal crescerá e poderá incluir empresários e
empresárias islamistas. E dali em diante será business como sempre para
os EUA, eternamente.
Egito
Mohammed Mursi |
O
recente confronto entre Muhammad Mursi, presidente do Egito, o Judiciário, o
comando do Exército e os EUA e, talvez, a questão mais quente do momento. Diz-se
que Washington teria encorajado o recém-eleito presidente egípcio a confrontar o
Judiciário e o alto comando militar, por causa da dissolução do Parlamento. O
movimento, que foi precipitado, saiu pela culatra e Mursi teve de voltar atrás,
depois de ameaçado pelo Judiciário (juízes nomeados por Mubarak).
O
recente movimento dos EUA, de apoiar a Fraternidade Muçulmana contra o conselho
dos militares, como principal aliado, explica-se: Washington afinal percebeu que
os generais não poderão mais ajudar os interesses dos EUA, porque não
conseguirão impor qualquer estabilidade ao país. A oposição popular, contra os
militares da era Mubarak é uniforme e forte. Nem repressão massiva, de estilo
sírio, é possível, porque causaria revolta ainda mais massiva, não promoveria
qualquer estabilidade e apressaria o fim desses militares.
Por
outro lado, os EUA têm recebido repetidas garantias e promessas, de Khayrat
al-Shatir, um dos líderes dos Irmãos Muçulmanos, neoliberal e multimilionário,
de que a Fraternidade será aliada neoliberal mais confiável do capital dos EUA e
a favor da estratégia dos EUA para o Oriente Médio, que Mubarak. Os qataris não
se cansam de elogiar a presteza da Fraternidade Muçulmana, para tudo que
signifique promover os interesses dos EUA.
Essa
foi a situação que tornou menos provável o coup d’état, dos militares,
contra Mursi, depois de eleito; os agentes dos EUA opuseram-se ao golpe, não
porque haja alguma restrição norte-americana democrática a ditaduras (nem
pensar!), mas porque havia novas análises estratégicas que indicavam que golpe
algum restabeleceria a estabilidade; e, muito provavelmente, aumentaria a
instabilidade.
Mas
os Generais, esses, estão decididos a provar a Washington que apostou no cavalo
errado, ao apoiar a Fraternidade Muçulmana. Por isso, adotaram a estratégia de
minar qualquer possibilidade de o governo de Mursi vir a dar certo; por isso
limitaram seus poderes e negaram-lhe o apoio da maioria parlamentar eleita.
Quanto aos liberais egípcios, eles não apenas aprovaram a dissolução
politicamente motivada do Parlamento (estranha aprovação, por liberais
democratas, mas considerada “normal” no Egito acometido de
fobia-anti-Fraternidade-Muçulmana; e considerada ainda mais normal entre
liberais ocidentalizados arrogantes e islamófobos); além de aprovar a dissolução
do Parlamento, outro daqueles liberais democratas, empresário e capitão de
indústria milionário, Mamduh Hamza, conclamou o exército a derrubar
imediatamente o presidente recém-eleito.
Como
parte da estratégia geral para a região, os norte-americanos continuam a manter
as relações de concubinato que sempre os ligaram aos Generais e aos liberais do
país, apesar da forte atração que sentem pela Fraternidade Muçulmana.
O
fato de os sauditas terem convidado o presidente Mursi a interromper seu
trabalho de governar e ir visitá-los e mostrar-se totalmente subserviente
(apesar de os sauditas terem feito oposição à candidatura de Mursi), e o fato de
Mursi ter obedecido servilmente, e ter sido humilhado durante a visita, faz
perfeito sentido e comprova os laços de subserviência e conivência que unem
Fraternidade Muçulmana e sauditas, desde os anos 1950s.
Velhas
alianças
Para recordar à Fraternidade
Muçulmana quem manda e quem obedece, os jornais sauditas desenterraram uma foto,
publicada há uma semana, em que se vê o fundador da Fraternidade Muçulmana Hasan
al-Banna, beijando a mão do rei Abd al-Aziz, como evidência de submissão, nos
anos 1940s [2].
O príncipe
herdeiro saudita saúda Mohammed Mursi em sua chegada a Jeddah, mas Mursi deixou
a Arábia Saudita sem honras diplomáticas. |
Os
sauditas deram a Mursi recepção humilhante. O novo príncipe coroado saudita
recebeu Mursi no aeroporto (o rei não apareceu). E nem o novo príncipe coroado
apareceu para despedir-se, nem na partida. Embora seja possível que Mursi seja
independente, ou que venha a governar como presidente independente, seus
inimigos insistem em apresentá-lo como testa de ferro de al-Shatir. Se for
verdade, e seja lá quem for o conselheiro que Mursi ouve, é mau conselheiro. Até
agora, as duas principais ações de Mursi na presidência saíram-lhe pela culatra:
desafiar o Conselho Militar e visitar a Arábia Saudita.
O
resultado de tudo isso para o futuro do Egito permanece incerto e obscuro, com
Washington continuando a jogar dos dois lados da quadra e controlando vários
cordões do jogo, mas não todos. É verdade que os EUA estão hoje menos apavorados
e trêmulos de medo do que estavam imediatamente depois da queda de Mubarak. Os
grandes players, ainda são os generais do Exército, além dos EUA; na
fila, em sequência, vêm a Fraternidade Muçulmana apoiada pelo Qatar, e os
sauditas, tradicionais apoiadores do regime de Mubarak.
Os
funcionários dos EUA ainda não sabem a que o atual curso de eventos levará a
região. A situação na Jordânia está ligada à do Egito, Síria, Cisjordânia,
Iraque e o resto do Golfo, e permanece a mais volátil, dentre as monarquias
ainda “estáveis”, situação semelhante à de Omã. As recentes manifestações
massivas no Sudão visam a enfraquecer o governo despótico de Omar al-Bashir,
levado ao poder por golpe contra a democracia sudanesa em 1989 (e cujas relações
com os EUA azedaram nos anos 1990s), mas, até aqui, sua resposta às
manifestações populares tem sido tão violenta quanto a dos sauditas ao lidar com
o levante que lhes cabe.
Os
norte-americanos continuam comprometidos não com alguma “democracia”, mas com a
estabilidade – estratégia identificada pelo acadêmico e consultor do governo dos
EUA Samuel P. Huntington, em seu livro clássico de 1968 sobre a importância da
ordem e da estabilidade política no mutável Terceiro Mundo, para os interesses
imperiais.
Tomar
as democracias por estruturas inerentemente instáveis e as ditaduras por
garantia de estabilidade já não é curso viável de ação para os agentes do
governo dos EUA, mas eles ainda não decidiram se mantêm esse ideário para alguns
países e o abandonam em outros casos.
Embora
a região continue a carecer da democracia pela qual seus povos lutam há mais de
um século, contadas a “Primavera Árabe” e as mudanças de regime que geraram, a
principal conquista dos levantes populares, até agora, foi a instabilidade.
Essa
instabilidade pode, sim, forçar uma mudança das regras estratégicas do jogo que
os EUA introduziram na região depois da 2ª Guerra Mundial. Essa é a boa notícia
para todos os povos árabes.
Notas
dos tradutores
[1] Sobre ele, ver redecastorphoto em: “Embaixador
dos EUA no Iêmen: o novo ditador”, 10/7/2012, Jamal Jubran,
Al-Akhbar, Líbano, em português.
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