8/11/2012, Hussein Agha e Robert Malley [1], New York
Review of Books, 8/11/2012, vol. 59, n. 17 - “This
Is Not a Revolution”
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Paul Simon |
All lies and jest
Still, a man hears what he wants to hear
And disregards the
rest
Tudo mentiras e
bobagens
Mesmo assim, o cara
ouve o que quer ouvir
e desconsidera o resto
Paul Simon em The Boxer [2]
A
escuridão desce sobre o mundo árabe. Desperdício, morte e destruição, no fim de
luta por vida melhor. Forasteiros competem por mais influência e acertam contas.
As manifestações pacíficas com as quais tudo começou, os valores alçados que as
inspiraram, são lembranças distantes. Eleições são momentos festivos nos quais
as visões políticas são consideração desimportante. O único programa consistente
é religioso, forçado pelo passado. Luta-se desbragadamente por poder, sem regras
claras, valores ou objetivos. Não acabará nem com mudança de regime, nem com
regime sobrevivente. A história não anda adiante: escorrega de lado.
Há
jogos dentro de jogos: batalhas contra regimes autocráticos, confronto
confessional sunita-xiita, luta por poder regional, uma Guerra Fria redeclarada.
Nações dividem-se, minorias acordam, sentindo uma possibilidade de escapar das
restrições do Estado cerceador. O quadro não é claro. Veem-se fragmentos de uma
paisagem que ainda está em devir, só com pinceladas de algum rumo. As mudanças
que hoje se creem essenciais logo são descartadas como bobagens, em jornada mais
extensa.
Atores
novos ou apenas recentemente revigorados correm para o procênio: a mal definida
“rua”, a postos para mobilizar-se, tão rapidamente quanto para debandar; jovens
protestadores, ativistas centrais durante o levante, atropelados logo adiante. A
Fraternidade Muçulmana ontem tratada pelo Ocidente como bando de perigosos
extremistas, é hoje abraçada e festejada como associação de empresários
sensíveis, pragmáticos. Os salafistas mais tradicionalistas, antes alérgicos a
qualquer forma de política, apressam-se hoje a concorrer em eleições. Há tantos
grupos armados e milícias sombrias de fidelidade duvidosa a benfeitores
desconhecidos, quanto gangues, criminosos, salteadores e sequestradores.
Há
alianças às avessas, que desafiam qualquer lógica, inidentificáveis e sempre
alteradas. Regimes teocráticos apoiam secularistas; tiranias promovem
democracia; os EUA firmam parcerias com islamistas; islamistas apoiam
intervenção militar ocidental. Nacionalistas árabes cerram fileiras com regimes
que combatem há anos; liberais unem-se a islamistas com os quais, imediatamente,
passam a viver aos murros. A Arábia Saudita apoia secularistas contra a
Fraternidade Muçulmana e salafistas contra secularistas. Os EUA são aliados ao
Iraque, que é aliado do Irã, que apoia o regime sírio, que os EUA esperam
derrubar. Os EUA são aliados também do Qatar, que financia o Hamás, e da Arábia
Saudita, que financia os salafistas que inspiram jihadistas que não
perdem ocasião de matar norte-americanos.
Em
tempo recorde, a Turquia passou, de zero-problemas com seus vizinhos a
todos-os-problemas com os mesmos vizinhos. Afastou-se do Irã, enfureceu o Iraque
e está às turras com Israel. Está virtualmente em guerra com a Síria. Os curdos
iraquianos são hoje aliados de Ancara, por mais guerra que Ancara faça aos seus
próprios curdos, e mesmo que suas políticas no Iraque e na Síria incendeiem as
tendências secessionistas na própria Turquia.
Durante
anos, o Irã opôs-se a regimes árabes, cultivando laços com islamistas de cujas
motivações religiosas o Irã sentia que poderia fazer causa comum com suas
próprias motivações. Nem bem chegam ao poder, os islamistas tratam de ganhar a
confiança de antigos inimigos sauditas e ocidentais, e afastam-se de Teerã, por
mais que Teerã lhes faça a corte. O regime iraniano, obrigado a diversificar
suas alianças, busca não islamistas que se sintam abandonados pela ordem
nascente e apavorados ante a crescente camaradagem entre islamistas e os EUA. O
Irã tem experiência nisso: ao longo dos últimos 30 anos, manteve-se aliado à
Síria secular, mesmo quando Damasco detonava os seus islamistas.
Quando
os objetivos convergem, os motivos divergem. Os EUA cooperavam ontem com as
monarquias e os xeiques do Golfo para depor Gaddafi e, hoje, para depor Assad.
Dizem que têm de manter-se do lado certo da história. Mas são regimes que não
respeitam em casa os direitos que tanto pregam longe de casa. Não visam nem a
alguma democracia nem a sociedades abertas. Disputam encarniçadamente o domínio
regional. O que, além do butim, proponentes de levantes democráticos sui
generis podem encontrar em países cujos sistemas de governo são anátemas
face ao projeto democrático que eles mesmos supostamente estariam promovendo?
O
novo sistema de alianças depende de quantidade excessiva de falsos pressupostos
e encobre quantidade excessiva de incongruências profundas. Não presta, porque
não pode ser real. Alguma coisa está errada. Alguma coisa extrapola. Não pode
terminar bem.
A
guerra “midiática” que começou no Egito alcança o zênite na Síria. Cada lado só
mostra o próprio lado, amplifica os números, esquece o resto. No Bahrain,
acontece exatamente o contrário. Não importa quantos opositores o regime mate,
ninguém percebe coisa alguma. Não há registro, na escala de atenção. Há pouco
tempo, vídeos filmados na Líbia glorificavam gangues que exibiam bandanas
coloridas e aplomb triunfante. As batalhas verdadeiras, sangrentas, a
morte chovendo quase sempre do céu, aconteciam noutro cenário. Não se
registravam baixas.
Gangues
mascaradas se reúnem na Praça Tahrir. A câmera fecha nos que protestam. E os
milhões invisíveis que ficaram em casa? Festejam a derrubada de
Mubarak ou lamentam silenciosamente aquela partida? O que sentem os egípcios
sobre a desordem, a confusão, o colapso econômico e a incerteza política
reinantes? Nas eleições, metade da população do Egito não votou. Dos que
votaram, metade votou a favor da velha ordem. Quem procurará os que jazem do
outro lado do lado certo da história?
Muitos
sírios lutam, nem em defesa do regime, nem em apoio à oposição. Estão no ponto
que só padece desse confronto vicioso, ninguém ouve seus desejos, são vozes
mudas, destinos esquecidos. A câmera é parte integrante da agitação, instrumento
de mobilização, propaganda e incitamento. O desequilíbrio militar favorece
regimes velhos, mas esse desequilíbrio é, com frequência, muito mais que
compensado pelo desequilíbrio da mídia, que favorece as forças novas. O antigo
regime líbio dependia da retórica bizarra de Gaddafi; o da Síria de Assad
depende da mídia estatal desacreditada. Não é luta equilibrada. Na batalha pela
simpatia pública, em tempos de lavagem de notícias, a velha ordem não teve,
jamais, qualquer chance.
Hussein Agha |
Os
que estão no poder praticamente nunca tem a força que advém de eleitorado local,
cuja lealdade seja clara; carecem de apoio externo e, assim, têm de ser
cautelosos, ajustar suas posições ao que os forasteiros aceitem. Líderes
revolucionários, antes, jamais foram dirigidos por considerações desse tipo.
Para o bem ou para o mal, eram furiosamente independentes e orgulhavam-se de
rejeitar qualquer interferência externa.
Muito
semelhantes aos governos que ajudam a depor, os islamistas acomodam-se ao
ocidente, aplacam o ocidente. Muito semelhantes aos que substituem, que usavam
os islamistas como espantalhos para manter o ocidente junto deles, os Irmãos da
Fraternidade Muçulmana acenam com o espectro do que sobrevirá, se falharem
agora: os salafistas, os quais, por sua vez e semelhantes, nisso, aos Irmãos “de
raiz”, estão divididos entre a fidelidade às próprias tradições e o gosto do
poder.
É
um jogo de cadeiras. No Egito, os salafistas representam o papel que, antes,
coubera à Fraternidade Muçulmana; a Fraternidade representa o papel que, antes,
coubera ao regime Mubarak. Na Palestina, a Jihad Islâmica é o novo Hamás,
lançando foguetes para criar problemas ao partido que governa Gaza; o Hamás, o
novo Fatah, que se diz movimento de resistência e mete as garras nos que
resistam; o Fatah, versão das velhas autocracias árabes que, antes, criticava.
Quanto falta, para que os salafistas apresentem-se ao mundo como alternativa
preferível aos jihadistas?
A
política egípcia está entalada entre a Fraternidade Muçulmana triunfante,
salafistas linha mais dura, não islamista ansiosos e remanescentes da velha
ordem. Enquanto a Fraternidade vitoriosa tenta chegar a algum acordo com o
resto, o futuro político é uma incógnita. A velocidade e a elegância com que o
novo presidente Mohamed Mursi aposentou ou descartou a velha liderança dos
militares e a calma com que esse movimento ousado foi recebido sugerem que
aumentou a confiança dos islamistas, que já estão interessados em andar mais
depressa.
A
Tunísia é história confusa. A transição foi, em boa parte, pacífica; o partido
an-Nahda, que venceu as eleições em
outubro passado, oferece face moderada, pragmática do islamismo. Mas seus
esforços para consolidar o próprio poder são fonte de nervosismo. Cresce a
desconfiança entre secularistas e islamistas; protestos socioeconômicos, vez ou
outra, tornam-se violentos. Os salafistas operam nas sombras, atacando símbolos
de sociedades modernas, liberdade de manifestação e igualdade de gêneros.
No
Iêmen, o ex-presidente Saleh está fora do poder, mas não do palco. Uma guerra é
gestada no norte, outra no sul. Os jihadistas flexionam a musculatura. Os
jovens revolucionários, que sonharam com mudança completa, só podem assistir,
enquanto diferentes facções da mesma velha elite rearruma o salão. Sauditas,
iranianos e qataris patrocinam, cada um, suas próprias facções. Pequenas
escaramuças podem virar grandes confrontos. Enquanto isso, os drones
norte-americanos eliminam agentes da al-Qaeda e quem mais esteja por perto.
Dia
após dia, a guerra civil na Síria vai ganhando feições mais feias, mais
sectárias. O país está convertido em arena para uma guerra regional por
procuração. A oposição é um sortido eclético de Irmãos Muçulmanos, salafistas,
manifestantes pacíficos, militantes armados, curdos, soldados desertores,
elementos tribais e combatentes estrangeiros. Nada existe que o regime ou a
oposição não tentem, no desespero pelo triunfo. O estado, a sociedade, uma
cultura milenar, em colapso. O conflito engolfa a região.
A
batalha na Síria também é batalha pelo Iraque. Estados árabes sunitas não
aceitaram perder Bagdá para os xiitas e, aos seus olhos, também para safavidas
iranianos. Chegada ao poder na Síria, pelos sunitas, fará renascer o sol para
seus colegas no Iraque. Militantes sunitas iraquianos estão fortalecidos e a
al-Qaeda está revitalizada. Uma guerra pela reconquista do Iraque será guerra
que envolverá todos os vizinhos. A região preocupa-se com a Síria. E é obcecada
com o Iraque.
Robert Malley |
Podem
advir entidades mais fracas. No norte do Líbano, grupos islamistas e salafistas
apoiam ativamente a oposição síria, com a qual podem ter mais em comum que com
xiitas e cristãos libaneses. Frágil desde o início, o Líbano é puxado em
direções divergentes: uns olharão com inveja para uma nova Síria dominada por
sunitas, ansiando talvez por unir-se a ela. Outros a olharão com pavor e
desespero.
No
Bahrain, uma monarquia sunita pensa em conservar o poder e os privilégios
mediante violenta repressão contra a maioria xiita. Arábia Saudita e outros
estados do Golfo veem em socorro de seu aliado. O ocidente, que fala tão alto em
outros locais, mantém-se mudo. Há eleições na Líbia, e os islamitas dão-se mal;
os adversários creem que, afinal, venceram uma num país sem qualquer tradição de
abertura política, sem estado e intoxicado pela quantidade de milícias armadas
que regularmente se envolvem em confrontos mortais.
Liderança octogenária na Arábia Saudita luta contra uma
transição que se vai tecendo, vive com medo do Irã e da própria população e abre
as burras de dinheiro, tentando sufocar a insatisfação. Quanto tempo mais pode
durar tudo isso?
Mohamed Mursi por John Molas |
Em
alguns países os regimes serão derrubados, em outros, sobreviverão. Forças que
tenham sido derrotadas, nem por isso terão sido erradicadas. Elas se reagruparão
e lutarão para voltar ao poder. Hoje, o equilíbrio de poder não é claramente
visível. Nem sempre a vitória fortalece o vencedor.
Os
que estão no poder ocupam o estado, mas o estado é trunfo que se pode comprovar
de valor muito limitado. Inerentemente fracos e com magra legitimidade, os
estados árabes tendem a ser vistos com suspeita pelos próprios cidadãos, corpos
estranhos superimpostos sobre estruturas familiares e sociais mais firmemente
enraizadas e com longas histórias de continuidade. Não são plenamente aceitos,
sequer, por seus contrapartes no poder em outros pontos. Onde haja
levantes, a habilidade desses estados para funcionar enfraquece ainda mais, na
medida em que se vai erodindo seu poder de coerção.
Sentar-se
na cadeira do poder não implica necessariamente exercer o poder. No Líbano, a
coalizão 14 de Março, pró-ocidente, forte enquanto esteve na oposição, foi
esvaziada de poder quando passou a integrar o Gabinete em 2005. O Hezbollah
jamais antes esteve tão na defensiva ou usufruiu de menos autoridade moral, do
que após se converter em principal força de apoio do governo. Distantes do
poder, os personagens podem operar sob menos restrições. Tem o luxo de denunciar
todas as falhas dos governantes, a liberdade que advém da nenhuma
responsabilidade. Num Oriente Médio poroso, polarizado, têm acesso muito fácil a
apoio externo sempre disponível.
Estar
no posto, operar pelos canais formais oficiais do estado pode tanto pesar quanto
empoderar. A retirada dos militares sírios, do Líbano, em 2005, em nada diminuiu
a influência deles; Damasco apenas passou a exercê-la mais sub-repticiamente,
longe dos olhos públicos e sem quem lhe pedisse satisfações. Amanhã, padrão
semelhante pode tomar conta da própria Síria. O colapso do regime seria golpe
significativo contra o Irã e o Hezbollah, mas ninguém pode saber, hoje, o
quanto. Um dia depois de conflito tão longo e tão violento, é mais previsível o
caos que a estabilidade; luta feroz pelo poder, em vez de algum governo central
forte. Forças políticas e excluídas buscarão ajuda de qualquer fonte e de
quaisquer patrões estrangeiros solícitos que haja, independente da identidade. O
Irã e o Hezbollah têm muito mais prática em explorar a desordem, que os seus
inimigos. Sem o regime sírio, cujos interesses são obrigados a considerar, tanto
quanto têm de curvar-se às limitações que lhes sejam impostas, é possível que
ambos fiquem em condições de agir mais livremente.
A
Fraternidade Muçulmana reina. O presidente recém-eleito no Egito é homem deles.
Reinam também na Turquia. Controlam Gaza. Ganharam no Marrocos. Na Síria e na
Jordânia, a hora deles também pode chegar.
Fraternidade Muçulmana (logo) |
A
1ª Guerra Mundial e a ascensão imperial da Europa, em seguida, interromperam
quatro séculos de governo islâmico otomano. Aos trancos e barrancos, o século
seguinte seria o do nacionalismo árabe. Para muitos, foi importação trazida do
ocidente, distante, não natural, não autêntica – um desvio, a suplicar correção.
Forçados a ajustar seus pontos de vista, os islâmicos conheceram o que lhes
impunham o estado-nação e governos laicos. Mas seus alvos nunca deixaram de ser
os líderes nacionalistas e seus sucessores desfigurados.
Ano
passado, os Irmãos ajudaram a depor os presidentes da Tunísia e do Egito,
pálidos sucessores dos nacionalistas originais. Os islamistas tinham em mente
adversários maiores, mais valiosos e mais perigosos. Atacaram Ben Ali e Mubarak,
mas tinham em mente, ali, a derrubada dos pais fundadores – Habib Bourguiba e
Gamal Abdel Nasser. Entendem que corrigiram a história. Deram nova vida à era
dos muçulmanos sem fronteiras.
O
que significará tudo isso? Os islâmicos relutam em dividir o poder alcançado a
tão alto custo ou a desperdiçar ganhos tão pacientemente adquiridos. Devem
buscar o equilíbrio entre a própria militância inquieta, uma sociedade mais
ampla, nervosa; e uma comunidade internacional indecisa. A tentação de aplicar
golpes rápidos numa direção; e o desejo de manter calmos os próprios quadros e
apoiadores. Em geral, preferirão evitar a coerção, despertar o povo para a sua
própria natureza islamista adormecida, em vez de impô-la. Tentarão fazer tudo:
governar, promover reformas sociais graduais e ser fiéis a eles mesmos, sem se
converter em ameaça para outros.
Os
islamistas propõem uma barganha. Em troca de ajuda econômica e apoio político,
não ameaçarão o que veem como interesses centrais do ocidente: estabilidade
regional, Israel, a luta contra o terror, o fluxo de petróleo. Sem perigo para a
segurança do ocidente. Nada de guerra comercial. O confronto com o estado judeu
pode esperar. O foco será a lenta, gradual e segura modelagem das sociedades
islâmicas. EUA e Europa talvez manifestem alguma apreensão, talvez, até,
indignação. Mas os Irmãos as superarão. Exatamente como superaram o
fundamentalismo austero da Arábia Saudita. Uma permuta – no sentido de
“cuidaremos dos interesses de vocês; deixem-nos cuidar dos nossos” – sentem os
islamistas, levará ao resultado buscado. Se se considera a história, quem pode
culpá-los?
Mubarak
foi derrubado em parte porque foi visto como excessivamente subserviente ao
ocidente; já os islamistas que o sucederam podem oferecer negócio mais doce,
porque mais sustentável. Entendem que podem sair-se melhor, onde Mubarak
fracassava. Despido do manto nacionalista, Mubarak ficou sem ter o que oferecer:
nada além de um autocrata nu. A Fraternidade Muçulmana, comparada a Mubarak, tem
programa muito mais amplo – moral, social, cultural. Os islamistas sentem que
ainda podem seguir as próprias convicções, mesmo sem serem empedernidamente
antiocidente. Podem moderar, diluir, adiar.
Diferentes
dos aliados próximos do ocidente que estão substituindo, os islamistas foram
ouvidos clamando por intervenção militar da OTAN na Líbia ontem, na Síria hoje,
onde quer que alimentem a esperança de vir a reinar amanhã. Sempre é possível
usar infiéis distantes, que não permanecerão por aí por muito tempo, para caçar
os infiéis locais que os caçaram durante décadas. Rejeitar interferência
estrangeira, que um dia foi a pedra de toque do projeto pós-independência já não
está na pauta do dia; é atitude contrarrevolucionária e punida como tal.
O
que os EUA tentaram conseguir durante décadas, com intrusão e imposição, talvez
agora obtenham com aquiescência: regimes árabes que não desafiem interesses
ocidentais. Não surpreende que muitos na região estejam convencidos de que os
EUA são cúmplices no levante islamista, parceiros silenciosos no que aconteceu.
Por
todos os lados, Israel enfrenta o crescimento do Islã, da militância, do
radicalismo. Ex-aliados foram-se; inimigos figadais reinam supremos. Mas os
islamistas têm objetivos diferentes e mais amplos. Querem promover seu projeto
islâmico, que significa consolidar o mando deles onde possam, evitar alienar o
ocidente e evitar confrontos perigosos e prematuros com Israel. Nesse esquema, a
presença de um estado judeu é e continuará a ser intolerável, mas muito
provavelmente, é a última peça de um quebra-cabeça maior, que talvez jamais seja
completamente montado.
A
meta de estabelecer um estado palestino independente e soberano jamais esteve
inscrita no coração do projeto islamista. O Hamás, setor palestino da
Fraternidade Muçulmana, tem projetos mais grandiosos, menos confinados
territorialmente, mas, ao mesmo tempo, menos alcançáveis. Apesar das
circunvoluções do Hamás e inobstante sua evolução política, o partido jamais se
desviou da ideia original – o estado judeu é ilegítimo e toda a terra da
Palestina histórica é inerentemente islâmica. Se o atual equilíbrio de poder
pende para lado oposto ao seu, espere e faça o que puder para diminuir a
disparidade. O resto é tática.
A
questão palestina tem sido a preservação do movimento nacional palestino. Como
no final da década dos 1980s, seu objetivo declarado passou a ser um estado
soberano na Cisjordânia, Gaza e Jerusalém. Alternativas, temporárias ou
precárias, foram categoricamente rejeitadas. O plano dos islamistas pode ser até
mais ambicioso e grandioso, mas é também mais flexível e elástico. Para eles,
estado diminuto, amputado, cercado por Israel, à mercê da boa-vontade de Israel,
dependente do reconhecimento por Israel, que ponha fim ao conflito, não é
objetivo pelo qual valha a pena lutar.
Podem
viver com vários arranjos transitórios: um acordo provisório; uma trégua de
longo prazo, uma hudna; uma possível confederação transjordaniana com a
Jordânia, com Gaza movendo-se na direção de aproximar-se do Egito. São passos
que contribuem para a maior islamização da sociedade palestina. Nada impede que
o Hamás se volte para sua agenda social, cultural e religiosa, sua verdadeira
vocação. Tudo favorece que o Hamás mantenha o conflito com Israel, ser ter de
escalar. Nada, aí, viola os compromissos nucleares do Hamás. O seu objetivo
final continua de pé. Algum dia, pode chegar a hora da Palestina, de Jerusalém.
Não agora.
Na
era do Islamismo Árabe, é possível que Israel descubra que a pressuposta
intransigência do Hamás é mais flexível que a ostensiva moderação do Fatah.
Israel teme o despertar islâmico. Mas o movimento nacional palestino pode ser
ameaça mais imediata. O projeto de independência está sem energia; associado a
políticas velhas e lideranças muito desgastadas, acabou por se autoconsumir. Não
haverá lugar no novo mundo para o Fatah e a OLP. Ninguém mais está preocupado,
como primeira preocupação, com a Solução dos Dois Estados. Está em vias de
expirar, não por causa da violência, das colônias israelenses ou pelo papel dos
EUA atrabiliários. Morrerá de indiferença.
Uma
era islamista, que retome de onde o Império Otomano parou, o fim do interlúdio
nacionalista não é coisa predeterminada. A Fraternidade Muçulmana floresceu na
oposição, em boa parte, porque se manteve secretiva, mostrou paciência, impôs e
obteve disciplina interna. Ganhou influência ao longo dos anos mediante trabalho
silencioso e luta. Quando os islamistas disputaram o poder, perderam muitos de
seus ativos, que se tornaram obsoletos. Têm de movimentar-se abertamente porque
as políticas são mais transparentes; ajustam-se rapidamente porque as mudanças
são rápidas; e lidam com a diversidade nas suas fileiras porque o sistema todo
se tornou mais plural.
Os
islamistas que governam a Tunísia devem fazer uma escolha sobre o lugar do Islã
na nova Constituição; se optam por lugar mais moderado, enfurecem os salafistas,
não ganham a confiança dos não islamistas e confundem legiões dos seus próprios
quadros. A Fraternidade Muçulmana do Egito enfrenta ataques de secularistas por
injetar religião demais na vida pública; e dos salafistas, por não injetar a
quantidade necessária. Irmãos afastam-se, para unir-se a expressões ou mais
moderadas ou mais rigorosas do Islamismo. A ênfase que a Fraternidade dá à
economia de livre-mercado e às classes médias não é vista com bons olhos pelos
mais pobres.
Até
aqui, o novo linguajar islamista, que enfatiza liberdade, democracia, eleições e
direitos humanos, recebe elogios no ocidente, mas, dos críticos, só ceticismo.
Parecem palavras, nada além de palavras, mas palavras fazem enorme diferença;
podem ganhar vida própria, forçar mudanças políticas, tornar a coisa difícil de
renegar. Nesse momento, a Fraternidade pode converter-se no partido que diz que
é, mas, então, o que terá restado de seu islamismo? Ou pode persistir como o
movimento que foi, mas, então, o que terá restado de seu pragmatismo?
Historicamente uma organização transnacional ligada por fortes laços de coesão
interna, a Fraternidade hoje já não fala voz única dentro de um país nem,
tampouco, através das fronteiras. Com o poder a tentar todos, cada ramo tem
prioridades e preocupações políticas diferentes, não raras vezes opostas.
Os
islamistas também enfrentam os dilemas da política exterior. A nova
assertividade do Egito, a tentativa de construir diplomacia mais independente,
pode levá-los a confrontos com o ocidente. A decisão aparente de suspender as
posições anti-ocidente e anti-Israel carrega o risco de alienar a Fraternidade
do próprio público. Muitos egípcios anseiam por mais que um Mubarak ornamentado
com versos corânicos.
Os
islamistas prosperaram na oposição porque sempre puderam culpar outros; talvez
venham a sofrer no poder porque outros poderão culpá-los. Diluam as agendas
doméstica e externa, e correm o risco de perder militantes; insistam nelas e
afastarão deles os não islamistas e o ocidente. Adiem a luta contra Israel, e
sua retórica soará desconectada de sua política; avancem na luta contra Israel,
e sua política parecerá ameaçadora aos novos aliados no ocidente. Se explicam
que sua moderação é tática, expõem-se demais; se calam, confundem a base. São
tantas as contradições a serem simultaneamente administradas nesse movimento de
equilibrismo Olímpico. O poder do Islã político fluiu sempre, sobretudo, de não
ser exercido. Os sucessos recentes talvez marquem o declínio. A vida, na
oposição, é sempre mais fácil.
Apesar
do caos e da incerteza, só os islamistas oferecem visão autêntica, familiar, do
futuro. Podem falhar ou não corresponder, mas quem pegará o bastão? Forças
liberais vêm de linhagem fraca, baixo apoio popular e nenhum peso organizativo.
Remanescentes do velho regime conhecem bem as vielas do poder, mas parecem
exaustos, drenados. Se a instabilidade se alastra, se a crise econômica
aprofunda-se, podem talvez beneficiar-se de uma onda de nostalgia. Mas as
dificuldades são tremendas, e não têm outro argumento senão que, se as coisas
andavam mal, hoje andam pior.
Assim
sendo, resta sortimento variado de nacionalistas, anti-imperialistas,
esquerdistas demodés e nasseristas. Sua ideologia foi a única ideologia
legítima no mundo árabe, invocada pelos que lutaram contra o colonialismo e
pelos que substituíram as potências coloniais. Ideias similares também têm sido
invocadas, acidentalmente, mas inegavelmente, pelos manifestantes que se viram
nos protestos e passeatas e comícios desses últimos meses: falavam de dignidade,
independência e justiça social, vale dizer, repetiam o mesmo léxico ideológico
dos que eles mesmos acabaram de depor.
Essa
visada não islamista, “progressista”, tem raízes, apelo e soldados de
infantaria; não tem qualquer organização nem recursos e foi indelevelmente
manchada e corrompida por gerações que governaram em seu nome. Conseguirá
reinventar-se ela mesma? Se a Fraternidade Muçulmana não der atenção aos
sentimentos nacionalistas populares, se ignorar as aspirações populares por
justiça social, se não conseguir governar com eficácia e efetividade, pode
surgir uma abertura. Uma visada mais nacionalista, progressista, pode tentar
voltar ao palco.
Um
vídeo está circulando. Nasser regala a multidão com a história de seu encontro
com o então líder da Fraternidade Muçulmana que lhe pede que obrigue as mulheres
a usar o véu. Nasser responde: “Sua filha usa véu?” “Não.” “Se você não controla
sua filha, como espera que eu controle dezenas de milhões de mulheres egípcias?”
Nasser ri e a massa ri com ele. Era começo da década dos 1950s, há mais de meio
século. Hoje, já se tem saudade desse humor e dessa superficialidade. A história
não anda para a frente.
O século 20 pode
ter sido desvio aberrante na trajetória inerentemente islâmica do mundo árabe? O
renascimento islâmico hoje é retrocesso, volta atrás anômala, na direção de
passado já envelhecido há muito tempo? Qual o desvio? Qual a trilha
natural?
Notas dos
tradutores
[1] Hussein Agha é membro sênior associado
do St. Antony’s College, Oxford, e
coautor de “A Framework for a Palestinian
National Security Doctrine” (Novembro, 2012).
Robert Malley é
diretor de programa de “Crisis Group”
(Oriente Médio e Norte da África).
[2] Paul Simon
interpretando “The
Boxer” pode ser visto/ouvido a
seguir:
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