Publicado
em 10/11/2011 por *Urariano
Motta
Recife
(PE)
- O
leitor não se assuste, que o título acima não é de memórias que entraram numa
fria. Trata-se do nome do livro que um grupo de amigos, no vigor dos 60 anos,
resolveu escrever sobre o bairro da sua infância e juventude. Bairrismo literal
à parte, Água Fria bem merece. Bem posto na zona norte do Recife, o bairro foi
berço ou abrigo de artistas, atletas, políticos, escritores e bandidos, mas nem
sempre nessa ordem.
Dos
mais famosos lembram-se o gênio Sivuca, o cineasta Vladimir Carvalho, o cantor
Orlando Dias, o Mestre Ginu do Mamulengo, o goleiro Manga, mais o Pai Adão do
Xangô, o Maestro Formiga, o seu João do Caldíssimo e o herói Gregório Bezerra.
Dos menos, ou melhor, nada famosos, vêm o autor destas linhas e outros
marginais, alguns doutores em universidades, até reitores, que trocaram o caldo
de cana com pão doce pelo uísque 12 anos.
Se
o livro fosse um filme da Metro Goldwyn
Mayer passando no Cine Império, o maior do bairro em 1960, logo depois do
rugido fascinante do leão iria aparecer na tela em letras
colossais:
“A
Editora Coqueiro tem o grato prazer de oferecer
“Memórias
de Água Fria” -
o
livro que conta a história do bairro pelos seus mais apaixonados habitantes.
Sexo, roubo, crimes, amor e aventura estão nesse encontro de onze grandes
marginais, ex-lascados de vida, que agora pensam que estão ricos e se acham até
escritores”.
Depois,
com imagens na tela de mulheres com seios entrevistos e de sombras correndo em
frente à igreja de Santo Antonio, de sons de batuques e de gargalhadas moleques,
gritando em falsete, “Aaaaaiiii”, o locutor com voz das cavernas
narraria:
“Água
Fria dos carnavais, dos roubos de cocos, de ladrões jovens que viraram doutores.
Água Fria dos adolescentes queijudos flagrados em sua primeira noite na zona.
Água Fria de seu João do Caldíssimo, o caldinho que recebia anúncio grátis de
Paulo Gracindo via Embratel. Água Fria do terreiro de Pai Adão, o mais antigo
templo de xangô do Nordeste. Água Fria das namoradas que não envelhecem nunca
está de volta.
Sexta-feira
11 de novembro, no colégio Alfredo Freyre, às sete e meia da
noite”.
Mas
fora da tela, em suas páginas, podem ser vistos lirismo, humor, revelações,
segredos inconfessáveis, declarações de amor, história do bairro e afirmação de
identidades, tão dispersas hoje por tempos e lugares do Brasil. De um trecho do
livro, destaco:
“O
cérebro, resistente, vagava por lugares e tempos mais longes. Vagava nos ciúmes
que eu tinha por uma moça mais velha, porque ela recebeu namorado diferente de
mim. O cérebro andava por brinquedos fundamentais, como o desenho a carvão nas
calçadas, o cérebro viajava por, o quanto isto é fundamental (é isso, a gente
escreve também para se descobrir), um boneco negro de nome Benedito, que um
ventríloquo trazia para a frente do mercado público de Água Fria. O boneco
falava, e me persegue até hoje. É um sonho que não me deixa. Eu sempre pedia à
minha mãe, quando ela saía: “quando voltar, me traga o boneco que fala”. O
cérebro vagava mais longe, até a minha cadela Xandu, uma cadela com olheiras,
que um carro matou. O cérebro vagava mais, até que eu notei, enfim, que os anos
mais dignos de serem vividos , revividos, estão na primeira infância. Então
descobri, como uma coisa que não era só de Manuel
Bandeira:
‘Quando
comparo esses quatro anos de minha meninice a quaisquer outros quatro anos de
minha vida de adulto, fico espantado do vazio destes últimos em cotejo com a
densidade daquela quadra distante’.
Não
é que a vida tenha parado depois. Não é nem mesmo que grandes e importantes
fatos não tenham cruzado o nosso caminho nos anos de juventude e maduros. É a
comparação, o cotejo dos primeiros anos com os vindos depois, que mostra a
diferença a favor da primeira idade. E agora ouso acrescentar mais alguma coisa
às linhas do maior poeta brasileiro. A consciência desses primeiros anos é que
talvez seja o maior acontecimento, o saber que não poderemos mais reter aquela
doçura do nunca visto antes. Ainda que seja uma consciência de compensação, com
um travo, que nos faz até pensar que talvez fosse até melhor não tê-la, se em
troca nos oferecessem os primeiros anos. Ainda assim, é melhor a consciência do
perdido que a posse fugaz do que não podemos tomar, sorver em toda a plenitude.
Isso porque é impossível guardar o frescor da infância com a experiência
madura”.
Que
venham mais livros de memórias dos bairros. O Brasil inteiro tem muitas Águas
Frias.
*Urariano
Motta é
natural de Água Fria, subúrbio da zona norte do Recife. Escritor e jornalista,
publicou contos em Movimento, Opinião, Escrita, Ficção e outros periódicos de
oposição à ditadura. Atualmente, é colunista do Direto da Redação e colaborador
do Observatório da Imprensa. As revistas Carta Capital, Fórum e Continente
também já veicularam seus textos. Autor de Soledad
no Recife (Boitempo,
2009) sobre a passagem da militante paraguaia Soledad Barret pelo Recife, em
1973, e Os
corações futuristas
(Recife,
Bagaço, 1997).
Enviado
por Direto da
Redação
(comentário enviado por e-mail e postado por Castor)
ResponderExcluirMas que descrição emocionante de um "livro de bairro",
como David Neves chamava cada um dos seus derradeiros(*) filmes (Muito prazer, Fulaninha e Jardim de Allah): filmes de bairro, inspirados em seu "cinema de molhos", assim também o falecido Poeta do Cinema Novo expunha sua teoria fílmica. O tema me fascina pessoalmente, já que, ambíguo como sou, tive uma infância-adolescência dividida entre Copacabana, Ipanema (anos-30), Centro e Penha Circular (anos-40/50), como Tati, a garota, de Aníbal Machado.
E como sempre você tem plena razão, mestre Urariano, nossos bairros estão à espera de mais letras e mais filmes. No meu Rio de nascença, aquele que deixou de existir vitimado pela "história rápida", só Vila Isabel logrou ascender á popularidade, graças a Noel, Aracy de Almeida, Aldir Blanc, visitantes ilustres e outros.
Adorei a capa do livro, aquele Cine Império de modesta fachada art-déco suburbana, como os Penha, Brás de Pina, Santa Cecília, Olaria, Ramos e Bonsucesso dos meus tempos. Flash Gordon, Fu Manchu e filmes de guerra, "de mocinho", até os primeiros neo-realistas desfilariam diante dos meus olhos extasiados, acompanhando minha Vó (1944-49). Esta, ao meu lado, sentada naquelas cadeiras-de-pau, comentava em voz alta as crises dramatúrgicas de E o vento levou e Strômboli ("com aquela sueca sem-vergonha que abandonou o marido pelo italiano casado que fez essa porcaria de filme, com gente pobre o tempo todo!..."). As especulações imobiliárias do neocapitalismo demoliriam aqueles monumentos ou comerciantes e "evangélicos" as transformariam em mercadões e mercadinhos de alimentos, bugingangas e dos sonhos crentes de fieis.
Sou de uma geração sem TV - graças a Xangô, Aïrá, saravá! - esses pastores "bíblias" agenciados pela Direita Republicana, CIA et cataerva e os carrinhos de que o crédito safado facilita a aquisição e estragam nossas cidades. Progresso?
Guarde um exemplar, por favor, para a minha volta definitiva da Coreia do Norte, após meio século de carreira e 38 anos de exterior pelos cinco continentes... Seu bairro ensinou-lhe mais que todo esse mundo afora em que tenho vivido, pode crer, você o sabe.
Grande abraço de parabens aos aguafrienses do
ArnaC.
(*) Houve, claro, a feliz "interrupção" do ilhéu Luz del Fuego.