3/11/2011, *M K
Bhadrakumar, Asia Times Online
Traduzido
pelo Coletivo da Vila Vudu
Não
haveria melhor cenário que a velha capital bizantina no Bósforo, para uma
conferência sobre o Afeganistão, na atual conjuntura. A conferência em Istambul
ontem, 4ª-feira, 2/11/2011, recebeu título imponente: “Segurança e Cooperação no
Coração da Ásia”. O “coração”, no caso, tinha 14 câmaras: Afeganistão,
Paquistão, Irã, China, Tadjiquistão, Uzbequistão, Turcomenistão, Cazaquistão,
Rússia, Índia, Turquia, Arábia Saudita e Emirados Árabes
Unidos.
A
conferência foi carregada de alto drama, o que não surpreende, uma vez que o
“cérebro” da conferência – os EUA – operaram como se o coração praticamente nem
existisse.
Intriga
e contraintriga dominaram desde o início, de tal modo que se adivinhava
facilmente o fracasso da Conferência.
Os
EUA e seus aliados ocidentais começaram com altas esperanças de que a Turquia,
parceira da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), conseguiria
arrancar uma declaração – de preferência assinada pelos 14 estados “do coração
da Ásia” – a qual prepararia o terreno para que se estabelecesse um mecanismo de
segurança e integração semelhante à Organização para Segurança e Cooperação na
Europa [Organization of Security and Cooperation in Europe (OSCE)]. E
essa organização, por sua vez, alçaria voo na próxima Conferência Bonn II, em
dezembro (para a qual a Alemanha convidou 90 países e 15 organizações
internacionais).
Mas
a 4ª-feira em Istambul chegou ao fim, com nada além de uma nota paupérrima. O
coração da Ásia não sofreu rupturas e passa bem. O Uzbequistão separou-se e
afastou-se no último minuto, e os restantes 13 países assinaram declaração
anódina, mais uma, na mais recente série de platitudes e boas intenções ocas,
desde que os EUA invadiram o Afeganistão.
“Em
campo”, um pouso forçado
Logo
à primeira vista, já era claro que a agenda da conferência tomava rumo errado.
Em vez de cuidar de construir uma reconciliação nacional viável para o
Afeganistão, definir o que fazer para pôr em andamento tal processo e garantir
que fosse genuinamente conduzido pelos afegãos, os “cérebros” da conferência –
os EUA, principalmente – encheram a agenda com
geopolítica.
A
Conferência emperrou, sob uma agenda ambiciosa, planejada para impor à região,
sob liderança ocidental, um mecanismo para mediar inúmeras disputas e diferenças
intrarregionais, questões que, se pode dizer, apenas tangenciam a estabilização
do Afeganistão e não são hoje, de modo algum, a maior preocupação de
todos.
Para
dizer o mínimo, foi como pôr o carro à frente dos bois. Os cérebros ocidentais
tentaram impor à conferência, desnecessariamente, um modelo controverso de nova
arquitetura da segurança para a Ásia Central e do Sul, a ser completado por um
mecanismo institucional e um “grupo de contato” para monitorar a implementação
de medidas “para construir confiança”.
Sempre
foi ideia condenada “em campo” a ter de fazer um pouso forçado, porque há muitas
e profundas desconfianças quanto às reais intenções dos EUA na “guerra ao
terror” no Afeganistão e pouca ou nenhuma disposição, pelos estados regionais,
para aceitar a presença permanente do ocidente como árbitro-moderador-mediador
de praticamente tudo, na região.
Nos
encontros preparatórios da conferência oficial, em Oslo, Noruega, e em Kabul,
nos meses de setembro e outubro, já era evidente que não havia na região
interessados em comprar alguma nova organização de segurança regional a ser
comandada pelo ocidente.
Rússia,
China, Irã, Paquistão e a maioria dos países da Ásia Central demoliram a
proposta dos EUA, de uma nova “arquitetura de segurança regional”. A Índia, que
não gosta de mediação externa em suas disputas, manteve-se calada, para não
ofender os EUA (confiando, provavelmente, que o Paquistão se encarregaria de
todo o serviço).
Moscou
apareceu com sua própria contraproposta, nos moldes de uma declaração de
princípios para a cooperação regional, listando medidas políticas, econômicas e
outras para construir confiança e encorajar a cooperação entre os países
vizinhos do Afeganistão. A ação russa foi bem acolhida por China, Paquistão e
Irã; sem ter de fato nada de excepcional, a proposta russa ganhou impulso e
parece ter pavimentado o caminho que levou à declaração conjunta de ontem, em
Istambul.
De
qualquer modo, Washington (e Ancara) tentou até o último momento
institucionalizar, fosse como fosse, um processo regional, com “grupos de
trabalho” e formato “estruturado” para consultas. Tudo indica que o Paquistão
encarregou-se de derrubar firmemente essas ideias; disse que conferência sobre
segurança, do tipo da OSCE, ou qualquer tipo de aparelho de segurança muito
amplo, seria em todos os casos completamente inaceitável, porque há um universo
de diferenças entre (I) as compulsões da Guerra Fria que iniciaram o processo de
Helsinki; e (II) a real situação no Afeganistão.
O
Paquistão entende que os países vizinhos do Afeganistão podem, no máximo,
cumprir papel de apoio à paz, à segurança e à integridade daquele país; em vez
de propor novos mecanismos, é preciso tratar de implementar mecanismos já
existentes que visam a promover a paz, a segurança e o
desenvolvimento.
O
plano de jogo dos EUA em Istambul visava a quatro
objetivos.
(1)
Washington planejara “enquadrar” o Paquistão entre as quatro paredes de um
mecanismo regional de segurança dominado pelo ocidente, de tal modo que o
Paquistão aparecesse como apenas mais um, dentre outros; assim Washington
contava diluir o papel protagonista e a aspiração, do Paquistão, a uma posição
destacada no processo de paz afegão.
(2) O
mecanismo regional daria boa ajuda aos EUA e seus aliados, que manteriam o
comando, na construção de algum encaminhamento para o Afeganistão, também depois
de 2014.
(3)
Washington estimava que o aparelho regional de segurança acabasse
inevitavelmente por sobrepor-se à Organização de Cooperação de Xangai [ing. Shanghai Cooperation Organization (SCO)]
como principal processo de segurança regional na Ásia Central e no sul da Ásia;
assim, Washington esperava minar a influência dominante de Rússia e China na
Ásia Central.
(4) Os EUA
planejavam criar um mecanismo regional que garantisse a infraestrutura de
segurança para seu projeto “Nova Rota da Seda”, que corre por via paralela – uma
versão modernizada da “estratégia Grande Ásia Central”, nascida ainda durante a
presidência de George W Bush. Pelo projeto “Nova Rota da Seda”, o Afeganistão
seria um nódulo regional para aproximar entre eles a Ásia Central e o sul da
Ásia, num mesmo projeto de integração e de desenvolvimento
regional.
Mas
em todos esses objetivos está presente o objetivo central de Washington, de
fazer Rússia e China recuar da posição em que estão na Ásia Central, e conseguir
acesso direto, para os EUA, aos vastos recursos minerais da região, através de
elos de comunicação que contornem, sem ter de cruzá-los, a Rússia e o Irã. A
agenda dos EUA incluía conseguir para a OTAN alguma espécie de papel formal,
institucional, na segurança da Ásia Central. (Proteger oleodutos, gasodutos e
outras rotas de energia é “desafio” recém-descoberto, no século 21, que a OTAN
apresenta-se para assumir.)
Provavelmente,
Moscou e Pequim desconfiaram desde o primeiro momento do que estava sendo
arquitetado. O principal resultado da Conferência de Istambul, portanto, talvez
seja que a Organização de Cooperação de Xangai acelerará seus processos de
tomada de decisões, na direção de apressar os trâmites para que Paquistão e
Índia incorporem-se à organização.
A
declaração dos russos, divulgada na 2ª-feira, depois de consultas entre os
ministros de Relações Exteriores russo e chinês em Moscou, informava que os dois
países discutiram as modalidades de finalização do ingresso na Organização de
Cooperação de Xangai e “falaram sobre apressar o processo de inclusão” de Índia
e Paquistão (com o Afeganistão no status de “Observador” na OCX). O mais
provável é que uma decisão seja formalizada na reunião de Chefes de Governo dos
países da OCX marcada para a próxima 2ª-feira em São
Petersburgo.
Nota de
triunfalismo
Sublinhando
todo esse alto drama, Washington (e outras capitais regionais) parece ter
entendido que a situação político-militar no Afeganistão está alterando-se
decisivamente a favor do Paquistão, o que disparou uma tentativa desesperada
para garantir a presença militar dos EUA e da OTAN no estratégico Hindu
Kush.
Há
à frente, sem dúvida, período de muitos perigos para EUA e OTAN, ante a forte
possibilidade de as forças de Mulá Omar e da rede Haqqani passarem a colaborar
abertamente, com vistas a intensificar as atividades dos
guerrilheiros.
O
devastador ataque de um suicida-bomba, num carro, em Kabul, que matou 13
soldados americanos e dois australianos, bem pode ser o primeiro ato de uma nova
ofensiva. O momento – na véspera da conferência em Istambul – aparece como claro
recado ao governo dos EUA, de que as coisas mudaram, e que a estratégia dos EUA
para degradar os Talibã e forçá-los a entrar em negociações não apenas falhou:
hoje, os Talibã parecem mais convencidos do que nunca de que avançam, passo a
passo, na direção de vitória conclusiva.
Visivelmente,
a visita da secretária de Estado Hillary Clinton a Islamabad há dez dias não
ajudou a reduzir o imenso déficit de confiança na relação EUA-Paquistão. Os
militares paquistaneses parecem ter-se divertido com a tentativa, de Clinton, de
transformar em mérito o que é a dura necessidade, ao “oferecer” graciosamente a
Islamabad a “primazia” para “apertar” os Haqqanis e levá-los à mesa de
negociação.
De
fato, o cerne da questão é que as tentativas clandestinas dos EUA, nos últimos
meses, para tentar chegar diretamente aos líderes Talibã e tentar iniciar suo moto um processo de paz, com os EUA em
posição de força, deram em nada, como hoje se vê.
Por
outro lado, o Paquistão avalia que o presidente Barack Obama dos EUA estará
confinado cada dia mais no campo defensivo, quanto mais se aproximem as eleições
do próximo ano, o que reduz ainda mais a capacidade dos EUA para pressionar
Islamabad. Já se ouve um tom triunfalista, nos discursos dos
paquistaneses.
Sem
dúvida, também o governo Obama perceberá que os fatores de vantagem tendem cada
vez mais a favor do Paquistão, e que os EUA não têm qualquer instrumento efetivo
para pressionar os militares paquistaneses. Os EUA atrelaram-se à Turquia, na
esperança de que os turcos fizessem avançar a agenda, na Conferência de
Istambul, porque a Turquia mantém relações calorosas e amistosas,
tradicionalmente, com o Paquistão. Também esperavam que a presença da Arábia
Saudita e dos Emirados Árabes Unidos, em Istambul, influenciasse o Paquistão.
Mas é possível que a Conferência de Istambul tenha, até, provocado fissuras nos
laços entre Turquia e Paquistão. Um observador turco escreveu:
“Sopram
ventos frios entre os dois países [Turquia e Paquistão], por causa do problema
afegão (...). Islamabad está bastante irritada com a Turquia, pelo papel que
teve na Conferência (...). Basicamente, o Paquistão irritou-se com Turquia e
EUA, que queriam conferência orientada para resultado pré-fixado. Para que a
conferência dê frutos, é indispensável que o processo se institucionalize. Em
outras palavras, na falta de qualquer tipo de mecanismo que monitore o processo
que pode incluir medidas para construir confiança, tudo que se disse em Istambul
ficará no papel.
Os
diplomatas turcos tentaram acalmar os paquistaneses; disseram que a presença da
Turquia no quadro regional deve tranquilizar os paquistaneses vis-à-vis
outros
atores. Afinal, os turcos não têm agenda secreta para fortalecer a Índia à custa
do Paquistão. Mas duvido que tenham conseguido acalmar os
paquistaneses”.[1]
Tudo
considerado, do ponto de vista de russos e chineses, tornou-se desejável – quase
imperativo – doravante, olhando adiante, que o Paquistão ganhe autonomia
estratégica para resistir à pressão dos EUA. Com certeza apreciarão a firmeza do
Paquistão, na operação para frustrar os planos norte-americanos de instalar um
mecanismo de segurança regional pelo qual poderiam manter continuada
interferência na Ásia Central.
Em
termos gerais, o fracasso da Conferência de Istambul cria grave dificuldade para
a próxima Conferência Bonn II, em dezembro. Sem um quadro institucionalizado de
cooperação regional, que não nasceu em Istambul, Bonn II resulta sem agenda
viável, exceto pelo fato de 2011 oferecer excelente oportunidade para fotos
históricas: é o décimo aniversário de Bonn I, realizada em dezembro de
2001.
Originalmente,
se esperava que representantes dos Talibã participassem do encontro em Bonn.
Mas, exceto por milagre, não acontecerá. Assim, EUA e os aliados da OTAN estarão
completamente isolados, para planejar alguma transição no Afeganistão para
depois de 2014, quando se reunirem na Cúpula dos Países da OTAN, em maio, em
Chicago.
Em
suma, as potências regionais não dão qualquer sinal de querer colaborar com EUA
e seus aliados, na coreografia da segurança regional pós-2014. Rússia e China
insistem que a comunidade internacional seja representada pela ONU, na questão
afegã, a partir do instante em que EUA e OTAN saiam do Afeganistão, em
2014.
Evidentemente,
esperam que a Organização de Cooperação de Xangai assuma papel protagonista na
estabilização do Afeganistão. A rápida admissão do Afeganistão como observador
na OCX e a admissão do Paquistão como membro, falam alto e claro: a mensagem é
que a segurança regional estará mais bem servida se deixada a cargo dos países
da região, com potências extra-regionais atuando como facilitadores. Essa é,
também, a mensagem final da Conferência de Istambul.
Nota dos tradutores
[1] 2/11/2011, Barçin Yinanç, “Pakistan should stop relying on its nuisance
value”, Hurriyet Daily
News, Paquistão.
*MK Bhadrakumar foi diplomata de
carreira do Serviço Exterior da Índia. Prestou serviços na União Soviética,
Coreia do Sul, Sri Lanka, Alemanha, Afeganistão, Paquistão, Uzbequistão e
Turquia. É especialista em questões do Afeganistão e Paquistão e escreve sobre
temas de energia e segurança para várias publicações, dentre as
quais
The
Hindu,
Asia
Online e Indian Punchline.
É o filho mais velho de MK Kumaran (1915–1994), famoso escritor, jornalista,
tradutor e militante de Kerala.
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