16/11/2011, *M K Bhadrakumar, Asia Times Online
Traduzido
pelo Coletivo da Vila
Vudu
O traçado
geral de um acordo de comércio da parceria trans-Pacífico [ing. Trans-Pacific Partnership trade
agreement] tornou-se o leitmotif da
reunião de cúpula de Cooperação Econômica Ásia-Pacífico [ing. Asia-Pacific Economic Cooperation
(APEC)] do último fim de semana em Honolulu, Havaí. Mas há ainda longa
estrada a percorrer, até que se saiba se um acordo padrão platinum conseguirá desemaranhar o “noodle
bowl” [2] de tratados de livre comércio
na Ásia, ou se acabará por apenas acrescentar novos emaranhamentos à atual
safra.
Mas,
em termos imediatos, Honolulu serviu a um objetivo: deu clareza ao estado atual
das coisas, nas complicadas relações EUA-China-Rússia.
Em
reuniões de alto nível, os estadistas reunido quase sempre começam com ditos
engraçados, como fez o presidente dos EUA Barack Obama, no sábado, ao sentar-se
com o presidente da Rússia, Dmitry Medvedev.
Obama
disse que ouvira dizer que seu amigo “Dmitry” fora visto, numa camisa havaiana,
“passeando e aproveitando o sol” em sua cidade natal, Honolulu. Obama
evidentemente relaxou, aliviado, no instante em que pousou os olhos na figura
reconfortante de “Dmitry”. Estava saindo de dura reunião com o presidente Hu
Jintao da China, ao qual, até nos momentos mais informais, Obama dirige-se como
“Presidente Hu”, mesmo depois das nove reuniões que já houve entre os dois, nos
últimos três anos. Também para Hu, “Barack” continuará a ser “Senhor
presidente”.
O
idioma dos contatos entre EUA, Rússia e China é revelador. No momento em que as
relações EUA-China são vistas aos tropeços ultimamente, as coisas começam a
melhorar para os russos. Moscou amargou várias frustrações durante o governo de
George W Bush; Pequim relembra com nostalgia aqueles tempos. Agrada a Moscou que
Obama manifeste “desejo não só de escutar, mas de ouvir os outros”, nas
palavras, recentemente, do ministro de Relações Exteriores da Rússia, Sergey
Lavrov.
Nada
está acontecendo de especial entre EUA e Rússia, hoje, que explique a "camaradagem'’ entre Obama e Medvedev. De fato, aconteceu algo de terrível e bem
recentemente, quando Medvedev afastou-se e cedeu lugar a Vladimir Putin na
disputa pelo Kremlin em 2012. Por mais que Obama tenha tentado, com a
colaboração empenhada de seus aliados ocidentais, nada convenceu Medvedev de que
a Rússia precisava muito dele, como líder no Kremlin, por outros seis anos.
Resultado
impressionante
A
retórica de que o século 21 seria o “século dos EUA no Pacífico” ofereceu pano
de fundo sem precedentes aos movimentos de Obama no tour de nove dias pela região do Pacífico
Asiático, planejado, perversamente, para ali plantar uma estratégia, à moda da
Guerra Fria, para conter a China. Em vez disso, Honolulu deixou bem à vista a
impressionante interdependência que liga hoje EUA e China, que de modo algum se
deixará modificar por estratégias arcaicas da Guerra Fria.
A
relação econômica EUA-Rússia é dinheiro de bolso, comparada ao comércio
Sino-Americano. A China pode soprar vida nova na economia norte-americana e
talvez, até, tirá-la do fundo do poço, enquanto a economia russa, no máximo, dá
conta dela mesma, nesses tempos duros. Os EUA não precisam do que os russos têm
a oferecer de melhor – petróleo e gás –, mas petróleo e gás são como poções
mágicas que podem garantir lastro de um trilhão de dólares nas relações
Rússia-China.
Na
sessão de perguntas e respostas com Obama, na Cúpula Comercial de autoridades
[orig. APEC-CEO] e empresários, um dos pontos principais da agenda do presidente
dos EUA em Honolulu, ninguém nem se deu o trabalho de articular a palavra
“Rússia”: foi só “China, China, China”. Os EUA das grandes corporações não
morrem de desejo de matar a galinha dos ovos de ouro. O que querem desdobra-se
em dois pontos: a China deve garantir maior acesso ao mercado chinês e a China
deve garantir proteção aos direitos norte-americanos de propriedade
intelectual.
Os
principais empresários disseram a Obama que é preciso engajar a China. A Agência
Reuters de notícias fez uma pesquisa com os empresários norte-americanos
presentes à reunião com Obama; nada menos que 40% deles disseram que sua “maior
oportunidade pontual de crescimento vem do aumento do poder de consumo” na
China.
Apesar
de tudo isso, os encontros de Obama com Medvedev e Hu também tiveram alguns
traços comuns. Nem um dos dois encontros produziu qualquer resultado concreto.
Obama disse à imprensa que Rússia e China continuarão a pressionar o Irã quanto
ao programa nuclear, e que Medvedev e Hu concordaram com ele quanto ao problema.
Mas, imediatamente depois da reunião, russos e chineses manifestaram posição
completamente diferente dessa.
No
instante em que a delegação russa decolou de Honolulu, Lavrov disse à imprensa
russa que o mais recente relatório da Agência Internacional de Energia Atômica
[ing. International Atomic Energy
Agency (IAEA)] sobre o Irã “nada contém de novo” e não ofereceu quaisquer
novas provas de que o Irã esteja desenvolvendo armas nucleares.
Cáustico,
Lavrov observou que o relatório da
IAEA deixara a impressão
de “acender paixões na opinião pública, preparando o terreno para a imposição de
algum tipo de sanções unilaterais” contra o Irã. E repetiu que os russos
opõem-se a qualquer nova sanção além das já impostas pela ONU e pelos EUA.
Assim
também, em Pequim, na 2ª-feira, porta-voz do Ministério de Relações Exteriores
da China fez eco à rejeição de Lavrov, contra novas sanções. Disse: “Em termos
simples, acreditamos que pressionar, inclusive impor cegamente sanções
econômicas, não leva, de modo algum, ao efeito desejado. Numa abordagem de longo
prazo, ainda desejamos resolver esse problema mediante o diálogo.”
Mais
uma vez, Obama deu destaque à Síria como um dos “pontos problemáticos do mundo”
que discutiu com Medvedev. Mas Medvedev, depois, só disse que discutiram a Síria
no quadro “da situação no Oriente Médio” e Afeganistão.
E,
dia seguinte, alto oficial militar russo confirmou que Moscou honrará todos os
seus contratos militares com Damasco e advertiu contra uma “repetição do cenário
líbio”, contra a Síria. Nem Obama nem Hu sequer se deram o trabalho de mencionar
a Síria nos comentários sobre seus contatos.
Sacos
de pancadas
O
encontro Obama-Hu foi negociação dura. Privadamente, Obama falou em tom mais
conciliador do que sua retórica sugere. Hu disse a Obama que a China não se
deixará pressionar nem apressar na questão da moeda chinesa; que “a China
avançará firmemente no processo da reforma do mecanismo da taxa de conversão da
moeda, com o objetivo de garantir que haja um sistema de câmbio flutuante
administrado de mercado ligado a uma cesta de moedas”.
Nas
palavras de Obama, depois: “Quando basta, basta. Continuaremos firmes na posição
de que a China tem de operar pelas mesmas regras, como o resto do mundo. Não
queremos os chineses tirando vantagem dos Estados Unidos da América”.
Retórica
à parte, porém, a mensagem de Honolulu é, mais uma vez, que o relacionamento
EUA-China é relacionamento muito complicado, mas é relacionamento de longo
prazo, que promete ser mutuamente benéfico, e as negociações em Honolúlu deixam
saldo que os dois lados ruminarão por muito tempo.
A
questão é que surgiu um vetor completamente novo nas equações EUA-Rússia-China.
Os russos perderam o lugar de saco de pancadas preferencial dos políticos
norte-americanos em campanha eleitoral. O novo saco de pancadas, hoje, é a
China.
Os
políticos norte-americanos em campanha eleitoral tendem a esquecer todos os
limites e dizem coisas horríveis; e Obama estará cada dia mais pressionado por
Mitt Romney, seu possível oponente Republicano nas eleições de 2012, que o
atrairá para uma mesma retórica muito violenta contra a
China.
E ambos, Obama e Romney, já enfrentam dura disputa
retórica contra Rick Perry, outro Republicano que disputa a indicação do
partido: “Acho que o governo comunista chinês acabará na lata do lixo da
história, se não mudarem suas virtudes.” [3]
Os
russos devem estar aliviados: depois de cerca de 60 anos, já não são, afinal, o
saco de pancadas sempre malhado nas campanhas eleitorais nos EUA. Nem por isso
deram-se por seduzidos.
Pouco
antes de deixar Washington rumo a Honolulu, Obama anunciou que a Rússia será
aceita como membro pleno da Organização Mundial de Comércio, em meados de
dezembro. Provavelmente, Washington esperava algo em troca, sobre o Irã. Mas, no
encontro, nada aconteceu.
Medvedev
gentilmente agradeceu a Obama o “apoio ativo e interessado” na questão da OMC e
até elogiou o governo Obama como o que mais apoiou a Rússia, em todos os tempos.
Mas também falou da “necessidade de rejeitar a emenda Jackson-Vanik”, outra
questão residual da era da Guerra Fria. Essa emenda nega o status de nação mais favorecida a países
que não vivam sob economia de mercado e restrinjam a emigração.
Recentemente,
Lavrov classificou o “reset” das relações EUA-Rússia como “cooperação
construtiva e pragmática”. Em entrevista, semana passada, lembrou que os mísseis
de defesa continuam como forte ponto de problemas – “esse caso não anda. A
completa recusa dos EUA a discutir qualquer coisa que possa vir a limitar os
planos dos EUA nessa área (...) reforça nossa conclusão de que nenhum acordo
será possível. Tentaremos continuar a negociar”.
Lavrov
disse que, embora o governo Obama mova-se na direção do multilateralismo, ainda
não superou um “desejo unilateralista de dominar em posição comum”, apesar de os
EUA já não terem “nem os meios nem os recursos políticos e financeiros” e
“estarem obrigados a formar blocos de apoio (...) [Mas os russos] não mais
toleraremos aquela ambigüidade que penetrou a resolução sobre a Líbia. Os
americanos entendem a nossa posição.”
Para
Lavrov, “esse muito doloroso processo” de purgação conclusiva da pregação
unipolar dos EUA “demorará décadas” para acabar.
O
ministro chinês de Relações Exteriores da China muito provavelmente concordaria
com o que disse o ministro russo de Relações Exteriores. Os encontros de
Honolúlu mostraram que Rússia e China têm mais pontos em comum do que supunham.
Fato é que os EUA não convidaram nem Rússia nem China para a iniciativa que
levou à proposta de acordo de livre comércio da Parceria Trans-Pacífico que os
EUA apresentaram em Honolulu.
Notas dos tradutores
[1] Orig. A thee-way waltz in
Honolulu .
Sobre
a expressão, que não conseguimos traduzir, consultas distribuídas pelo planeta
nos levaram às que nos parecem a melhor explicação e à melhor tradução de todas
que recebemos e pelas quais muito agradecemos:
“Uma three-way waltz é uma valsa descompassada, onde um parceiro
imprevisto aparece na dança.Em thee-way waltz, vê-se uma grafia
onomatopaica de “th(r)ee” – que
se explica, porque os chineses não conseguem articular o fonema [th] do inglês, sobretudo se seguido
do fonema [r]. (Atenção: Não confundir com thee, forma arcaica do pronome da 2ª.
pessoa do discurso, que aparece em orações, hinos religiosos e na Bíblia do rei
James, em inglês, em todas as declinações:thou, thy
ou thine e
thee). Os anglo-saxões
costumam coloquialmente dizer, quando há intromissões e mesmo nos conflitos
diplomáticos provocados por ingerência alheia, que “valsas e tangos só se dançam
a dois”. Eu traduziria o título do artigo - deve estar ótimo, porque o que se
passou no Havaí é importantérrimo - como “Dança desconjuntada em
Honolúlu”.
[2]
Orig.
“noodle bowl”. Literalmente (port. Br.) “cumbuca de macarrão
instantâneo”, “miojo”; muitíssimo “enrolado” e “emanhadado”. No campo dos
tratados de livre comércio, a expressão aparece em The
Economist, em 2009: “Os que acompanham a mania asiática por acordos de livre
comércio referem-se à superposição de vários tratados como um
“noodle bowl”. Para “ver” o “emaranhado” de tratados, há
este bom infográfico em: The noodle bowl.
[3] Orig. “I happen to think that the communist Chinese government will end up on the ash heap of history if they do not change their virtues”. A expressão “ash heap of history” tem longa história nos EUA. Apareceu em 1982, em discurso de Reagan: “freedom and democracy will leave Marxism and Leninism on the ash heap of history” [liberdade e democracia deixarão o marxismo e o leninismo para a lata de lixo da história], que Rick Perry repetiu agora, citando a fonte em 12/11/2011, em: “Perry’s Rambling Remarks on China: China Should Change Its “Virtues” – VIDEO”.
[3] Orig. “I happen to think that the communist Chinese government will end up on the ash heap of history if they do not change their virtues”. A expressão “ash heap of history” tem longa história nos EUA. Apareceu em 1982, em discurso de Reagan: “freedom and democracy will leave Marxism and Leninism on the ash heap of history” [liberdade e democracia deixarão o marxismo e o leninismo para a lata de lixo da história], que Rick Perry repetiu agora, citando a fonte em 12/11/2011, em: “Perry’s Rambling Remarks on China: China Should Change Its “Virtues” – VIDEO”.
*MK Bhadrakumar foi diplomata de
carreira do Serviço Exterior da Índia. Prestou serviços na União Soviética,
Coreia do Sul, Sri Lanka, Alemanha, Afeganistão, Paquistão, Uzbequistão e
Turquia. É especialista em questões do Afeganistão e Paquistão e escreve sobre
temas de energia e segurança para várias publicações, dentre as
quais
The
Hindu,
Asia
Online e Indian Punchline.
É o filho mais velho de MK Kumaran (1915–1994), famoso escritor, jornalista,
tradutor e militante de Kerala.
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