Pepe Escobar |
11/11/2011,
Pepe Escobar, Al-Jazeera,
Qatar
Traduzido
pelo Coletivo da Vila
Vudu
A
revolução consiste em amar um homem que ainda não existe.
(Albert Camus, O Homem Revoltado [1951]. Ver nota
7)
Epígrafe
acrescentada pelos tradutores.
A anti-revolução dos 1% contra os
protestos começou e será mais que implacável
|
Estamos
numa rota de colisão, na finança global 2.0. A dívida está do lado atlanticista,
no norte rico. Os recursos estão no sul global. E o banqueiro (relutante)
supremo de último recurso é o Império do Meio, personificado por Sua Alteza Hu
(Jintao).
O
nome do jogo – Marx revisitado por Occupy o Mundo – é luta de classes. É o
capitalismo de cassino, também conhecido como turbo-neoliberalismo financeiro,
como é praticado pelo 1% de uma elite da modernidade líquida, versus os têm-alguma-coisa, os nada-podem-ter e os
nada-têm, também conhecidos como os 99%.
Não
poderia haver demonstração mais gráfica da tese de Slavoj Zizek (de que acabou o
casamento entre capitalismo e democracia [1]), que
a tomada, pela tragédia grega, do festival de Cannes da dívida [2]. Se
há algo que aterroriza de modo terminal a oligarquia da União Europeia, é o
conceito de “referendo popular”.
Como
se atrevem a consultar a escória, sobre nossa política de Austeridade Forever [para sempre, eterna], a única austeridade
capaz de satisfazer os mercados financeiros?!
Basta
falar em referendo, e aqueles zumbis jamais-eleitos, como o presidente do Banco
Central Europeu, ECB, Mario Draghi (ex-vice-presidente de Goldman Sachs
International), o presidente do Conselho Europeu Herman van Rompuy (membro da
Comissão Trilateral e do clube Bilderberg [3]); e o
presidente da Comissão Europeia, João Manuel Barroso, põem-se imediatamente a
sonhar com uma cerrada zona aérea de exclusão, carregada pela OTAN com muitos
aviões-robôs comandados à distância,
drones, e muitos soldados das Forças Especiais, só para fazer
valer a vontade dos zumbis.
Rendição
ou morte
O
roteiro made in Frankfurt assinado pelo Banco Central
Europeu é trazido até vocês pela escola TINA (“there is no alternative”;
aprox. “Não há escolha”). A ação, monocromática, tediosa, mistura, como qualquer
um adivinha, de privatizações selvagens e devastação
social.
A
Europa “Democrática” funciona exatamente como nos bons velhos tempos de
Brezhnev: a “troika” – FMI, o Banco Central Europeu e a União Europeia –
tem poder totalitário, embora pelo método confuso. [4]
“Merkozy”
– resultado de polinização cruzada monstro/robótica – só pode, mesmo, emitir um
ganido ameaçador: “Coooon... traaatos”. [5]
Não
importa que a Itália tenha superávit primário. Não importa que a dívida pública
da Itália, combinada com sua dívida privada, corresponda a 250% do PIB da Itália
– muito menos do que se vê hoje na França, no Reino Unido, nos EUA e no
Japão.
A
Itália está lançada ao vulcão, porque o monstro “Cooon ... traaact” da União Europeia jogou Itália na
recessão.
E
não há “mudança de regime” que faça, aí, qualquer diferença.
Não
surpreende que o principal candidato para suceder o primeiro-ministro Silvio
"bunga bunga" Berlusconi seja Mario Monti; ex alto diretor do Conselho Europeu,
presidente europeu da Comissão Trilateral e membro do grupo Bilderberg. Mais um
luminar quintessencial do 1%.
A
“Europa” – feito sub-seita das oligarquias franco-germânicas – imaginou que a
eurozona poderia ser salva pela “coisa” que atende pelo nome orwelliano de Fundo
Europeu para a Estabilidade Financeira [ing.
European Financial Stability Facility (EFSF)]. Mas agora, até esse embuste – que não passa
de um feixe de “garantias” distribuídas por uma empresa de fachada instalada em
Luxemburgo – já está à beira de ser engolida pelo Zumbi Supremo, o Deus do
Mercado.
Hoje,
até um fundo-monstro inventado à moda pervertida dos Goldman Sachs já dá sinais
desesperados de que precisa, ele também, de “resgate”. Vocês não podem nem
imaginar. Nem Hollywood algum dia pensaria num roteiro desses.
Enquanto
isso, a dama da bolsinha do FMI, a dos
tailleurs de
irrepreensível alta alfaiataria, Christine Lagarde, anda batendo à porta de
Rússia e China, pedindo um pouco de dinheiro-de-bolso.
Mas Madame Lagarde, quando medita em solilóquio com
seus botões Dior, sabe muito bem que não decolará, e que não bastará “salvar” o
modelo que o FMI, o Banco Central Europeu e a dupla “Merkozy” insistem em
continuar a aplicar.
Jovem, olhe para o sul [6]
Jovem, olhe para o sul [6]
Os
indignados globais – da Grécia e Espanha aos EUA e por todo o mundo – já
entendem, pelo menos, boa parte das maquinações dos 1%.
Já
sabem, por exemplo, do desempenho espetacular das mercadorias listadas no índice
de commodities de Goldman Sachs
– as mais vendidas em todo o mundo. O pessoal do 1% já conseguiu duplicar e até
triplicar o preço do trigo, do arroz, do milho – o que já empurrou centenas de
milhões dos 99% do mundo para situação de fome terminal.
Como
não pensar que outro mundo tem de ser possível?
Os
99% do movimento Occupy o Mundo são
sonhadores, no sentido dos sonhadores de Maio 68 – “seja realista: exija o
impossível”. Sonhadores que sonham por vias deliciosamente frescas, renovadoras,
horizontais – nem verticais nem piramidais.
Querem
resgatar a política – hoje, que os políticos já perderam toda a legitimidade –
mas em debate de ideias, não de egos ou pura ideologia. A patética farsa que foi
a reunião do G-20, semana passada, mostrou mais uma vez que os 99% estão
certos.
Querem
uma República em sentido comum, do bom senso republicano. Querem uma assembleia
popular por bairro, por vila. São contra usar o dinheiro como valor moral e as
finanças de cassino como alguma espécie de Deus irado. Querem resgatar o poder
da inteligência coletiva.
Agora,
precisam alcançar massa crítica, por todo o planeta.
Em
certo sentido, é como se tivessem feito alguma leitura coletiva de O Homem Revoltado [7] de
Albert Camus, publicado há 60 anos. Os 1% daquele tempo não deram qualquer
importância ao que, para eles, nunca passaria de um argelino insignificante,
filho de empregada doméstica, sem diploma, que apareceu, posando de
filósofo.
Mas
muito antes da geração Google e Twitter, Camus mostrou como a revolta
inevitavelmente migra, de respostas individuais, para uma resposta coletiva,
ideia guardada como jóia preciosa numa bela expressão: “Eu me revolto, logo, nós
existimos”.
Mas,
que ninguém se engane. A contrarrevolução do turbo-capital já está a caminho –e
será além do pior dos piores. A história mostra que todas as crises do
capitalismo sempre foram “resolvidas” por repressão cada vez mais cruel.
É
absolutamente urgente e necessário procurar estratégias efetivas. Vale tudo: de
convocar greve geral a convocar debates com vistas a criar novos grupos
políticos.
Todos
somos responsáveis
A
América Latina, que já sobreviveu a tsunamis de mortais “ajustes estruturais” do
FMI, e está hoje, lentamente, já forjando a própria integração com
independência, que sempre lhe foi negada pelos 1% neocolonialistas e seus
satrapas locais, pode ajudar muito.
Em
discussão muito iluminadora com líderes do Movimento dos Trabalhadores Rurais
Sem Terra – o MST brasileiro, dos mais importantes movimentos sociais do planeta
– ouvi deles a explicação de como ajustaram-se, como movimento, a partir da luta
por uma reforma agrária, para combater batalha muito mais nuançada contra os
interesses do atual, poderoso bloco do
agrobusiness, bloco que forjou uma complexa e intrincada aliança
com o governo Lula.
Vê-se
assim que até um movimento social amplo, com gigantesca base popular, tem,
sempre, constantemente, de recalibrar a própria luta estratégica.
Em front paralelo, o mundo espera urgente
tradução para o inglês de La
Potencia Plebeya
[8]
–
coleção de ensaios e ideias do vice-presidente da Bolívia Álvaro Garcia Linera,
um dos intelectuais mais crucialmente importantes em ação hoje na América
Latina.
Linera,
em resumo, ilumina os modos pelos quais os 1% e seus fantoches “venderam” o
conceito de interesse público como se fosse esfera separada da vida da sociedade
civil. E como se a sociedade civil só pudesse existir no mundo político, se se
deixasse subordinar por mediadores ou pregadores políticos.
Isso,
diz Linera, é um arcaísmo que começa em Hobbes e Montesquieu. E os 99% têm de
saber disso – e combater esse conceito.
Linera
cunha o conceito de “cidadania não responsável”, para descrever as massas cegas
e desorientadas, que votam enfeitiçadas pelo ideário e as práticas da farsa
neoliberal.
Para
essa “cidadania não responsável”, o “exercício de direitos políticos não passa
de cerimônia apenas ritual na qual renunciam ao próprio desejo político e ao
próprio desejo de governar, e o entregam a uma nova casta de proprietários
privados da política, que se autoatribuem, eles a eles mesmos, o conhecimento
exclusivo de sofisticadas e impenetráveis técnicas de mandar e de
governar”.
A
luta decisiva, portanto, é contra esses “proprietários privados da política” – e
o 1%, que os comandam. É a mesma luta, seja no Cairo seja em Manhattan, Madrid
ou Lahore.
G-20?
Esqueçam! São, mesmo, o G-7 (bilhões). Se estamos realmente indignados contra um
sistema que temos de derrubar, todos somos responsáveis.
Notas
dos tradutores
[1]
Ver
8/11/2011, Slavoj Zizek fala à rede Al-Jazeera: “Agora,
o campo está aberto” (vídeo e entrevista transcrita), em
português.
[3] “O Clube de
Bilderberg
é uma conferência anual não oficial cuja participação é restrita a 130
convidados, muitos dos quais são personalidades influentes no mundo empresarial,
acadêmico, mediático ou político, que se reúne desde 1954. Devido ao fato das
discussões entre as personalidades públicas oficiais e líderes empresariais
(além de outros) não serem registradas, estes encontros anuais são alvo de
muitas críticas (por passar por cima do processo democrático de discussão de
temas sociais aberta e publicamente). O grupo reúne-se anualmente, em segredo,
em hotéis cinco estrelas reservados espalhados pelo mundo, geralmente na Europa,
embora algumas vezes tenha ocorrido nos Estados Unidos e Canadá. Existe um
escritório em Leiden, nos Países Baixos”.
[4]
Orig. shambolic. Palavra difícil
de traduzir, porque o nosso “simbólico” não inclui os traços semânticos de
“shamble” (cacos), e outras soluções que reforçassem os traços semânticos de
“cacos”, perderiam os de “símbolo”. Optamos aí – é escolha arriscada, mas, azira. Nenhuma tradução é perfeitamente
isenta de riscos – pela expressão “método confuso”, um oxímoro, que, contudo tem
rica história semântica no português do Brasil, desde 1920 embora, claro, só
para os que conheçam História do
Brasil pelo método confuso, de Mendes Fradique, editado no Brasil em
1920 e reeditado pela Companhia das Letras em 2010. Livro,
paródico.
[5]
Orig.
'Coon... traaaact”. Pareceu-nos totalmente intraduzível. “Coon”
significa “rato” (gen. Como em racoon), usado, na gíria, no sentido de
“ratazana”, aplicado, pejorativamente, para “negros”. E “tract”, em grafia
onomatopaica “traaaaact”, pode ser “trato”, como em “trato digestivo” e em
“trato”, “acerto, combinação, pacto (além de outras acepções). A grafia da
palavra, no original, faz lembrar também o sotaque dos Merkozy, quando falam inglês. Qualquer
caminho que se escolhesse, por aí, para traduzir, perderia significados
relevantes do original e, principalmente, faria desaparecer o “contratos”, muito
visível em inglês. Optamos pela solução que se lê acima, com essa
nota.
[6]
Dia
7/11/2001, o Wall Street
Journal publicou matéria intitulada
“Looking
for Euro-surance? Look East, Young Man”, assinada por Christopher Wood,
conselheiro para compras de ações e estrategista financeiro da empresa de
consultoria financeira CLSA Asia-Pacific Markets, com sede em Hong Kong. Na
matéria, o conselheiro estrategista sugere que os investidores que busquem
segurança para o euro “olhem para o leste” e comprem ações chinesas e
indianas.
[7]
Fr.
L'homme
revolté [1951]. O Homem revoltado, Rio de Janeiro:
Record, 1996. Trad. Valerie
Rumjanek.
[8]
GARCÍA
LINERA, Álvaro. La
potencia plebeya.
Acción colectiva e identidades indígenas, obreras y populares en
Bolivia. CLACSO, Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales, Buenos Aires;
PROMETEO libros, Buenos Aires. octubre. 2008. Lê-se, na íntegra, em
espanhol. A
potência plebéia, São Paulo: Editorial Boitempo, 2010. Trad. Mouzar
Benedito e Igor Ojeda.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Registre seus comentários com seu nome ou apelido. Não utilize o anonimato. Não serão permitidos comentários com "links" ou que contenham o símbolo @.