O Departamento de Justiça dos EUA ALTERA a própria definição de terrorismo
para colocar Assata Shakur [1] na lista do FBI
11/5/2013, Paul Jay entrevista Michael Ratner, TRNN (vídeo)
Entrevista traduzida da
transcrição pelo pessoal da Vila Vudu
PAUL
JAY, editor sênior de TRNN: Estamos
com Michael Ratner, que fala conosco de New York City.
Michael
Ratner é presidente emérito do Centro pelos Direitos Constitucionais e
presidente do Centro Europeu pelos Direitos Constitucionais e Direitos Humanos,
em Berlim. E é membro do Conselho Editorial de nossa TRNN.
JAY:
E então, Michael, falaremos sobre o quê, hoje?
RATNER:
Gostaria de falar do que aconteceu há alguns dias, dia 2 de maio, quando o
governo dos EUA, através do FBI, pela primeira vez na história, incluiu uma
mulher na lista dos “Dez Mais Procurados Terroristas”. É a lista dos dez
terroristas mais procurados. O nome dela é Assata Shakur, 66 anos, agora
incluída na lista dos dez terroristas mais procurados pelas autoridades
policiais dos EUA.
Assata
Shakur [1], de
quem muitos talvez nunca ouviram falar, vive em Cuba desde 1979 (ver abaixo,
nota mais detalhada sobre ela).
Há
duas razões pelas quais quero falar sobre esse caso. Primeiro, que é caso
antigo. O crime pelo qual Assata Shakur foi condenada ocorreu há 40 anos. Ela
fugiu da prisão e, desde 1979 vive em Cuba. E agora, de repente, no 40º
aniversário do evento... o FBI a inclui numa lista de terroristas procurados e
espalha cartazes em New Jersey
falando de uma “Assata Shakur, terrorista procurada”.
A
primeira coisa que me espanta, além dos 40 anos e de não se ver causa para esse
movimento repentino, é usarem a palavra “terrorista” aplicada a Assata Shakur.
Porque vejo aí uma tendência perigosa. Tudo aí é tendência perigosa: os EUA tem
definição legal para “terrorista”, e a palavra é usada levianamente, a torto e a
direito. “Terrorista” é quem usa de violência ou ameaça usar, contra civis ou a
população civil, com objetivos políticos. É a definição clássica, da ONU etc.,
há adereços que se acrescentam aqui e ali, mas, na essência, é isso.
E
Assata Shakur, tanto quanto se sabe e mostram os registros legais oficiais,
jamais praticou qualquer violência contra qualquer civil – é provável até,
dependendo de mais pesquisa nos autos para confirmar, que jamais tenha praticado
qualquer violência contra qualquer pessoa, civil ou não. Mas com certeza jamais
foi acusada de praticar violência contra civil. Foi condenada na acusação de ter
participado em ação na qual morreu um policial, não um civil. O que se vê, pois,
é que o FBI ampliou a definição legal de terrorismo, que já inclui, pelo menos
nesse caso, qualquer crime comum.
Percebi
isso e lembrei das primeiras conversas que tive, logo depois do 11/9, com o
pessoal do Departamento de Justiça que começava a classificar “procurados” fora
dos EUA, militantes, imediatamente definidos como “terroristas”, como eles
diziam. E aqueles terroristas eram julgados por tribunais militares, nada se
sabia sobre o processo e estavam sendo levados para Guantánamo. Todos
predefinidos como “terroristas”. Lembrei que o Departamento de Justiça – o
Procurador Geral era [John] Ashcroft – disse-me, naquele momento: “não estamos
interessados só nos terroristas de fora; vamos fazer também contra o terrorismo
doméstico. Queremos julgamentos especiais para terroristas domésticos. O
judiciário regular não basta, nesses casos. Essa gente não merece direitos
constitucionais”. Agora, tantos anos depois, selecionam alguém como Assata – e
estou convencido de que sempre foi inocente no crime pelo qual foi condenada,
que a condenação foi um erro. Mas o principal é escolherem Assata, condenada por
crime comum, sem nada a ver com terrorismo, e “redefinem” o crime e a pena.
Essa
é tendência terrível. Mas aí está, à vista de todos. Vê-se a caminho, em
andamento, também no caso de Boston. De fato, ainda não há decisão judicial
sobre se aquilo foi ou não ato terrorista. Por que seria “mais terrorista” que
outros casos de assassinatos em massa, que, infelizmente, veem-se frequentemente
nos EUA? Por que os criminosos da Maratona de Boston são “terroristas” e alguém
que mate a tiros dezenas de crianças numa escola não é “terrorista”? É como se o
FBI, não o Congresso, estivesse redigindo as leis...
JAY:
Parece que o governo dos EUA está dizendo que qualquer ato contra soldado, ou,
no caso, contra policial, quer dizer, contra qualquer representante armado do
Estado... é terrorismo, mesmo que não seja ato praticado contra civil, como diz
a definição da lei. De fato, é quase como declarar que qualquer manifestação
política contra o Estado armado nos EUA... seria “terrorismo”, sem considerar o
que diz a lei.
RATNER: Minha
impressão é que sim, pode-se interpretar exatamente assim o que andam dizendo. É
bem astuto, e é a única coisa que faz sentido, ante o que se vê. Não faria
sentido algum, se se exigisse que, para ser condenado por terrorismo houvesse
ataque a populações civis. Mas encaixa-se perfeitamente bem se se considera o
que o mesmo governo dos EUA faz pelo mundo: define atos de guerra, em todo o
mundo, como terrorismo... Assim, se há ataque contra soldados norte-americanos
que praticam atos de guerra em outros países, a reação... é terrorismo. Todos os
soldados de exército inimigo são, assim, terroristas. Não esqueçamos que a
guerra é regida por regras e leis. O terrorismo, não. A verdade é que ampliaram
de tal modo a definição de terrorismo que uns podem fazer qualquer coisa e
não são terroristas; e outros, façam o que fizerem, sempre serão
terroristas... A lei não significa coisa alguma, para uns. E pode significar
qualquer coisa, para o outro...
Por
tudo isso, veja aí uma tendência apavorante, inacreditavelmente ameaçadora. O
passo seguinte será tratar qualquer crime como terrorismo. E isso implica
tribunais militares para todos os casos, todos os cidadãos, ainda que
criminosos, passam a ser tratados como combatente inimigo... O que já se disse,
no caso dos acusados do que se viu na Maratona de Boston.
Se
se consideram outros aspectos do caso Assata, ela recebeu asilo do governo
cubano. E, se o governo cubano decidiu dar-lhe asilo, é claro que tem pleno
direito de não atender nenhum pedido de extradição, no caso de Assata. Os EUA,
mais uma vez, optam aí por ignorar a lei.
Um
terceiro aspecto importante do caso Assata é o próprio processo e o julgamento.
Há muitos motivos para suspeitar-se de que ela tenha sido vítima de um
julgamento exclusivamente político, ao arrepio da lei. Ela estava dirigindo um
carro pela New Jersey Turnpike; no
carro, com ela, que é negra, havia dois – ou três, se lembro bem – negros. Ela
parou o carro. Chegaram os policiais. E mais nada se sabe... até que já havia um
policial morto. Não se sabe o que aconteceu. Não há prova, sequer, de que Assata
estivesse armada. Há quem diga que sim. Mas não há provas. Há provas, isso sim,
da perícia, de que Assata foi ferida a tiros, nas costas. No final do processo,
é condenada pelo assassinato de um policial.
Ora,
a primeira coisa que chama a atenção é... Você sabe que, como se diz, há nos EUA
uma infração de trânsito conhecida como “dirigir em estado de negro”... Todos os
negros, nos EUA, podem contar casos em que foram parados por policiais,
exclusivamente por estarem dirigindo o próprio carro. A New Jersey Turnpike naquela época, como
até hoje, é famosa pelo grande número de policiais que fazem parar e revistam
carros dirigidos por negros. É muitíssimo provável que, naquele dia, o que quer
que tenha acontecido, tenha começado assim.
Além
de tudo isso, não se pode esquecer que Assata era líder política ativa e
conhecida. Era membro do Partido dos Panteras Negras, líder importante...
A
verdade é que começar a “decidir” que gente como Assata seria terrorista... é
como retroceder àquele período terrível, inacreditável, dos anos 60s e 70s,
quando os negros norte-americanos eram muito ativos na luta para mudar o mundo
carregado de obstáculos e preconceitos em que viviam nos EUA. Naquele momento, o
caso teve vastíssima repercussão, entre os negros e no país inteiro.
A
ideia de que voltem àquilo, em 2013 [fala cruzada]
JAY:
Mas... por quê? Por que, por que começariam agora a espalhar cartazes e fazer
todo esse barulho?
RATNER: Ainda
bem que você perguntou. Porque não só a rotulam hoje como “terrorista”: também
dobraram a recompensa a quem ajude a prendê-la. Agora, são $2 milhões de
dólares.
Não
podemos esquecer o fato de que ela, hoje, vive em Cuba. Todos os anos, 600 mil
pessoas viajam de Miami a Cuba. Os meus velhos cubanos... Você sabe que tenho
muitos amigos cubanos. A verdade é que criaram um risco gravíssimo à própria
segurança dela. É procurada. Os cartazes não dizem “viva ou morta”, mas Assata é
fugitiva procurada. Não faltará quem, interessado nos $2 milhões, vá à caça.
Pode haver troca de tiros. Talvez a matem. Talvez tentem sequestrá-la. Tudo pode
acontecer, porque o nome dela está numa lista de terroristas, com recompensa de
$2 milhões de dólares.
A
questão, então, é por quê? Há muita gente tentando responder essa pergunta. Será
que sabem do que nós não sabemos? Estará havendo um renascimento, sabe-se lá, de
alguma militância entre os negros e, para contê-la, inventariam que todos os
militantes são terroristas? A ideia será redefinir o ativismo dos negros
norte-americanos como “terrorismo”? É possível. Há o aspecto “cubano”. Há um
prisioneiro em Cuba, Alan Gross , os cubanos
o condenaram, acusado de contrabandear material eletrônico para Cuba, para
atividades subversivas. Está preso em Cuba. Os EUA o querem de volta.
Os cubanos responderam que foi acusado, julgado e condenado legalmente. Que de
lá não sai até cumprir a pena. Há, nos EUA, “Os Cinco Cubanos” [para os cubanos,
“Os Cinco Heróis”], que já são quatro. Foram condenados por espionagem. Os
cubanos os querem de volta. O caso de Assata Shakur, em 2013, pode ser parte de
tudo isso...
Fato
é que Cuba é país que, ano após ano, os EUA põem em sua lista de terroristas.
Isso tem implicações gravíssimas. Há só seis ou sete países do mundo, nessa
lista. A inclusão nessa lista implica embargo, congelamento de fundos, cria
condições para um sem número de processos judiciais. E entra ano, sai ano, Cuba
sempre está nessa lista. Por quê? Cuba jamais praticou qualquer ato terrorista,
nunca se ouviu falar de terrorista cubano. Não há. Mas a lista nunca muda.
Cartaz distribuído pelo FBI em 9/5/2013 |
A
declaração emitida pelo Departamento de Estado, de fato, pelo FBI, diz que
incluíram Assata na Lista dos Terroristas Mais Procurados porque ela “fez
declarações” que ameaçam o povo dos EUA ou ameaçam civis... Qualquer coisa,
porque não há prova alguma de coisa alguma e de declaração alguma. Além do mais,
não há lei que impeça alguém de fazer declarações. Mas Assata não disse coisa
alguma. Nunca ninguém ouviu declaração alguma. Pode ser alguma coisa do tipo
“Cuba está na lista de estados terroristas, porque abriga Assata, terrorista”...
Inventaram um motivo, afinal.
Claro
que, se vamos mesmo falar de estados que abrigam terroristas... Você sabe que a
lista de terroristas que vivem nos EUA é longa, temos aqui terroristas de toda a
América Latina, da América Central, de outras partes do mundo, temos aqui também
terroristas nascidos em Cuba. Se há país que deveria estar em lista de países
terroristas... E sem falar em gente como Bush , que
espalharam terrorismo pelo mundo. E outros, que vivem hoje de “dronar”m civis pelo planeta. E, sim, abrigamos nos EUA
terroristas do mundo inteiro.
Em
resumo, ainda não se pode entender a política, hoje, por trás do caso de Assata
Shakur. Talvez tenha algo a ver com os negros, nos EUA, hoje. Minha avaliação
inicial é que tem a ver com isso e com Cuba. Seja como for, os efeitos são
dramáticos, porque Assata, que até ontem podia andar pela rua com razoável
segurança, hoje está sob risco mortal. Isso é assustador. É gravíssimo, também,
que os EUA comecem a tratar crimes comuns como terrorismo. Haveremos de superar.
Mas não há dúvida de que o momento é muito grave.
[agradecimentos
e fim da entrevista]
Nota
dos tradutores
[1]
Assata Olugbala
Shakur
(nascida nos EUA em 16/7/1947, então JoAnne Deborah Byron, depois de casada,
Chesimard) é ativista afro-norte-americana, condenada à prisão nos EUA e hoje
fugitiva, que foi membro do Partido dos Panteras Negras e do Exército para
Libertação dos Negros (ELN, de militância armada).
Entre
1971 e 1973, Shakur foi acusada de vários crimes e alvo de caçada humana que se
estendeu por vários estados dos EUA.
Em
maio de 1973 [há exatos 40 anos], Shakur envolveu-se num tiroteio em New Jersey, do qual resultaram mortos um
policial e um militante do ELN e Shakur e foram feridos a própria Shakur e outro
policial. Entre 1973 e 1977, Shakur foi indiciada como suspeita de participar em
seis outros supostos crimes – foi acusada de assassinato, tentativa de
assassinato, roubo à mão armada, assalto a banco e sequestro. Foi absolvida em
três dos processos e três outros casos nem chegaram a julgamento por falta de
provas.
Em
1977, foi condenada a prisão perpétua, pela morte de um dos policiais mortos em
maio de 1973 e por outros sete crimes associados àquele tiroteio.
Foi
presa e passou por várias prisões, ao longo dos anos 70s. Conseguiu fugir em
1979, reapareceu em Cuba, país que lhe concedeu asilo político em 1984. Dia
2/5/2005, o FBI classificou-a como “terrorista doméstica” e ofereceu recompensa
de $1 milhão de dólares por pista que levasse à captura dela.
Shakur
é tia do conhecido cantor Tupac Shakur, enteado de seu irmão Mutulu Shakur. Sua
vida foi tema de romances, filmes e canções.
Dia
2/5/2013, o FBI incluiu Assata Shakur em sua lista de “Principais Terroristas
Procurados”, com recompensa de $2 milhões por pista que leve a prendê-la.
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