John Feffer |
29/11/2011, John
Feffer, Foreign Policy in
Focus, vol. 6, n. 47
“Occupy
Foreign Affairs” (excerto)
Traduzido pelo
Coletivo da Vila
Vudu
O que
mais realmente surpreende não é o tema do recente ensaio de George Packer
[1]. A
desigualdade, diz ele, está minando a democracia. Vários progressistas martelam
essa ideia também dentro dos EUA há anos, se não há décadas. Nem chega a
surpreender, tampouco, a decisão de publicar.
Foreign Affairs é a publicação baluarte da elite
norte-americana que comanda a política exterior dos EUA. Mas já não é a velha
publicação exclusivamente de centro-direita dos anos da Guerra Fria. Afinal de
contas, tem publicado material de autores como Michael Klare [2]
e Julia Sweig [3], todos
oriundos do Institute for Policy Studies, e também de John Gershman [4], que me antecedeu nessa Foreign Policy In Focus. Não. O que
mais chama a atenção não é que a revista tenha publicado do ensaio de Packer. É
o destaque que a revista deu àquele ensaio: é o ensaio de fundo da edição
nov./dez.-2011 da revista, exposto já na capa, onde se lê, em letras negritadas
“Acabou-se a América?” [Is America Over? [5]]
Quando
a revista Foreign Affairs põe a desigualdade na capa, provoca
discussão pública [6]– e leva o
debate para dentro dos aristocráticos gabinetes do Conselho de Relações
Exteriores – não há dúvida: o movimento Occupy Wall Street alcançou
importantíssima vitória, que supera, de longe, a “simpatia” que recebeu de
bastiões do liberalismo como The New
York Times, The New York Review
of Books, e The New Yorker.
É sinal, também, de que a elite norte-americana das “relações internacionais”
nos EUA está tomada hoje de profunda ansiedade. A questão é: por que os
mandarins da política exterior dos EUA estão à beira de um ataque de nervos? Ou,
dito de outro modo: por que a revista
Foreign Affairs passa a
desejar, de repente, que seus leitores concentrem-se com seriedade na questão da
desigualdade?
Packer argumenta que
a economia dos EUA descarrilou no final dos anos 1970s, quando o 1% mais rico
deixou de pensar nos interesses nacionais e concentrou-se absolutamente em
preservar o próprio poder econômico e político. Lobbysts poderosos, políticos da oposição política de
direita e uma Wall Street
recentemente desregulada, todos, uniram forças para promover a riqueza dos
muitos ricos, deixando para trás toda a população. Embora a globalização e a
tecnologia tenham acelerado aquelas tendências, elas resultaram de escolhas
fundamentalmente políticas feitas por governos eleitos (movidos pelos poderosos
interesses que os ajudaram a eleger-se).
“Temos recursos
para upgrade de telefones celulares, mas não temos
recursos para consertar estradas ou pontes” – escreve Packer, como exemplo do
projeto econômico daqueles anos. “Inventamos a banda larga, mas não cuidamos de
estendê-la nem a 35% do público consumidor. Carregamos 300 canais de televisão
no iPad, mas, na última década, 20
jornais fecharam as sucursais em outros países.”
Em outras palavras,
o interesse público sofreu grave deterioração nas últimas duas décadas, apesar
de o interesse privado continuar a prometer velocidades máximas, “inovação” e
novidades sem fim. Para piorar, essa é uma dinâmica que se retroalimenta.
“Quanto mais a riqueza se concentra em poucas mãos no topo da pirâmide, mais
influência e poder-de-favor acumula-se do lado dos ricos e dos conectados aos
ricos, o que torna cada vez mais fácil para os ricos prosseguirem nos projetos
que excluem, sem que, por isso, tenham de pagar o preço final” – continua
Packer. “Isso, simultaneamente libera os ricos para que se dediquem a acumular
cada vez mais riqueza, até que já não se possa distinguir o que é causa e o que
é efeito”.
Tudo isso faz
perfeito sentido para mim e meus colegas do Institute for Policy Studies que tanto
estudamos o problema da desigualdade ao longo da última década. O que não faz
ainda perfeito sentido é por que a revista Foreign Affairs, de repente,
decide chamar a atenção para a mesma questão. A edição de nov.-dez./2011 traz
publicidade da Shell na pág. 2 da
capa e do Grupo Goldman Sachs no verso: nem um nem outro podem ser ditos,
precisamente, simpáticos ao movimento Occupy Wall Street. O Conselho de
Relações Exteriores, que publica a revista
Foreign Affairs, tem longo e intenso relacionamento com Wall Street e figurões como David
Rockefeller e Peter Peterson. A primeira impressão é que Foreign Affairs mordeu a mão que a
alimenta.
Aqui vão três
possíveis razões para o súbito interesse por questões de desigualdade, na
revista Foreign
Affairs.
Os
empregos continuam a desaparecer:
Muitos dos jovens
que estão hoje à frente do Movimento Occupy Wall Street fizeram tudo que lhe
disseram que fizessem: foram à universidade, assumiram empréstimos-gigantes para
pagar os cursos e, mesmo assim, não encontram empregos decentes. No início dos
anos 1970s, Adam Davidson escreveu na revista
The New York Times Magazine, “menos de 11% da população adulta era
formada em cursos superiores e a maioria deles conseguia bons empregos. Hoje
quase 1/3 da população tem formação superior e porcentagem muito mais alta
frequenta universidades de segunda linha.” E os empregos, simplesmente, não
existem.
A mensagem de Occupy Wall Street ecoa alta e clara
também nos estratos dominantes da sociedade nos EUA – e em publicações como a
revista Foreign Affairs – porque os pais e mães de classe média alta
estão hoje muito agudamente conscientes das dificuldades que os filhos
encontrarão à frente. Claro que a desigualdade já há muito tempo afeta duramente
os operários e os afro-norte-americanos. Mas a elite agora está obrigada a ver
que jovens brancos, que saem das melhores universidades do país já curvados sob
o peso da enorme dívida que assumiram para estudar, são o equivalente funcional
dentro dos EUA da desigualdade que, antes, se associava aos países do Terceiro
Mundo.
EUA
perdem competitividade: Os que defendem mercados livres têm,
tradicionalmente, resposta pronta à ideia de que os EUA já não são globalmente
competitivos. Mesmo com tantos empregos transferidos para o exterior, dizem
eles, os EUA continuam a ser a nação líder da “inovação”: iPhones, sequenciamento de genes, os
mais complexos instrumentos financeiros.
Apesar de o sistema
público de saúde ser visível fracasso, nossos recursos para medicina de alta
complexidade continuam a ser os melhores do mundo, e a elite global continua a
acorrer aos nossos hospitais, em busca dos tratamentos mais sofisticados. Apesar
de nosso complexo militar-industrial ser o horror quase absoluto, o mundo
inteiro faz fila para comprar nossos jatos de combate. Mas, digam o que
disserem, a verdade nua e crua é que, por todos os padrões objetivos, os EUA já
ficaram para trás. No mais recente Índice de Competitividade Global do Fórum
Econômico Mundial, os EUA caíram pelo terceiro ano consecutivo e chegam agora ao
5º lugar.
Nos primeiros
lugares estão países europeus: Suíça, Finlândia, Suécia.
Apesar
de todos os problemas da zona do euro, há 11 países nos 20 primeiros lugares de
países mais competitivos. Embora a desigualdade não seja item considerado
diretamente para construir essa lista, ela influencia indiretamente os
resultados, porque pesa nos itens de infraestrutura pública e Produto Interno
Bruto per capita. No The Atlantic, Richard
Florida, [7] especialista em
estudos urbanos, destaca a relação inversa que há entre desigualdade e
competitividade, para mostrar que a criatividade pode, sim, andar de mãos dadas
com a igualdade de oportunidades. Todos podemos comer do biscoito fino e,
simultaneamente, distribuí-lo para muitos.
Já
não se trata só, hoje, do Sul Global:
A Primavera
Árabe seguiu o padrão clássico de classe econômica emergente, que vê suas
ambições capadas por estados esclerosados na Tunísia e no Egito. Quando as ondas
de pós-choque da Primavera Árabe atingiram o clube da OCDE (Organização para a
Cooperação e Desenvolvimento Econômico) de países economicamente avançados, o
foco, rapidamente, foi direcionado para questões da desigualdade.
Neste verão, por
exemplo, Israel conheceu os maiores protestos de toda sua história. Nada tiveram
a ver com Palestinos ou colônias ilegais em territórios ocupados, nem com as
questões que, em geral, empurram Israel para as manchetes. Antes de aparecerem
as tendas no Parque Zuccotti em New York
City, apareceram nas ruas de Telavive, sob o slogan “Queremos um estado de
bem-estar”.
O “milagre
econômico” de Israel, inventado em larga medida por um boom tecnológico, só beneficiou pequena parcela
da população. Como Eyal Press observou, na
The New York Review of Books, Israel é o quinto país em termos de
alta desigualdade na classificação da OCDE e está vendo crescer a faixa de
pobreza extrema. Mesmo nos países elogiados pela capacidade de surfar a onda da
“inovação”, as classes médias estão perdendo espaço.
Segundo a OCDE, a
desigualdade aumentou dramaticamente na maioria dos países de economia mais
avançada do mundo. Uma coisa é a desigualdade minar a democracia – efeito que
jamais tirou o sono dos mandarins da política exterior dos EUA. Mas outra coisa,
muito diferente, é a desigualdade já estar minando a estabilidade e o contexto
geral dos investimentos: então, sim, os papas de Foreign Affairs resolveram se mexer.
Tudo isso implica,
ao que parece, que os mandarins da política exterior dos EUA começam, aos poucos
a perceber que a ressaca de seus anos Bush vinha não com apenas um, mas dois
graves sintomas. As invasões militares e violações das leis internacionais
continuaram a causar terríveis dores de cabeça. E o furor desregulatório e
cortes de impostos para os ricos causavam também graves perturbações na
digestão. A palavra então passou a ser “prudência”. A corrida à caça do lucro e
o impulso da ganância desenfreada são sempre bem-vindos, para essa gente. Mas
quando as coisas começam a aproximar-se do ponto de risco máximo, é preciso
introduzir correções de rota. A decisão de publicar e promover o ensaio de
Packer é o equivalente de pais que aparecem no auge da festa dos filhos, para
ordenar que baixem o som, antes de os vizinhos chamarem a polícia.
Ronald
Reagan costumava dizer, bem arrogantemente, que os Democratas tinham ido tão
para a esquerda, que acabaram por cair para fora do país. Hoje, a política
exterior começa a ver que os Republicanos moveram-se tanto para a direita, que
saíram dos trilhos, de vez. O Partido Republicano foi tão furiosamente extremo
na defesa do 1% – hoje, de fato, já não passam de 0,1%, como Paul Krugman já
lembrou – que de fato esqueceram os interesses do país e criaram um confederação
de cupidez. Essa confederação só consegue ver a busca de poder e privilégios.
Por mais aliados que ainda sejam, de Wall
Street, os enfatuados da revista
Foreign Affairs já sabem
que essa não é aliança que lhes interesse defender. (...)
Notas dos tradutores
[1] “Inequality
and American Decline. The Broken Contract” [Desigualdade e declínio
americano. O contrato quebrado], George Packer, Foreign Affairs, nov,-dez.2011,
[4] Foreign Affairs,
2/2/2010, “What to Read on Foreign Aid”
[5] A capa pode ser vista em: “In the Magazine”
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