“A gente aqui aproveita, da CIA, o
que nos interesse”
26/4/2013, Timothy
Heath, The Jamestown
Foundation
Traduzido e comentado pelo pessoal
da Vila Vudu
Essa The Jamestown Foundation é
um
think-tank, instituto de
pesquisa e análise, com sede em Washington, fundado em 1984, como plataforma de
apoio para dissidentes soviéticos. É instituto de propaganda pró-EUA, que sempre
manteve contato muito estreito com a CIA. Mas tem duas interessantes qualidades:
não publica exclusivamente “opinionismo acadêmico de repetição” pró-EUA; e só
resenha documentos de primeira mão, o que nos interessa, sobretudo em temas,
como o que aqui se discute, que absolutamente não aparecem na pauta dos
interesses da esquerda brasileira, por mais crucialmente importantes que sejam
para a própria esquerda. No instante em que começa a propaganda pró-EUA,
paralela à resenha, excluímos os parágrafos. Ver Nota [2].
Esse ano, a China organizou o
protocolo oficial anual sobre Defesa em torno do conceito de missões históricas
como quadro principal para compreender a missão e as atividades do Exército
Chinês [orig. People’s Liberation Army (PLA) (Exército de Libertação do
Povo)]. O conceito de “interesses-núcleo”, motor chave das missões históricas,
também aparece com destaque no documento anual. [1] O alto destaque que se dá a esses
conceitos reflete o maior peso de autoridade que passam a ter, tanto quando o
maior poder e influência da China no mundo. Por essas razões, deve-se esperar
que Pequim amplie seus esforços para consolidar o controle sobre seus direitos
de soberania e para modelar uma ordem internacional favorável.
O
título do documento anual de Defesa, “O uso diversificado das Forças Armadas
Chinesas” [orig. “The Diversified
Employment of China’s Armed Forces”] refere-se às “tarefas diversificadas”
(duoyanghua renwu), coração das “missões históricas das forças armadas no
novo período do novo século”, referidas quase sempre, mais simplificadamente,
como “missões históricas”. O conceito de missões refere-se à orientação
estratégica que o (então) presidente da Comissão Militar Central, Hu Jintao, deu
aos militares no final de 2004 e que continuou a ser mencionado nos documentos
anuais da Defesa até 2006. As missões históricas definem-se por quatro
exigências:
(1) oferecem considerável garantia de
segurança ao Partido para consolidar sua posição de governante;
(2) oferecem forte garantia de
segurança para salvaguardar o período de oportunidade estratégica importante
para o desenvolvimento nacional;
(3) oferecem poderoso suporte
estratégico para salvaguardar interesses nacionais; e
(4) têm papel importante para
salvaguardar a paz mundial e promover o desenvolvimento comum (Constituição do
Partido Comunista Chinês [orig. Constitution of the Chinese Communist Party
[CCP]). O Exército de Libertação Popular oferece essencialmente substrato
fundamental para a primeira exigência, mas não se trata dele, diretamente, no
documento. Os demais fatores aí listados dão o quadro geral de todo o conteúdo
do documento.
Os
interesses núcleo ganham mais importância
O
documento de 2012 revisto e agora divulgado dá maior destaque e eleva em
importância o conceito de “interesse-núcleo” (hexin liyi). Esse conceito
já apareceu de alguma forma nos documentos anuais da Defesa desde 2002. O termo
é um conceito do partido que se refere aos mais importantes interesses
nacionais, definidos pelos analistas chineses como o coletivo “das demandas
materiais e espirituais de um estado e povo”.
A
imprensa chinesa explicou com riqueza de detalhes como a evolução de interesses
nacionais levou os militares a alterar, atualizando sempre, a própria missão. O
desenvolvimento mais recente foi a adição de “interesses do desenvolvimento” [pode-se traduzir também como “interesses
desenvolvimentais” (NTs)], ao grupo mais antigo de interesses da segurança e
da soberania, assim como um refinamento do significado de todos os três grupos
de interesses à luz do crescente poder da China e de sua integração na economia
global. Em artigo típico, o Diário do Exército Chinês explicava que o
crescimento econômico da China exige agora que o Exército Chinês proteja os
“interesses do desenvolvimento” (fazhan liyi) tanto quanto os “interesses
da sobrevivência” (shengcun liyi). Comparava as missões e as funções dos
militares na “era da agricultura e da indústria”, que se focava no “controle das
fronteiras e em defender os territórios”, com as novas exigências das novas
missões, de “proteger o desenvolvimento pacífico e o status de grande potência
da China” na “era da informação” (Diário do Exército Chinês, 8/12/2005).
Mao Tse Tung |
Como
as missões históricas, o conceito de “interesse-núcleo” oferece modo mais claro
para organizar o pensamento sobre segurança, que a linguagem política das eras
Mao (Tse Tung) e Deng (Xiaoping).
Discutir
ameaças de segurança em termos furiosamente hiperbólicos, rigidamente
ideológicos, é um luxo que se podem dar países comunistas autárquicos,
economicamente debilitados; mas que não se possa permitir uma grande potência
emergente, sobretudo quando cercada por nações modernas, desconfiadas e
pesadamente armadas.
Deng Xiaoping |
A
modernização do Exército Chinês da era Deng e da era Jiang não se deixou prender
nessa armadilha, mas a sempre presente influência da ortodoxia comunista
contribuiu para o baixo nível de rigor e para a falta de clareza no pensamento.
Por outro lado, delinear categorias de interesses-núcleo que se ligam
diretamente às mais altas prioridades estratégicas da China, facilitam as
análises mais precisas e permitem que o Exército Chinês priorize
responsabilidades; avalie ameaças; e desenvolva planos e capacidades de maneira
racional e mais adequada às necessidades de uma grande potência com interesses
globais.
Por que os conceitos cresceram em
importância
Ambos,
os interesses-núcleo e as missões históricas derivam de avaliações formalizadas
por volta do ano 2000 – início do que o Partido Comunista Chinês refere como o
“novo período no novo século”. Dois importantes desenvolvimentos levaram ao
aumento de importância dos conceitos que se constata no documento de 2012: um
aumento da capacidade política para decidir [orig. political
authoritativeness]; o crescimento relativo do poder chinês, que fez aumentar
a viabilidade e a urgência de implementar novas orientações.
A
capacidade dos conceitos estratégicos do Partido para conduzir a política é
determinada em parte pelo nível de autoridade dos conceitos. Quanto maior a
autoridade de um conceito estratégico, maior a probabilidade de que políticas
relacionadas a ele encontrem apoio. O mais alto status que um conceito
estratégico pode alcançar é ser adotado como parte da “ideário guia” (zhidao
sixiang) [no orig. “ideologia guia”,
que é tradução errada ou, no mínimo, enviesada (NTs)]. Quando um conceito
estratégico alcança esse status, tem autoridade suprema e as políticas a ele
associadas sobem em prioridade e em importância.
Os
dois conceitos, das missões históricas e dos interesses-núcleo, são associados
ao Conceito do Desenvolvimento Científico articulado por Hu Jintao, pouco depois
de assumir o poder em 2002. Quando o 17º Congresso do Partido incorporou o
Conceito de Desenvolvimento Científico à Constituição do Partido Comunista
Chinês, ele acrescentou legitimidade extra aos conceitos de missões históricas e
interesses núcleo. No 18º Congresso do Partido, o Conceito do Desenvolvimento
Científico ganhou status de “ideário guia”, refletindo forte consenso em toda a
liderança (“The 18th Party Congress Work
Report: Policy Blueprint for the Xi Administration”, China Brief,
30/11/2012). Assim se afirmou que os conceitos relacionados, de missões
históricas e de interesses núcleo, desempenhariam papel definitório no
pensamento chinês de segurança. O lançamento do documento da Defesa em formato
já revisto é evidência desse desenvolvimento.
18º Congresso do Partido Comunista Chinês (nov/2012) |
Além
disso, a China viu seu poder nacional relativo continuar a crescer nos anos
recentes. Quando a economia chinesa sobrepujou a do Japão, e passou a ser a
segunda maior do mundo, em 2010, os chineses viam a economia da União Europeia
sempre patinando, e os EUA permanentemente presos em impasses políticos,
enquanto os militares chineses continuavam a ganhar poder. Sintoma desse aumento
de poder, os esforços de Filipinas e Japão para melhorar suas posições relativas
em disputas marítimas contra a China foram contidos pelas reações firmes de
Pequim nos casos de Scarborough Reef
e das ilhas Diaoyu/Senkaku.
O
maior poder da China não apenas reforçou sua alavancagem; também fez aumentar o
senso de urgência no que tenha a ver com segurança. Em particular, a crescente
ansiedade na região, alvo de maior atenção dos EUA (o “reequilibramento” e o
“movimento de pivô”) aumentou a importância, para Pequim, de ajustar sua
estratégia de segurança, para reduzir vulnerabilidades, proteger
interesses-núcleo e modelar um ambiente estável e favorável de segurança, para
que a nação possa manter-se concentrada no desenvolvimento rápido e equilibrado.
O contexto da Nova Segurança, no
documento de 2012
Assim
como (i) as implicações do crescente
poder da China numa era de globalização estão no coração do conceito de
interesses-núcleo, está no coração do conceito de missões históricas (ii) o desafio de equilibrar um
ambiente de segurança pacífico e estável; de proteger um conjunto crescente de
interesses núcleo; e a necessidade de reduzir vulnerabilidades estratégicas e
proteger um crescente conjunto de interesses núcleo. O documento de 2012 trata
das duas questões, oferecendo descrição muito mais aprofundada dos interesses
núcleos vistos co ponto de vista dos militares; e expondo o modo como os
militares implementam a orientação para as missões históricas.
Interesses-núcleo. O terceiro capítulo do documento
trata dos interesses-núcleo de “soberania” e “segurança”. O documento reconhece
que, de todos, esses são os interesses-núcleo mais básicos e mais importantes.
Além de apresentar as “necessidades-núcleo de segurança” como “defesa nacional,
resistência contra agressão estrangeira e defesa da pátria”, o capítulo discute
questões de integridade territorial no ar, na terra e nos mares.
Embora
não seja novidade, a maior alavancagem que lhe é assegurada pelo poder crescente
forçou Pequim a reinterpretar seus interesses de soberania e segurança. Para dar
apenas um exemplo, o documento menciona que a Marinha do Exército Chinês faz
agora “treinamento para águas profundas” [orig. blue water training], que
inclui “alerta remoto precoce” e “interceptação em águas internacionais” [orig.
open sea interception].”
A
China ampliou, em profundidade, o que entende como saudável necessidade de
segurança. O documento também menciona que a China agora tem “interesses de
segurança espacial e de cibersegurança”, conceitos que não apareciam em
documentos oficiais de dez anos passados.
O
quarto capítulo trata dos interesses relacionados ao desenvolvimento nacional.
Dois grandes grupos são destacados: direitos e interesses marítimos e interesses
no exterior da China [orig. overseas interests]. Os primeiros referem-se
a direitos econômicos e legais – minérios, pescado e outros recursos – aos quais
a China se sente com direitos. O crescente apetite da China por recursos fez
aumentar a importância das regiões marítimas. Além disso, muitas das áreas que
envolvem interesses marítimos chineses diretos sobrepõem-se com seus interesses
de segurança e soberania, o que faz aumentar o valor estratégico daquelas águas.
Os
interesses em regiões distantes do território chinês [orig. overseas
interests] destacam linhas marítimas de comunicação e cidadãos chineses que
vivem em outros países. Essa é uma
área crescente de responsabilidade militar, como se vê na discussão que o
documento oferece sobre as missões continuadas para evacuar cidadãos do Golfo de
Aden e da Líbia. Essas semelhanças refletem a expansão dos interesses
estratégicos chineses, como parte de seu poder crescente e integração na
economia global.
Missões históricas. O documento está organizado, em
grande parte, em torno do desafio militar para equilibrar o imperativo de
garantir segurança ao conjunto crescente de interesses-núcleo, com o imperativo
de ajudar a modelar um ambiente favorável de segurança. Isso exige que o
Exército Chinês responda a ameaças não tradicionais, como desastres e
terrorismo, que podem ameaçar interesses chineses no próprio território e fora
dele. O documento usa a expressão ocidental “operações militares não bélicas”
[orig. military operations other than war (MOOTW)] para falar desses deveres.
Mas o documento deixa claro que a expressão “tarefas diversificadas” [orig.
diversified tasks] refere-se à habilidade do Exército Chinês para
executar operações de guerra e de não guerra, em apoio ao desenvolvimento
nacional. O segundo capítulo do documento relata como a modernização do Exército
Chinês o está capacitando para atender a essas novas responsabilidades.
Os
capítulos 3 e 4 destacam o papel dos militares, em íntima coordenação com
autoridades civis, para proteger a soberania, a segurança e os interesses do
desenvolvimento chineses. O quadro mostra que os militares devem oferecer apoio
direto a todos os esforços do governo para ampliar incrementalmente o controle
administrativo, legal e econômico, de-facto, nas disputas de questões
marítimas e outros interesses. Como exemplo, o documento relata como a Marinha
do Exército Chinês assegura “apoio de segurança” às polícias marítimas, aos
pesqueiros e à exploração de petróleo e gás. Também discute a cooperação com
corpos internacionais, para proteger interesses chineses em outras regiões do
mundo, fora do território chinês.
O capítulo 5 refere-se à
necessidade de “salvaguardar a paz mundial e a estabilidade regional” e trata do
papel do Exército Chinês na modelagem de um ambiente favorável de segurança. O
Exército Chinês desempenha papel crucialmente importante para promover a
estabilidade global e regional, fator crítico para que o desenvolvimento chinês
seja possível. Participação nas Operações do Corpo de Paz da ONU [orig.
United Nations Peacekeeping Operations (PKO)] também fornece útil cobertura
política para aumentar a segurança dos interesses em territórios não chineses; o
Exército Chinês já participou em operações da ONU contra a
pirataria, para proteger suas linhas marítimas de comunicação, na área próxima
do Chifre da África. (...) [2]
Notas
dos tradutores
[1]
O documento “The
Diversified Employment of China’s Armed Forces” [Uso diversificado das
forças armadas chinesas], aqui comentado, é acessível, na íntegra, na página
Internet do Ministério da Defesa Nacional da China.
Outros documentos chineses anteriores sobre a
Defesa são encontráveis
na página Internet do Governo da China.
[2]
No item seguinte dessa resenha (“Implicações”), o autor - resenhista separa-se
da resenha e põe-se a COMENTAR o documento resenhado, numa intromissão de
caráter pragmático, na qual o autor dessa resenha interpreta o documento resenhado PARA O SEU
GRUPO DE INTERESSE.
Aproveitamos da
resenha o que é resenha interessante e excluímos o comentário
dirigido à CIA, que não nos interessa (“Implicações”).
Do
conjunto de missões do Exército Chinês, a mais desafiadora parece ser a missão
de promover a estabilidade regional. A China procura evitar o que considera
concessões inadmissíveis no campo de seus interesses, ao mesmo tempo em que
evita também instabilidade causada por disputas quanto àqueles interesses.
Fator
chave para escapar desse dilema, é colaboração íntima do Exército Chinês com
autoridades civis, que desempenham a função sensível de promover as
reivindicações marítimas da China.
Para
destacar esse ponto, o documento oferece o argumento político, para justificar
qualquer potencial resposta militar para defender suas reivindicações e outros
interesses.
O
documento requenta o dictum de Mao: “Não atacaremos a menos que sejamos
atacados; mas com certeza contra-atacaremos, se atacados”, num argumento de
defesa contra invasão e ataque nuclear, convertendo-o num alerta a potências
vizinhas: a China “tomará resolutamente todas as medidas necessárias para
salvaguardar a soberania nacional e a integridade territorial”.
Essa
abordagem, espertamente, abre a via para permitir à China consolidar
silenciosamente seus objetivos, ao mesmo tempo em que joga, sobre as costas das
potências vizinhas, o ônus de arriscar-se em qualquer movimento dramático para
impedir qualquer invasão ou infiltração chinesa, todos informados, desde já, de
que “a China explorará qualquer mínimo passo errado, para consolidar cada vez
mais as suas conquistas”.
A
viabilidade permanecerá como chave para a rapidez e a profundidade com que a
China promoverá seus interesses-núcleo. Se os chineses sentirem que sua
capacidade de alavancagem aumentou, a ponto de que possam obter ganhos com
mínimo custo, provavelmente agirão nessa direção. Na medida em que suas ações
revelem-se desestabilizadoras demais, dada a alavacagem insuficiente, Pequim
pode muito bem reduzir a velocidade da consolidação de seus interesses. Além
disso, as tensões entre os imperativos para ampliar o controle sobre interesses
núcleo e manter ambiente de segurança estável não são manobráveis pela China,
cujas capacidades não lhe permitem manobrá-las sozinha.
Esforços
para apertar o controle nas questões em disputa, afinal de contas, sempre geram
instabilidade, e a China não tem poder de alavancagem para obrigar potências
vizinhas, como o Japão, a desistir dos próprios interesses nas disputas
marítimas. A China pois continuará a depender do auxílio dos EUA e outras
potências, para promover a estabilidade internacional e ajudar a China a
consolidar o controle dos interesses dos próprios chineses.
O
Documento Defesa 2012 da China mostra quadro mais claro que os documentos
anteriores de como a China vê a segurança, considerados já seu crescente poder e
novos interesses globais. O consenso político por trás dessa abordagem foi
confirmado no recente 18º Congresso do Partido Comunista Chinês e garante que
essa será a estratégica de segurança em que a China estará trabalhando no
futuro, no mínimo, de curto e médio prazos. Compreender a centralidade dos
conceitos de interesses-núcleo e de missões históricas, no pensamento
estratégico chinês, pode ajudar os políticos a antecipar e responder mais
efetivamente a desenvolvimentos que incluam questões de segurança com os
chineses.
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