quinta-feira, 2 de maio de 2013

Novo quadro conceitual para a segurança: China repensa a Defesa


“A gente aqui aproveita, da CIA, o que nos interesse”

26/4/2013, Timothy Heath, The Jamestown Foundation
Traduzido e comentado pelo pessoal da Vila Vudu

Essa The Jamestown Foundation é um think-tank, instituto de pesquisa e análise, com sede em Washington, fundado em 1984, como plataforma de apoio para dissidentes soviéticos. É instituto de propaganda pró-EUA, que sempre manteve contato muito estreito com a CIA. Mas tem duas interessantes qualidades: não publica exclusivamente “opinionismo acadêmico de repetição” pró-EUA; e só resenha documentos de primeira mão, o que nos interessa, sobretudo em temas, como o que aqui se discute, que absolutamente não aparecem na pauta dos interesses da esquerda brasileira, por mais crucialmente importantes que sejam para a própria esquerda. No instante em que começa a propaganda pró-EUA, paralela à resenha, excluímos os parágrafos. Ver Nota [2].


Esse ano, a China organizou o protocolo oficial anual sobre Defesa em torno do conceito de missões históricas como quadro principal para compreender a missão e as atividades do Exército Chinês [orig. People’s Liberation Army (PLA) (Exército de Libertação do Povo)]. O conceito de “interesses-núcleo”, motor chave das missões históricas, também aparece com destaque no documento anual. [1] O alto destaque que se dá a esses conceitos reflete o maior peso de autoridade que passam a ter, tanto quando o maior poder e influência da China no mundo. Por essas razões, deve-se esperar que Pequim amplie seus esforços para consolidar o controle sobre seus direitos de soberania e para modelar uma ordem internacional favorável.

O título do documento anual de Defesa, “O uso diversificado das Forças Armadas Chinesas” [orig. “The Diversified Employment of China’s Armed Forces”] refere-se às “tarefas diversificadas” (duoyanghua renwu), coração das “missões históricas das forças armadas no novo período do novo século”, referidas quase sempre, mais simplificadamente, como “missões históricas”. O conceito de missões refere-se à orientação estratégica que o (então) presidente da Comissão Militar Central, Hu Jintao, deu aos militares no final de 2004 e que continuou a ser mencionado nos documentos anuais da Defesa até 2006. As missões históricas definem-se por quatro exigências:

(1) oferecem considerável garantia de segurança ao Partido para consolidar sua posição de governante;
(2) oferecem forte garantia de segurança para salvaguardar o período de oportunidade estratégica importante para o desenvolvimento nacional;
(3) oferecem poderoso suporte estratégico para salvaguardar interesses nacionais; e
(4) têm papel importante para salvaguardar a paz mundial e promover o desenvolvimento comum (Constituição do Partido Comunista Chinês [orig. Constitution of the Chinese Communist Party [CCP]). O Exército de Libertação Popular oferece essencialmente substrato fundamental para a primeira exigência, mas não se trata dele, diretamente, no documento. Os demais fatores aí listados dão o quadro geral de todo o conteúdo do documento.

Os interesses núcleo ganham mais importância

O documento de 2012 revisto e agora divulgado dá maior destaque e eleva em importância o conceito de “interesse-núcleo” (hexin liyi). Esse conceito já apareceu de alguma forma nos documentos anuais da Defesa desde 2002. O termo é um conceito do partido que se refere aos mais importantes interesses nacionais, definidos pelos analistas chineses como o coletivo “das demandas materiais e espirituais de um estado e povo”.

A imprensa chinesa explicou com riqueza de detalhes como a evolução de interesses nacionais levou os militares a alterar, atualizando sempre, a própria missão. O desenvolvimento mais recente foi a adição de “interesses do desenvolvimento” [pode-se traduzir também como “interesses desenvolvimentais” (NTs)], ao grupo mais antigo de interesses da segurança e da soberania, assim como um refinamento do significado de todos os três grupos de interesses à luz do crescente poder da China e de sua integração na economia global. Em artigo típico, o Diário do Exército Chinês explicava que o crescimento econômico da China exige agora que o Exército Chinês proteja os “interesses do desenvolvimento” (fazhan liyi) tanto quanto os “interesses da sobrevivência” (shengcun liyi). Comparava as missões e as funções dos militares na “era da agricultura e da indústria”, que se focava no “controle das fronteiras e em defender os territórios”, com as novas exigências das novas missões, de “proteger o desenvolvimento pacífico e o status de grande potência da China” na “era da informação” (Diário do Exército Chinês, 8/12/2005).

Mao Tse Tung
Como as missões históricas, o conceito de “interesse-núcleo” oferece modo mais claro para organizar o pensamento sobre segurança, que a linguagem política das eras Mao (Tse Tung) e Deng (Xiaoping).

Discutir ameaças de segurança em termos furiosamente hiperbólicos, rigidamente ideológicos, é um luxo que se podem dar países comunistas autárquicos, economicamente debilitados; mas que não se possa permitir uma grande potência emergente, sobretudo quando cercada por nações modernas, desconfiadas e pesadamente armadas.

Deng Xiaoping
A modernização do Exército Chinês da era Deng e da era Jiang não se deixou prender nessa armadilha, mas a sempre presente influência da ortodoxia comunista contribuiu para o baixo nível de rigor e para a falta de clareza no pensamento. Por outro lado, delinear categorias de interesses-núcleo que se ligam diretamente às mais altas prioridades estratégicas da China, facilitam as análises mais precisas e permitem que o Exército Chinês priorize responsabilidades; avalie ameaças; e desenvolva planos e capacidades de maneira racional e mais adequada às necessidades de uma grande potência com interesses globais.

Por que os conceitos cresceram em importância

Ambos, os interesses-núcleo e as missões históricas derivam de avaliações formalizadas por volta do ano 2000 – início do que o Partido Comunista Chinês refere como o “novo período no novo século”. Dois importantes desenvolvimentos levaram ao aumento de importância dos conceitos que se constata no documento de 2012: um aumento da capacidade política para decidir [orig. political authoritativeness]; o crescimento relativo do poder chinês, que fez aumentar a viabilidade e a urgência de implementar novas orientações.

A capacidade dos conceitos estratégicos do Partido para conduzir a política é determinada em parte pelo nível de autoridade dos conceitos. Quanto maior a autoridade de um conceito estratégico, maior a probabilidade de que políticas relacionadas a ele encontrem apoio. O mais alto status que um conceito estratégico pode alcançar é ser adotado como parte da “ideário guia” (zhidao sixiang) [no orig. “ideologia guia”, que é tradução errada ou, no mínimo, enviesada (NTs)]. Quando um conceito estratégico alcança esse status, tem autoridade suprema e as políticas a ele associadas sobem em prioridade e em importância.

Os dois conceitos, das missões históricas e dos interesses-núcleo, são associados ao Conceito do Desenvolvimento Científico articulado por Hu Jintao, pouco depois de assumir o poder em 2002. Quando o 17º Congresso do Partido incorporou o Conceito de Desenvolvimento Científico à Constituição do Partido Comunista Chinês, ele acrescentou legitimidade extra aos conceitos de missões históricas e interesses núcleo. No 18º Congresso do Partido, o Conceito do Desenvolvimento Científico ganhou status de “ideário guia”, refletindo forte consenso em toda a liderança (“The 18th Party Congress Work Report: Policy Blueprint for the Xi Administration”, China Brief, 30/11/2012). Assim se afirmou que os conceitos relacionados, de missões históricas e de interesses núcleo, desempenhariam papel definitório no pensamento chinês de segurança. O lançamento do documento da Defesa em formato já revisto é evidência desse desenvolvimento.

18º Congresso do Partido Comunista Chinês (nov/2012)
Além disso, a China viu seu poder nacional relativo continuar a crescer nos anos recentes. Quando a economia chinesa sobrepujou a do Japão, e passou a ser a segunda maior do mundo, em 2010, os chineses viam a economia da União Europeia sempre patinando, e os EUA permanentemente presos em impasses políticos, enquanto os militares chineses continuavam a ganhar poder. Sintoma desse aumento de poder, os esforços de Filipinas e Japão para melhorar suas posições relativas em disputas marítimas contra a China foram contidos pelas reações firmes de Pequim nos casos de Scarborough Reef e das ilhas Diaoyu/Senkaku.
 
Ilhas Diaoyu/Senkaku
O maior poder da China não apenas reforçou sua alavancagem; também fez aumentar o senso de urgência no que tenha a ver com segurança. Em particular, a crescente ansiedade na região, alvo de maior atenção dos EUA (o “reequilibramento” e o “movimento de pivô”) aumentou a importância, para Pequim, de ajustar sua estratégia de segurança, para reduzir vulnerabilidades, proteger interesses-núcleo e modelar um ambiente estável e favorável de segurança, para que a nação possa manter-se concentrada no desenvolvimento rápido e equilibrado.

O contexto da Nova Segurança, no documento de 2012

Assim como (i) as implicações do crescente poder da China numa era de globalização estão no coração do conceito de interesses-núcleo, está no coração do conceito de missões históricas (ii) o desafio de equilibrar um ambiente de segurança pacífico e estável; de proteger um conjunto crescente de interesses núcleo; e a necessidade de reduzir vulnerabilidades estratégicas e proteger um crescente conjunto de interesses núcleo. O documento de 2012 trata das duas questões, oferecendo descrição muito mais aprofundada dos interesses núcleos vistos co ponto de vista dos militares; e expondo o modo como os militares implementam a orientação para as missões históricas.

Interesses-núcleo. O terceiro capítulo do documento trata dos interesses-núcleo de “soberania” e “segurança”. O documento reconhece que, de todos, esses são os interesses-núcleo mais básicos e mais importantes. Além de apresentar as “necessidades-núcleo de segurança” como “defesa nacional, resistência contra agressão estrangeira e defesa da pátria”, o capítulo discute questões de integridade territorial no ar, na terra e nos mares.

Embora não seja novidade, a maior alavancagem que lhe é assegurada pelo poder crescente forçou Pequim a reinterpretar seus interesses de soberania e segurança. Para dar apenas um exemplo, o documento menciona que a Marinha do Exército Chinês faz agora “treinamento para águas profundas” [orig. blue water training], que inclui “alerta remoto precoce” e “interceptação em águas internacionais” [orig. open sea interception].”

A China ampliou, em profundidade, o que entende como saudável necessidade de segurança. O documento também menciona que a China agora tem “interesses de segurança espacial e de cibersegurança”, conceitos que não apareciam em documentos oficiais de dez anos passados.

O quarto capítulo trata dos interesses relacionados ao desenvolvimento nacional. Dois grandes grupos são destacados: direitos e interesses marítimos e interesses no exterior da China [orig. overseas interests]. Os primeiros referem-se a direitos econômicos e legais – minérios, pescado e outros recursos – aos quais a China se sente com direitos. O crescente apetite da China por recursos fez aumentar a importância das regiões marítimas. Além disso, muitas das áreas que envolvem interesses marítimos chineses diretos sobrepõem-se com seus interesses de segurança e soberania, o que faz aumentar o valor estratégico daquelas águas.

Os interesses em regiões distantes do território chinês [orig. overseas interests] destacam linhas marítimas de comunicação e cidadãos chineses que vivem em outros países. Essa é uma área crescente de responsabilidade militar, como se vê na discussão que o documento oferece sobre as missões continuadas para evacuar cidadãos do Golfo de Aden e da Líbia. Essas semelhanças refletem a expansão dos interesses estratégicos chineses, como parte de seu poder crescente e integração na economia global.

Missões históricas. O documento está organizado, em grande parte, em torno do desafio militar para equilibrar o imperativo de garantir segurança ao conjunto crescente de interesses-núcleo, com o imperativo de ajudar a modelar um ambiente favorável de segurança. Isso exige que o Exército Chinês responda a ameaças não tradicionais, como desastres e terrorismo, que podem ameaçar interesses chineses no próprio território e fora dele. O documento usa a expressão ocidental “operações militares não bélicas” [orig. military operations other than war (MOOTW)] para falar desses deveres. Mas o documento deixa claro que a expressão “tarefas diversificadas” [orig. diversified tasks] refere-se à habilidade do Exército Chinês para executar operações de guerra e de não guerra, em apoio ao desenvolvimento nacional. O segundo capítulo do documento relata como a modernização do Exército Chinês o está capacitando para atender a essas novas responsabilidades.

Os capítulos 3 e 4 destacam o papel dos militares, em íntima coordenação com autoridades civis, para proteger a soberania, a segurança e os interesses do desenvolvimento chineses. O quadro mostra que os militares devem oferecer apoio direto a todos os esforços do governo para ampliar incrementalmente o controle administrativo, legal e econômico, de-facto, nas disputas de questões marítimas e outros interesses. Como exemplo, o documento relata como a Marinha do Exército Chinês assegura “apoio de segurança” às polícias marítimas, aos pesqueiros e à exploração de petróleo e gás. Também discute a cooperação com corpos internacionais, para proteger interesses chineses em outras regiões do mundo, fora do território chinês.

O capítulo 5 refere-se à necessidade de “salvaguardar a paz mundial e a estabilidade regional” e trata do papel do Exército Chinês na modelagem de um ambiente favorável de segurança. O Exército Chinês desempenha papel crucialmente importante para promover a estabilidade global e regional, fator crítico para que o desenvolvimento chinês seja possível. Participação nas Operações do Corpo de Paz da ONU [orig. United Nations Peacekeeping Operations (PKO)] também fornece útil cobertura política para aumentar a segurança dos interesses em territórios não chineses; o Exército Chinês já participou em operações da ONU contra a pirataria, para proteger suas linhas marítimas de comunicação, na área próxima do Chifre da África. (...) [2]



Notas dos tradutores

[1]  O documento The Diversified Employment of China’s Armed Forces” [Uso diversificado das forças armadas chinesas], aqui comentado, é acessível, na íntegra, na página Internet do Ministério da Defesa Nacional da China.  
Outros documentos chineses anteriores sobre a Defesa são encontráveis na página Internet do Governo da China. 

[2]  No item seguinte dessa resenha (“Implicações”), o autor - resenhista separa-se da resenha e põe-se a COMENTAR o documento resenhado, numa intromissão de caráter pragmático, na qual o autor dessa resenha interpreta o documento resenhado PARA O SEU GRUPO DE INTERESSE.
Aproveitamos da resenha o que é resenha interessante e excluímos o comentário dirigido à CIA, que não nos interessa (“Implicações”).

Do conjunto de missões do Exército Chinês, a mais desafiadora parece ser a missão de promover a estabilidade regional. A China procura evitar o que considera concessões inadmissíveis no campo de seus interesses, ao mesmo tempo em que evita também instabilidade causada por disputas quanto àqueles interesses.

Fator chave para escapar desse dilema, é colaboração íntima do Exército Chinês com autoridades civis, que desempenham a função sensível de promover as reivindicações marítimas da China.

Para destacar esse ponto, o documento oferece o argumento político, para justificar qualquer potencial resposta militar para defender suas reivindicações e outros interesses.

O documento requenta o dictum de Mao: “Não atacaremos a menos que sejamos atacados; mas com certeza contra-atacaremos, se atacados”, num argumento de defesa contra invasão e ataque nuclear, convertendo-o num alerta a potências vizinhas: a China “tomará resolutamente todas as medidas necessárias para salvaguardar a soberania nacional e a integridade territorial”.

Essa abordagem, espertamente, abre a via para permitir à China consolidar silenciosamente seus objetivos, ao mesmo tempo em que joga, sobre as costas das potências vizinhas, o ônus de arriscar-se em qualquer movimento dramático para impedir qualquer invasão ou infiltração chinesa, todos informados, desde já, de que “a China explorará qualquer mínimo passo errado, para consolidar cada vez mais as suas conquistas”.

A viabilidade permanecerá como chave para a rapidez e a profundidade com que a China promoverá seus interesses-núcleo. Se os chineses sentirem que sua capacidade de alavancagem aumentou, a ponto de que possam obter ganhos com mínimo custo, provavelmente agirão nessa direção. Na medida em que suas ações revelem-se desestabilizadoras demais, dada a alavacagem insuficiente, Pequim pode muito bem reduzir a velocidade da consolidação de seus interesses. Além disso, as tensões entre os imperativos para ampliar o controle sobre interesses núcleo e manter ambiente de segurança estável não são manobráveis pela China, cujas capacidades não lhe permitem manobrá-las sozinha.

Esforços para apertar o controle nas questões em disputa, afinal de contas, sempre geram instabilidade, e a China não tem poder de alavancagem para obrigar potências vizinhas, como o Japão, a desistir dos próprios interesses nas disputas marítimas. A China pois continuará a depender do auxílio dos EUA e outras potências, para promover a estabilidade internacional e ajudar a China a consolidar o controle dos interesses dos próprios chineses.

O Documento Defesa 2012 da China mostra quadro mais claro que os documentos anteriores de como a China vê a segurança, considerados já seu crescente poder e novos interesses globais. O consenso político por trás dessa abordagem foi confirmado no recente 18º Congresso do Partido Comunista Chinês e garante que essa será a estratégica de segurança em que a China estará trabalhando no futuro, no mínimo, de curto e médio prazos. Compreender a centralidade dos conceitos de interesses-núcleo e de missões históricas, no pensamento estratégico chinês, pode ajudar os políticos a antecipar e responder mais efetivamente a desenvolvimentos que incluam questões de segurança com os chineses.


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