quinta-feira, 17 de novembro de 2011

A luta pela Síria


J.Massad

15/11/2011, *Joseph Massad, Al-Jazeera, Qatar
Traduzido pelo Coletivo da Vila Vudu


“Os EUA já destruíram a democracia síria uma vez, em 1949, quando a CIA patrocinou o primeiro golpe de estado da história do país.”


Quando os levantes populares começaram na Tunísia em dezembro e janeiro passados, e em janeiro e fevereiro chegaram ao Egito, os acontecimentos pareciam claros. Apesar das tentativas para censurar a imprensa, muitas notícias chegavam imediatamente aos públicos nacionais e internacionais. Tudo isso mudou dramaticamente quando começaram os levantes no Bahrain, Iêmen, Líbia, Síria, Omã e Arábia Saudita. 


Enquanto um quase blackout das empresas-imprensa impediu quase totalmente a cobertura da revolta popular e da violenta repressão que atacou o povo no Bahrain, repressão executada por soldados do Bahrain e da Arábia Saudita (e só se permitiu um noticiário intermitente do que acontecia em Omã), ainda assim continuamos a obter notícias importantes vindas do Iêmen. 

A ativa campanha de propaganda e mentiras começou, de fato, na Líbia, desde a primeira semana da revolta. 

Na Líbia, forças internacionais, do Golfo à Europa e aos EUA, assumiram a tarefa de fazer propaganda contra Gaddafi (que usara o exército contra manifestantes líbios; que seus soldados tomavam Viagra para estuprar mulheres às centenas; que Gaddafi usara mercenários “africanos” contra os líbios; que tinha armas químicas que usaria contra os líbios; que já matara 50 mil líbios etc. – acusações que, todas, foram desmascaradas como mentiras, depois que observadores internacionais demonstraram que não havia qualquer prova que confirmasse as tais “acusações”) e, além da tarefa de propaganda, assumiram também a tarefa de derrubar o governo de Gaddafi, sob o disfarce de levante popular comandado por forças da OTAN. A OTAN, não Gaddafi, bombardeou e matou centenas de civis líbios.

É preciso saber ver os mesmos desenvolvimentos também na cena síria, com muita propaganda pelo regime e por seus inimigos internacionais, que também já começaram a falar em nome da revolta popular, seja nos veículos das empresas-imprensa seja nas redes de televisão fantoches no Golfo, seja nos veículos das empresas-imprensa ocidentais e, também, pela boca de “representantes” dos manifestantes sírios.

Nos casos de Tunísia, Egito, Bahrain e Iêmen (para não falar de Marrocos, Jordânia, Omã e Arábia Saudita, onde manifestações menores, mas também significativas, continuaram durante meses), a Liga Árabe, obedecendo instruções dos EUA, não se movimentou para intervir. Mas nos casos de Síria e Líbia, sempre obedecendo a instruções dos EUA, a Liga logo se movimentou. 

Não é a primeira vez que a Liga Árabe age contra estado membro, para facilitar invasões de exércitos estrangeiros. 

O ensaio geral para o que hoje se vê aconteceu no Iraque, em 1990-1991, quando a Liga Árabe (como a ONU, depois do colapso da União Soviética) converteu-se em mais um braço armado da ambição imperial dos EUA. A Liga Árabe então uniu forças com os EUA e potências europeias para invadir o Golfo, primeiro passo para legitimar a segunda invasão norte-americana, em 2003, para derrubar Saddam Houssein. Saddam é o mesmo ditador brutal que os EUA e a França ajudaram a patrocinar nos anos 1980s; EUA e França também apoiaram Saddam, quando invadiu o Irã, invasão que matou um milhão de iranianos e 400 mil iraquianos. 

Mas Saddam não era completamente submisso às ordens imperiais e manteve-se relativamente independente do imperialismo norte-americano, apesar dos muitos bons serviços que prestou às grandes potências. Naquele momento, muitos alertaram a chamada oposição iraquiana no exílio, que clamava pela invasão, lembrando àquela oposição que a invasão norte-americana resultaria em impor lá um novo regime que seria, no mínimo, tão ruim quanto o de Saddam, provavelmente pior. 

Seria de esperar que o que se viu acontecer no Iraque – a perda de centenas de milhares de vidas iraquianas, a total destruição do país, a massiva atual repressão que lá se vê e a corrupção do regime imposto pelos EUA – levaria os árabes a ser mais cautelosos, antes de buscar a ajuda dos EUA para derrubar ditadores árabes.

Mas, se o que aconteceu no Iraque foi ignorado, como seria possível ignorar a calamidade que hoje está destruindo a Líbia, nesse exato momento em que escrevo, sob o disfarce de um novo governo liderado pela OTAN, e a primeira dose de violência e repressão que aquele governo da OTAN já lançou contra o povo líbio em nome de uma “democracia da OTAN” (e devem-se temer, é claro, muitas doses futuras da mesma violência)? O povo líbio ter-se-ia talvez revoltado contra uma ditadura (de Gaddafi), para trocá-la pela pilhagem e pela violência de outra ditadura, dessa vez patrocinada pela OTAN?

Aula de imperialismo 

Eis uma lição útil e bem clara, a todos que, na Síria, lutam por governo democrático. A ideia geral é simples: 

– Se você vive num país árabe, cujo ditador seja freguês-cliente dos americanos, os EUA farão tudo que puderem para reprimir a justa revolta do povo que aspira a melhor democracia. E se, mesmo contra todos os esforços dos EUA, sua revolução for bem-sucedida, os EUA então patrocinarão a contrarrevolução contra o povo e a democracia, diretamente ou indiretamente, mediante os aliados locais dos EUA, especialmente a Arábia Saudita e Israel (hoje, também o Qatar). Tudo isso se aplica, é claro, à situação na Tunísia, Egito, Bahrain, Iêmen, Marrocos, Jordânia, Omã e na própria Arábia Saudita. 

– Se você vive em país cujo ditador, ainda que aliado do ocidente, mantém linha independente de política exterior ou, no mínimo, mantém posição que nem sempre servirá garantidamente aos interesses ocidentais – o que se aplica à Síria e ao Irã (não esqueçamos os serviços que ambos os países prestaram no esforço ativo dos EUA para derrubar Saddam; e o regime sírio ajudou os EUA no apoio que deram às forças da direita libanesa, contra a esquerda libanesa e a OLP, nos anos 1970s)  e, embora menos, também a Líbia –, nesse caso os EUA apoiarão sua revolta contra um ditador, exclusivamente para substituí-lo por ditador mais servil, que obedeça, sem nenhum tipo de resistência, o que os EUA determinem. E os EUA apoiarão o fim de uma ditadura e o início de outra... sempre em nome da democracia. 

Os EUA também explicam como “medidas pró-democráticas”, os seus esforços contrarrevolucionários em países nos quais a rebelião popular conseguiu derrubar ditador pró-EUA.

Nesse contexto, de mundo dominado pelos EUA, os sírios que legitimamente tenham lutado e continuem a lutar para pôr fim a uma ditadura, têm, necessariamente, de enfrentar algumas perguntas cruciais, agora que a Liga Árabe e as potências imperiais tomaram de assalto e assumiram a liderança de uma luta que, no início, foi luta popular: 

(1) O levante popular dos sírios visou a derrubar o regime Assad, para gerar para a Síria governo democrático, ou, simplesmente, para derrubar Assad? 

Como os precedentes no caso do Iraque e da Líbia deixam muito claro, a Liga Árabe e as potências imperiais tomaram de assalto o levante dos sírios, para derrubar Assad e pôr, no lugar dele, um governo serviçal, obediente aos EUA, como os que há em outros países árabes.

(2) A segunda pergunta que os manifestantes sírios têm de responder é clara é direta: – Agora que já se conhece o objetivo das forças imperiais e da Liga Árabe, os manifestantes sírios veem o fato de ditadores do Golfo e os EUA terem assumido a liderança da luta popular, como (a) derrota final da revolta popular? Ou (b) como passo necessário para que o levante popular seja bem sucedido?

Os que vêem a luta popular dos sírios por democracia como já sequestrada por essas forças imperiais e pró-imperiais dentro e fora da Síria entendem que persistir na revolta só levará a um resultado, e não é resultado democrático: terão ajudado os EUA a pôr lá, no poder na Síria, mais um regime repressivo, serviçal dos EUA – como já aconteceu no Iraque e na Líbia. Se os sírios sonham com esse desfecho e lutaram por isso, devem continuar a lutar. 

Mas se seu objetivo não é esse, os sírios devem encarar a difícil conclusão de que foram derrotados – não pela terrível repressão do governo Assad, ao qual tão valentemente resistiram, mas por forças internacionais tão empenhadas quanto o governo Assad em negar aos sírios a democracia que merecem. 

À luz do recente movimento da Liga Árabe/EUA/Europa, a luta para derrubar Assad talvez alcance o objetivo desejado. Mas a luta para garantir regime democrático aos cidadãos sírios, essa, foi fragorosamente derrotada.

Os EUA já destruíram a democracia síria uma vez, em 1949, quando a CIA patrocinou o primeiro golpe de estado da história síria, que pôs fim a um governo democrático.

Agora, outra vez os EUA destruíram a possibilidade de o levante popular sírio levar a vitória popular democrática. Meus mais sentidos pêsames ao povo sírio. 

*Joseph Massad é professor associado de Política e História Cultural Árabe Moderna na Columbia University, em New York.

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