J.Massad |
15/11/2011, *Joseph Massad, Al-Jazeera,
Qatar
Traduzido
pelo Coletivo da Vila
Vudu
“Os EUA já
destruíram a democracia síria uma vez, em 1949, quando a CIA patrocinou o
primeiro golpe de estado da história do país.”
Enquanto um
quase blackout das empresas-imprensa impediu quase
totalmente a cobertura da revolta popular e da violenta repressão que atacou o
povo no Bahrain, repressão executada por soldados do Bahrain e da Arábia Saudita
(e só se permitiu um noticiário intermitente do que acontecia em Omã), ainda
assim continuamos a obter notícias importantes vindas do Iêmen.
A ativa campanha
de propaganda e mentiras começou, de fato, na Líbia, desde a primeira semana da
revolta.
Na Líbia, forças
internacionais, do Golfo à Europa e aos EUA, assumiram a tarefa de fazer
propaganda contra Gaddafi (que usara o exército contra manifestantes líbios; que
seus soldados tomavam Viagra para estuprar mulheres às centenas; que Gaddafi
usara mercenários “africanos” contra os líbios; que tinha armas químicas que
usaria contra os líbios; que já matara 50 mil líbios etc. – acusações que,
todas, foram desmascaradas como mentiras, depois que observadores internacionais
demonstraram que não havia qualquer prova que confirmasse as tais “acusações”)
e, além da tarefa de propaganda, assumiram também a tarefa de derrubar o governo
de Gaddafi, sob o disfarce de levante popular comandado por forças da OTAN. A
OTAN, não Gaddafi, bombardeou e matou centenas de civis
líbios.
É preciso saber
ver os mesmos desenvolvimentos também na cena síria, com muita propaganda pelo
regime e por seus inimigos internacionais, que também já começaram a falar em
nome da revolta popular, seja nos veículos das empresas-imprensa seja nas redes
de televisão fantoches no Golfo, seja nos veículos das empresas-imprensa
ocidentais e, também, pela boca de “representantes” dos manifestantes
sírios.
Nos casos de
Tunísia, Egito, Bahrain e Iêmen (para não falar de Marrocos, Jordânia, Omã e
Arábia Saudita, onde manifestações menores, mas também significativas,
continuaram durante meses), a Liga Árabe, obedecendo instruções dos EUA, não se
movimentou para intervir. Mas nos casos de Síria e Líbia, sempre obedecendo a
instruções dos EUA, a Liga logo se movimentou.
Não é a primeira
vez que a Liga Árabe age contra estado membro, para facilitar invasões de
exércitos estrangeiros.
O ensaio geral
para o que hoje se vê aconteceu no Iraque, em 1990-1991, quando a Liga Árabe
(como a ONU, depois do colapso da União Soviética) converteu-se em mais um braço
armado da ambição imperial dos EUA. A Liga Árabe então uniu forças com os EUA e
potências europeias para invadir o Golfo, primeiro passo para legitimar a
segunda invasão norte-americana, em 2003, para derrubar Saddam Houssein. Saddam é
o mesmo ditador brutal que os EUA e a França ajudaram a patrocinar nos anos
1980s; EUA e França também apoiaram Saddam, quando invadiu o Irã, invasão que
matou um milhão de iranianos e 400 mil iraquianos.
Mas Saddam não era
completamente submisso às ordens imperiais e manteve-se relativamente
independente do imperialismo norte-americano, apesar dos muitos bons serviços
que prestou às grandes potências. Naquele momento, muitos alertaram a chamada
oposição iraquiana no exílio, que clamava pela invasão, lembrando àquela
oposição que a invasão norte-americana resultaria em impor lá um novo regime que
seria, no mínimo, tão ruim quanto o de Saddam, provavelmente pior.
Seria de esperar
que o que se viu acontecer no Iraque – a perda de centenas de milhares de vidas
iraquianas, a total destruição do país, a massiva atual repressão que lá se vê e
a corrupção do regime imposto pelos EUA – levaria os árabes a ser mais
cautelosos, antes de buscar a ajuda dos EUA para derrubar ditadores
árabes.
Mas, se o que
aconteceu no Iraque foi ignorado, como seria possível ignorar a calamidade que
hoje está destruindo a Líbia, nesse exato momento em que escrevo, sob o disfarce
de um novo governo liderado pela OTAN, e a primeira dose de violência e
repressão que aquele governo da OTAN já lançou contra o povo líbio em nome de
uma “democracia da OTAN” (e devem-se temer, é claro, muitas doses futuras da
mesma violência)? O povo líbio ter-se-ia talvez revoltado contra uma ditadura
(de Gaddafi), para trocá-la pela pilhagem e pela violência de outra ditadura,
dessa vez patrocinada pela OTAN?
Aula de
imperialismo
Eis uma lição útil
e bem clara, a todos que, na Síria, lutam por governo democrático. A ideia geral
é simples:
– Se você vive num
país árabe, cujo ditador seja freguês-cliente dos americanos, os EUA farão tudo
que puderem para reprimir a justa revolta do povo que aspira a melhor
democracia. E se, mesmo contra todos os esforços dos EUA, sua revolução for
bem-sucedida, os EUA então patrocinarão a contrarrevolução contra o povo e a
democracia, diretamente ou indiretamente, mediante os aliados locais dos EUA,
especialmente a Arábia Saudita e Israel (hoje, também o Qatar). Tudo isso se
aplica, é claro, à situação na Tunísia, Egito, Bahrain, Iêmen, Marrocos,
Jordânia, Omã e na própria Arábia Saudita.
– Se você vive em
país cujo ditador, ainda que aliado do ocidente, mantém linha independente de
política exterior ou, no mínimo, mantém posição que nem sempre servirá
garantidamente aos interesses ocidentais – o que se aplica à Síria e ao Irã (não
esqueçamos os serviços que ambos os países prestaram no esforço ativo dos EUA
para derrubar Saddam; e o regime sírio ajudou os EUA no apoio que deram às
forças da direita libanesa, contra a esquerda libanesa e a OLP, nos anos
1970s) e, embora menos, também a Líbia
–, nesse caso os EUA apoiarão sua revolta contra um ditador, exclusivamente para
substituí-lo por ditador mais servil, que obedeça, sem nenhum tipo de
resistência, o que os EUA determinem. E os EUA apoiarão o fim de uma ditadura e
o início de outra... sempre em nome da democracia.
Os EUA também
explicam como “medidas pró-democráticas”, os seus esforços
contrarrevolucionários em países nos quais a rebelião popular conseguiu derrubar
ditador pró-EUA.
Nesse contexto, de
mundo dominado pelos EUA, os sírios que legitimamente tenham lutado e continuem
a lutar para pôr fim a uma ditadura, têm, necessariamente, de enfrentar algumas
perguntas cruciais, agora que a Liga Árabe e as potências imperiais tomaram de
assalto e assumiram a liderança de uma luta que, no início, foi luta
popular:
(1) O levante popular dos sírios
visou a derrubar o regime Assad, para gerar para a Síria governo democrático,
ou, simplesmente, para derrubar Assad?
Como os
precedentes no caso do Iraque e da Líbia deixam muito claro, a Liga Árabe e as
potências imperiais tomaram de assalto o levante dos sírios, para derrubar Assad
e pôr, no lugar dele, um governo serviçal, obediente aos EUA, como os que há em
outros países árabes.
(2) A segunda pergunta que os
manifestantes sírios têm de responder é clara é direta: – Agora que já se
conhece o objetivo das forças imperiais e da Liga Árabe, os manifestantes sírios
veem o fato de ditadores do Golfo e os EUA terem assumido a liderança da luta
popular, como (a) derrota final da revolta popular? Ou (b) como passo necessário
para que o levante popular seja bem sucedido?
Os que vêem a luta
popular dos sírios por democracia como já sequestrada por essas forças imperiais
e pró-imperiais dentro e fora da Síria entendem que persistir na revolta só
levará a um resultado, e não é resultado democrático: terão ajudado os EUA a pôr
lá, no poder na Síria, mais um regime repressivo, serviçal dos EUA – como já
aconteceu no Iraque e na Líbia. Se os sírios sonham com esse desfecho e lutaram
por isso, devem continuar a lutar.
Mas se seu
objetivo não é esse, os sírios devem encarar a difícil conclusão de que foram
derrotados – não pela terrível repressão do governo Assad, ao qual tão
valentemente resistiram, mas por forças internacionais tão empenhadas quanto o
governo Assad em negar aos sírios a democracia que merecem.
À luz do recente
movimento da Liga Árabe/EUA/Europa, a luta para derrubar Assad talvez alcance o
objetivo desejado. Mas a luta para garantir regime democrático aos cidadãos
sírios, essa, foi fragorosamente derrotada.
Os EUA já
destruíram a democracia síria uma vez, em 1949, quando a CIA patrocinou o
primeiro golpe de estado da história síria, que pôs fim a um governo
democrático.
Agora, outra vez os EUA destruíram
a possibilidade de o levante popular sírio levar a vitória popular democrática.
Meus mais sentidos pêsames ao povo sírio.
*Joseph
Massad é professor
associado de Política e História
Cultural Árabe Moderna na Columbia
University, em New
York.
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