13/11/2011,
Sabine Blanc e Ophelia Noor, OWNI
Entrevista
com Andy Müller-Maguhn
Traduzido
pelo pessoal da Vila
Vudu
O
“Chaos Computer Club” [Coletivo Caos], afamado e influente coletivo alemão
de hackers, completou 30 anos.
Conversamos com Andy Müller-Maguhn, membro do coletivo e seu porta-voz há muito
tempo, para discutir os desafios e os sucessos do coletivo, nas últimas três
décadas.
Desde
setembro de 1981, o “Chaos Computer Club” reúne hackers, dedicados ativistas dokacking, do re-posicionamento e do
uso não ortodoxo da tecnologia da informação. O pequeno coletivo nasceu em
Hamburgo e mudou-se para Berlim, antes de espalhar-se por toda a Alemanha e pela
Europa. Foi o primeiro coletivo de hackers que se conheceu na Europa. Hoje, o grupo já
exerce efetiva influência política, na luta por liberdades digitais e por
preservação e proteção à privacidade na rede.
Andy Müller-Maguhn no Chaos Computer Club em Berlim, novembro 2011 |
Andy
Müller-Maguhn
é
herói da velha guarda: uniu-se ao coletivo em 1985, com 14 anos; foi membro do
grupo de coordenação e, por muito tempo, porta-voz do coletivo. Hoje, Andy é
jornalista (do Buggedplanet), consultor
(Tecnologias da Informação e Comunicação) e dirige sua empresa de encriptação
para telefones. Falante, gentil, engraçado e surpreendentemente (sic) atilado, é
fácil esquecer, conversando com ele, que se está diante de um dos mais
respeitados cérebros da comunidade
nerd.
A
entrevista aconteceu na sede do Coletivo, em Berlim, frente a uma garrafa de
Club-Mate, bebida com alto conteúdo de cafeína, muito prestigiada pelos hackers. É sala estranha, cheia de objetos
recolhidos das ruas: velhos consoles de Arcade, um misterioso quadro eletrônico
de chegadas e partidas de aviões, adesivos promocionais, sofás antidiluvianos e,
claro, muitos quilômetros de fios e cabos. A sala é contraste perfeito para o
elegante bairro de Mitte, onde está localizada.
O
Coletivo Caos acaba de completar 30 anos. Quando começou, alguém imaginou que,
30 anos depois, seria o que é hoje?
Andy
Müller-Maguhn:
O
Coletivo Caos foi criado informalmente em 1981, por profissionais das
Tecnologias da Informação que se reuniam para discutir o impacto das novas
ferramentas e como usá-las na sociedade. Tinham uma lista de questões que
estavam começando a surgir. Como a defesa da privacidade na
rede.
Em
1984, o Coletivo Caos foi reformatado, mais formalmente. Criaram uma
revista, Die Datenschleuder (literalmente, “O Extrator de Dados”) e
houve o Primeiro Acampamento-Congresso de Comunicações Caos. Uni-me ao grupo
antes de ser oficializado, em 1996. Sou dos mais velhos, hoje! Queria discutir
ideias sobre hacking e encontrar gente que mexesse com
comunicação eletrônica. O Coletivo Caos reunia gente de todos os tipos, de
classes sociais completamente diferentes, era grupo muito heterogêneo, de gente
com interesses comuns. Era grupo tão raro, tão diferente de tudo que havia,
naquele tempo, como até hoje.
O
Coletivo Caos era pequeno, mas já começava a se tornar conhecido na Alemanha,
sobretudo depois que invadimos o
Bildschirmtext em 1984.
Devolvemos o dinheiro, é claro. E explicamos ao público o que estávamos
fazendo.
As
pessoas começavam a mexer com tecnologias que, numa década, estariam dominando o
mundo, como a Internet. O poder de usar a rede para fazer acontecer alguma coisa
do outro lado do mundo, usando só os nossos pequenos computadores domésticos,
era entusiasmante, para quem mexia com dados, como nós. Naquele momento, estavam
querendo fazer um recenseamento nacional e havia forte movimento na Alemanha
contra o governo intervir na vida privada dos cidadãos.
Quando
cheguei, éramos 300 pessoas. Hoje, somos mais de 3.500, mas não podemos mais
trabalhar juntos, por razões de saúde e de segurança. O Coletivo cresceu aos
poucos, e os leitores da revista subiram, de 200, para mil leitores. A edição
impressa trimestral foi mais importante nos anos 90s. Hoje, já lemos tudo,
antes, na edição online.
O
Coletivo Caos ainda é fórum importante, onde se discutem todos os assuntos e
qualquer tipo de assunto, onde nascem ideias, onde se encontram pessoas que, sem
o Coletivo, jamais se encontrariam. Ao mesmo tempo, tenho de dizer que, às
vezes, as coisas ficam caóticas. É encontro muito dinâmico. Às vezes, é dinâmico
demais. Ninguém é pago para trabalhar no Coletivo, o que seria contrário aos
princípios da ética hacker. Quem
está aqui veio e ficou pela causa hacker. Não queremos ninguém aqui
interessado só em salário, embora esse sistema imponha suas próprias
limitações.
Atualmente,
todos falam dos hackers, o hacking virou moda. Como se sentem, no Coletivo
Caos?
As
coisas mudaram muito. Hoje já um movimento político e cultural global, que nem
sempre existiu. Nos anos 1980s, pouca gente entendia o que fazíamos. Era
realmente uma subcultura. Enfrentamos muitos problemas com a lei, e precisávamos
de muitos advogados, que dissessem o que se podia ou não podia copiar, onde
podíamos e não podíamos entrar, e para nos ensinar o quê, do nosso trabalho, era
legal e o quê aproximava-se mais, mesmo, da total
ilegalidade.
O
caso da França é bom exemplo. Na França, se você fosse hacker e fosse descoberto, só tinha duas saídas: ou
ia para a cadeia, ou ia trabalhar para o governo. O governo francês monitorava
bem de perto o pessoal que entendia de segurança de sistemas. Por isso, aliás,
os saberes de hacking estagnaram, na França.
Em
termos gerais, somos vistos também como um
lobby que defende a
proteção à privacidade e aos dados pessoais, mas também a transparência e as
tecnologias de código aberto, até a autorregulação. Nos anos 2000s, apareceu a
palavra nerd, que sempre me
pareceu uma espécie de retaliação culturalmente construída por gente que defende
o direito de não se interessar pela realidade nem pelo modo como os seres
humanos se tratam, porque estaríamos já vivendo completamente dentro ‘da
máquina’. Não concordo com nada disso. Sou da velha guarda, e essa cultura geek me parece meio esquisita. Penso o mesmo dos
espaços para
hackers.
Como é
hoje o membro típico do Coletivo Caos? Você disse que, no começo, havia grande
diversidade social. Ainda é assim?
Não
acho que haja um tipo definido. Já estamos na 4ª ou 5ª geração. Parei de contar
há muito tempo. O Coletivo Caos, hoje, é altamente descentralizado, há grupos
por toda a Alemanha e em outros países. Os perfis variam
muito.
E,
no começo, éramos inspirados, de certo modo, pela cultura de esquerda. A cena do
hacking mais hardcore – a segunda geração, minha geração – era
ainda mais variada. Mais ainda havia gente que só queria ajuda na carreira
profissional. Passavam pelo coletivo, mas também traziam muitas ideias e
projetos. As coisas sempre funcionaram desse jeito.
Agora,
a Internet trouxe grande quantidade de novos empregos. Muitos membros do
Coletivo Caos trabalham nesse setor; têm empresas próprias, como ISPs
(Internet service providers, provedores de acesso à Internet), ou
gerenciam partes da infraestrutura da rede. Então, vêm mais para partilhar o que
sabem , e também ajudam nas nossas necessidades de infraestrutura e partilham e
ativam as ideias que constituem o Coletivo Caos. Até agora, mal chegamos aos 10%
de mulheres. A maioria são homens.
Parece
que, atualmente, os hackers conseguem ser mais ouvidos na política
alemã. Você concorda?
Acho
que sim. Se se examina o ambiente político na Alemanha, o Coletivo Caos é hoje
entidade aceita e reconhecida, porque nós trabalhamos para educar a opinião
pública, sobre tecnologia, desde os anos 1980s. Sempre houve histórias
esquisitas que chegavam até nós, de sumiço de dados, por exemplo. E pudemos
ajudar a explicar o que acontecia, em muitos casos.
A
mídia alemã sempre nos viu como gente que entende “de tecnologia”, dos
benefícios e dos riscos, não como gente que vende serviços a empresas com
interesses econômicos.
Quer
dizer: nós conseguimos nos definir nós mesmos, e sempre usamos isso. Nos anos
90s éramos convidados, em audiências do governo, nas comissões técnicas, sobre
leis e regulações das telecomunicações e questões de privacidade. Sempre
tentamos organizar a participação do grande público, nessas discussões. Temos
essa história já, há mais de 20 anos.
Não
precisamos necessariamente estar integrados formalmente na formulação de
políticas, mas fazemos nosso papel, cá do lado de fora. Hoje, eles já ganham
mais se não nos desqualificarem ou nos ignorarem completamente. Os políticos
precisam do nosso saber especializado, e aprendemos a conhecer também as leis.
Podemos mostrar onde as leis erram, mais que os políticos. Nossa vantagem é que
alguns dos nossos, no Coletivo Caos, gostam de estudar mais as questões
políticas; outros preferem as questões técnicas. Temos os dois
lados.
Você
acha que a cena hacker na Alemanha é mais influente por causa da
história da Alemanha? Há quem diga que os alemães percebem, mais que outros
povos, a necessidade de oposição forte.
Questões
como a privacidade na rede são mais sensíveis, sobretudo por causa da Alemanha
Oriental. Os alemães sabemos o quanto o abuso estrutural pode tornar-se
perigoso, porque, por aqui, fizemos de tudo. Até pôr estrelas amarelas nas
pessoas, antes de executá-las.
Por
tudo isso, há alguma consciência, um pouco mais clara. Mas o sistema educacional
alemão também tem a ver com tudo isso. Na escola, aprendemos a história do
nazismo. Os alemães somos hoje antiautoritários e antididaticismos. É difícil,
hoje, dar ordens na Alemanha.
Na
Alemanha, temos esses dois aspectos conflitivos, no nosso código genético
cultural. Somos maníacos por alta eficiência e excelente organização em tudo que
fazemos. Mas também conservamos uma compreensão profunda do mal que estruturas
muito hierarquizadas podem causar à comunicação, e sempre que as pessoas são
tratadas como objetos. O Coletivo Caos, pelo modo como é construído, tenta ter o
melhor desses dois mundos: saber que o pior sempre pode acontecer, sem, por
isso, desistir de tentar fazer as coisas com eficiência.
Você
acha que os alemães da Alemanha Oriental são culturalmente mais abertos às novas
tecnologias por terem sido obrigados por tanto tempo a improvisar, para
sobreviver no dia a dia?
O
Coletivo Caos de Berlim nasceu da fusão de dois clubes de computação, um de
Hamburgo, outro de Berlim Oriental. Eu vim do clube de Hamburgo, em 1989, quando
o governo da Alemanha Oriental começava a desmoronar. Tivemos contato com as
pessoas mais talentosas em Berlim Oriental. Improvisavam, sim, muito. Era um
modo diferente de lidar com as coisas. Trouxeram também aquele senso de humor e
a experiência de já terem derrubado um governo. Isso é muito importante. Não se
deve jamais subestimar o modo como viam o governo na Alemanha Oriental. Para
eles, foi como uma etapa intermediária. Como se sempre tivessem sabido que, mais
dia menos dia, teriam de derrubar o governo. Era questão de tempo. As diferenças
estruturais entre o que existia no Leste e há hoje no Oeste nunca foram muito
grandes. Em Berlim, temos uma piada que diz que no socialismo ou no comunismo,
há gente explorando gente; e no capitalismo é o contrário.
Eles
também tinham um lado antiautoritário, de resistência à violência. Afinal,
tinham tido contato muito próximo com os serviços secretos. Em Berlin, a
experiência dos que chegavam de lá, do contato que haviam tido com a Stasi (polícia secreta da Alemanha
Oriental) enriqueceu muito o Coletivo Caos. A Stasi é hoje a polícia secreta cujos
serviços são os mais bem documentados do mundo, em todos os tempos.
Temos
todos os manuais de treinamento daqueles agentes, e conhecemos as técnicas
usadas por eles para desestabilizar grupos e semear desconfianças e cisões. A
contribuição da Stasi foi essencial,
para que compreendêssemos como funciona o mundo moderno, e a mistura, que
aconteceu em Berlim, entre leste e oeste, as misturas das influências dos russos
e dos norte-americanos.
Quais
os seus maiores sucessos e maiores arrependimentos?
Nossos
acampamentos-congressos sempre foram o barômetro do que estava acontecendo. Com
o tempo, tornaram-se eventos internacionais, atraindo gente de todo o planeta.
Sabemos que, hoje, há um movimento global. Esse é um grande sucesso. O Coletivo
Caos é hoje constituído de grupos por toda a Alemanha e pelo mundo, todos
conectados. Cada um mantém sua específica forma de organização. Considero essa
diversidade um dos mais valiosos patrimônios que o Coletivo acumulou nesses
anos.
Pessoalmente,
como indivíduos, nós também passamos por muita merda, o que muito nos ensinou.
Sabemos o que não fazer. Aprendemos as lições do caminho. Hoje, podemos operar
até em condições muitos difíceis – quando há investigação policial em andamento,
quando há crimes, inclusive crimes de morte, todos os tipos de discussões
difíceis, quando se confrontam opiniões muito fortemente opostas. Temos hoje uma
poderosa cultura de debates, que ainda confunde muita gente. Ninguém sai da
sala, antes de haver algum coisa que todos aceitem, mesmo que a discussão avance
madrugada a dentro, até 2, 3h da madrugada.
Hoje,
esse processo de discussão e formulação de ideias novas é mais difícil, porque
somos muita gente. Se você me perguntar o que é o núcleo de nossa organização,
não saberei dizer. Num congresso com 3.000 pessoas, há expectativas no ar que
não se pode deixar sem resposta. Ao mesmo tempo, não é um show. Num certo momento, todos têm de
se envolver. Mas... Como discutir temas com 500 pessoas na
sala?
E como vocês se organizam? O Partido Pirata
Alemão[1]
usa
uma ferramenta que eles chamam de Realimentação Líquida, por
exemplo.
Sim, mas eles são partido político. Eles têm que chegar a algum acordo em vários tópicos. A Democracia Líquida[2] envolve entregar alguns tópicos a uma determinada pessoa que tenha mais conhecimento e pode agir em nome do melhor interesse de todos. Mas, para a comunicação, usamos ferramentas, como as salas de bate-papo ou Jabber. Mas, pessoalmente, sou conservador sobre ferramentas como o Twitter. Desculpe, mas sou alemão. Sempre que vejo a palavra “follower” [“seguidor”, no Twitter], penso logo na Alemanha Nazista. Não consigo usar aquilo.
Sim, mas eles são partido político. Eles têm que chegar a algum acordo em vários tópicos. A Democracia Líquida[2] envolve entregar alguns tópicos a uma determinada pessoa que tenha mais conhecimento e pode agir em nome do melhor interesse de todos. Mas, para a comunicação, usamos ferramentas, como as salas de bate-papo ou Jabber. Mas, pessoalmente, sou conservador sobre ferramentas como o Twitter. Desculpe, mas sou alemão. Sempre que vejo a palavra “follower” [“seguidor”, no Twitter], penso logo na Alemanha Nazista. Não consigo usar aquilo.
Por
que me arrependeria? O problema é que essa entrevista está sendo gravada, e
temos um acordo, para todos os porta-vozes do Coletivo Caos, de não comentar
esse caso. Há controvérsia demais. As pessoas continuam muito divididas sobre
esse episódio. Para alguns, ele sempre foi bom sujeito. Para outros, sempre foi
espião norte-americano. Disse tudo isso no meu depoimento, que me parece
perfeitamente acurado sobre esse assunto.
Como
foi tomada a decisão de expulsá-lo do Coletivo Caos?
A
coordenação do Coletivo decidiu. De fato, já havia uma história de gente, do
Coletivo, que não gostava do que ele andava fazendo. E não quisemos ter de
escolher lados. Gostamos da ideia de vazar documentos e de garantir apoio
logístico a pessoas em posição vulnerável frente a um ou outro governo, porque
somos a favor da liberdade de informação. Esse sempre foi um dos objetivos do
Coletivo.
Sobre
problemas pessoais entre duas pessoas – não vimos e não escolhemos um lado ou o
outro. Só decidimos sobre o que vimos acontecer: Daniel usou regularmente a sala
do Coletivo Caos para entrevistas à imprensa ou à televisão. Ficou, para muitos,
a impressão de que o Coletivo Caos teria alguma conexão direta com o projeto de
Open Leaks. Todos os membros do Coletivo têm projetos pessoais ou outros dos
quais participam. De fato, ninguém aqui conhecia Daniel, antes de ele aparecer
como porta-voz de WikiLeaks. Ele não era membro, antes disso, do Coletivo Caos.
Nunca pedia autorização para usar a sala de Coletivo e várias vezes foi alertado
para não usá-la para entrevistas. Até que, como gota d’água, aconteceu de ele
usar o Coletivo para testar seu projeto. Nem para isso pediu autorização do
Coletivo. Nunca estive contra o projeto dele, nem contra ele, pessoalmente. Mas,
por exemplo, na fala de apresentação do projeto, já percebi que não falara de
softwares de código aberto. A
estrutura do projeto não era transparente. Nada era aberto, em OpenLeaks. Tudo,
naquele projeto estava em clara oposição aos valores e princípios do Coletivo
Caos.
Já
em várias ocasiões manifestei meu desconforto com aquela situação. Disse, em
entrevista à revista Der
Spiegel, que era “inaceitável”. Ao mesmo tempo, a reação das pessoas
surpreendeu-me. Não foi ideia minha expulsá-lo do coletivo. Foi decisão
coletiva, unânime.
Havia
gente que queria dar-lhe mais uma chance ou, pelo menos, esperar o fim do
evento. Não me entenda mal. Compreendo a importância de cultivar relações
harmoniosas na vida. Mas, para que nossos processos e ideias políticas tenham
coerência, é indispensável que as discussões sejam francas. O melhor meio é
sempre chamar as coisas pelo nome que tenham.
Hackers
ligados
ao Coletivo Caos tiveram, no passado, contatos com serviços de inteligência.
Algumas dessas histórias, como de Karl Koch e Tron, acabaram mal. Sabemos que há
serviços de inteligência recrutando
hackers, em alguns casos, contra a vontade deles. Como lidam com
essas questões?
Quando
visitei a primeira conferência de
hackers nos EUA,
surpreendeu-me ver que serviços do governo andavam por ali, abertamente
recrutando gente, como se trabalhar para o governo fosse coisa normal. Se seu
sistema de valores é baseado só na habilidade técnica, não importa para quem
você trabalhe. Mas se você considera importante, dentre outras coisas, a
liberdade de informação, os serviços de inteligência são exatamente o contrário
de tudo que você considera importante. Serviços de inteligência existem para
ocultar informações.
Fui
convidado para dar uma palestra em Washington intitulada “Open Source Intelligence” [inteligência
com sistemas abertos] e lá encontrei gente da embaixada alemã que trabalhou no
serviço secreto alemão. Perguntei a eles o que significava toda aquela cultura
do sigilo, do segredo. Responderam claramente: “Temos de tornar os processos
mais lentos, para poder controlá-los.”
Os hackers, como o Coletivo Caos os
define, querem que todos tenham capacidade técnica para saber o que está
realmente acontecendo, porque é preciso conhecer os fatos para tomar decisões
políticas bem informadas. Portanto, do nosso ponto de vista, não é aceitável que
membros do nosso Coletivo trabalhem para esses serviços cujo objetivo é o
segredo, o sigilo.
Já
passamos por situações difíceis, com Karl Koch, mas não só com ele. Outros
também trabalharam para a KGB. Nos anos 1980s, estávamos ainda na Guerra Fria,
momento difícil, com investigações policiais, prisões, casas e escritórios
revistados. Era difícil também para nós: em quem confiar? Hoje, todos se
preocupam mais com dinheiro e com fazer carreira. Claro. Ainda há espiões e
informantes, mas é fácil identificá-los e sabemos como lidar com eles. Para mim,
o mais complicado são as pessoas realmente talentosas, do ponto de vista
técnico, que não se incomodam com quem compra seus serviços, e que trabalham na
infraestrutura da Internet ou na interceptação de dados. O dinheiro sempre foi
como papel caça-moscas, e não só para capturar os mais jovens. Claro. Se sua
situação não é financeiramente estável, mais fácil você deixar-se cooptar. Mas é
indispensável criar uma espécie de imunidade contra essas
coisas.
Como
você criou essa imunidade?
Karl
Koch e Tron são dois casos de figuras bem conhecidas que morreram por problemas
dessa natureza e são hoje exemplos históricos para os mais jovens. Esse é o
conhecimento que tentamos passar adiante. Muita gente nos procura, dizendo que
estão sendo assediados para trabalhar para serviços secretos. A primeira
abordagem é sempre feita por empresas privadas que fazem contato e oferecem
emprego. Aos poucos, o empregado começa a ver que o trabalho que lhe pedem pode
não ser, digamos, perfeitamente inocente.
Se
você aparecer aqui e convidar alguém para trabalhar para o governo como hacker, é fácil: é dizer não, e o
caso está resolvido. Mas se a tentação aparece sob a forma de um grande desafio
técnico que interessa ao que o governo esteja fazendo, e a tentação técnica vem
acompanhada de algum dinheiro, a resposta já não é tão fácil. E eles sabem fazer
isso muito bem. É a tal história: se você quiser jantar um sapo e, para
cozinhá-lo, você jogá-lo diretamente na água fervente, o sapo pula fora da
panela e você perde o jantar. Mas se você jogá-lo numa panela de água fria, em
fogo baixo, o sapo só perceberá que está sendo cozido quando já for tarde
demais.
Economia,
ciência, telecomunicações, etc. O programa do mais recente Acampamento-congresso
do Coletivo Caos foi um verdadeiro programa político. Os hackers já estão trabalhando para dar alguma
resposta à crise? Você acredita que tenham competência e habilidade para
oferecer soluções?
Do
ponto de vista prático, nossos acampamentos-congressos são usados como
treinamento de sobrevivência. Durante alguns dias somos capazes de oferecer, a
todos, energia, conexão de Internet, Club-Mate, essas coisas. No primeiro
acampamento-congresso, perdemos muito dinheiro. Não pensamos em itens essenciais
de infraestrutura, como água quente nos chuveiros e privadas que
funcionassem.
A
experiência pode ser muito útil em vários outros sentidos. Aprender, por
exemplo, como montar uma rede de Internet onde não haja qualquer infraestrutura.
A cena hacker traz consigo essa compreensão dos princípios
e das características físicas da tecnologia, um tipo de abordagem que obriga a
encarar todas as questões técnicas e políticas, a partir das mais simples até as
mais complexas, e sempre de modo a que você esteja preparado para fazer qualquer
coisa com seus próprios meios e sozinho. Os que já tenham feito coisas podem
partilhar o que aprenderam e todos contribuem, participando nesse sistema
aberto. Não sei se o que fazemos é super sério, mas com certeza, pelo menos é
uma abordagem claramente proposta. E também é um estado de
espírito.
O que
pensam do Partido Pirata Alemão? Quatro, dos quinze membros eleitos para o
Parlamento em Berlin são membros do Coletivo Caos. É boa
notícia?
Ponhamos
a coisa nos seguintes termos: partidos políticos são formatos organizacionais
complexos. Ao participar desse processo por pelo menos 50 anos, aprende-se a
aceitar o que a maioria tenha decidido, mesmo que você tenha outras ideias ou
conhecimento diferente sobre as mesmas questões. Por isso sempre se criam micro
grupos dentro dos grandes partidos. A democracia parece ser outra coisa,
diferente disso. O Partido Pirata pode ser um uma oportunidade para sair desse
processo. Gosto muito da ideia. É ótima.
O
mais interessante é ver o quanto os outros partidos e todos os políticos temem
essa nova organização. Tentam envolver-se em questões sobre a Internet,
contratam empresas de marketing e relações públicas, leem tudo que o Coletivo
Caos publica e tentam falar uma nova linguagem, tentando aproximar-se das novas
gerações. Fato é que a política tradicional não pode mais ignorar os mais
jovens, o que fizeram, sim, durante muito tempo. Mas não podem continuar a
fazê-lo. Não é possível que os políticos só se lembrem da internet quando se
trata de censurar pornografia e pedofilia pela internet.
Então,
hoje, tentam a “estratégia do tapinha nas costas”: “vocês são nossos amigos”. Já
várias vezes nos convidaram para encontros, mas temos preferido manter o
Coletivo Caos afastado desses contatos, inclusive afastado, também, do Partido
Pirata. Não há oposição nem animosidade. O Partido Pirata é ótimo. Falamos com
todos. Mas é preciso dar tempo ao tempo e ver como operam lá, no mundo político.
É interessante ver que são muito cuidadosos com não se deixar prender nos
mecanismos do funcionamento tradicional.
Notas
dos tradutores
[1]
Partido
Pirata Alemão [al. Piratenpartei
Deutschland; acr. PIRATEN,
“Piratas”) é partido político alemão, criado sobre o modelo do Partido Pirata
Sueco. Foi fundado na Alemanha em 10/9/2006. O Partido Pirata tem, por
plataforma, a defesa dos direitos civis na telefonia e na Internet;
especificamente opõe-se às políticas de sigilo para dados governamentais e à
nova lei em discussão na Alemanha de nova censura na Internet. Também se opõe
aos monopólios e a várias medidas de vigilância sobre cidadãos. O Partido Pirata
prega que o direito à privacidade no campo da informação é direito civil básico.
Prega também reformas nas leis de
copyright, educação e patentes genéticas. Promove, sobretudo,
ampla transparências dos governos, com implementação de uma governança de código
aberto, e que os governos eletrônicos sejam submetidos a inspeção e
monitoramento por órgãos da sociedade. Leia mais sobre o Partido Pirata
Alemão , em inglês.
[2]
Leia mais sobre
“Liquid Democracy”.
[3] Daniel Domscheit-Berg, mais conhecido pelo pseudônimo Daniel Schmitt (nascido em 1978), é ativista alemão no campo das TICs. Ficou conhecido por ter sido, até setembro de 2010, porta-voz de WikiLeaks. É autor do livro Inside WikiLeaks: My Time with Julian Assange at the World's Most Dangerous Website (2011). Depois de deixar a organização Wikileaks, anunciou planos, em janeiro de 2011, de abrir outro website para vazamento anônimo de material secreto, OpenLeaks. O anúncio foi feito num evento do Coletivo Caos, em agosto de 2011, quando falou do lançamento da página, ainda em fase de testes, e convidou os hackers daquele Coletivo alemão a testar a segurança do sistema OpenLeaks. O Coletivo Caos criticou-o publicamente e o expulsou. Em setembro de 2011, vários jornais e organizações de mídia citaram a cisão entre Julian Assange e Domscheit-Berg como um dos eventos de uma cadeia que levaram à divulgação, naquele mês de todos os 251.287 telegramas diplomáticos dos EUA
[3] Daniel Domscheit-Berg, mais conhecido pelo pseudônimo Daniel Schmitt (nascido em 1978), é ativista alemão no campo das TICs. Ficou conhecido por ter sido, até setembro de 2010, porta-voz de WikiLeaks. É autor do livro Inside WikiLeaks: My Time with Julian Assange at the World's Most Dangerous Website (2011). Depois de deixar a organização Wikileaks, anunciou planos, em janeiro de 2011, de abrir outro website para vazamento anônimo de material secreto, OpenLeaks. O anúncio foi feito num evento do Coletivo Caos, em agosto de 2011, quando falou do lançamento da página, ainda em fase de testes, e convidou os hackers daquele Coletivo alemão a testar a segurança do sistema OpenLeaks. O Coletivo Caos criticou-o publicamente e o expulsou. Em setembro de 2011, vários jornais e organizações de mídia citaram a cisão entre Julian Assange e Domscheit-Berg como um dos eventos de uma cadeia que levaram à divulgação, naquele mês de todos os 251.287 telegramas diplomáticos dos EUA
Créditos das fotos: Ophelia Noor
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