domingo, 4 de novembro de 2012

Isso não é revolução


8/11/2012, Hussein Agha e Robert Malley [1], New York Review of Books, 8/11/2012, vol. 59, n. 17  - This Is Not a Revolution
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Paul Simon



All lies and jest
Still, a man hears what he wants to hear
And disregards the rest
Tudo mentiras e bobagens
Mesmo assim, o cara ouve o que quer ouvir
 e desconsidera o resto
Paul Simon em The Boxer [2]



A escuridão desce sobre o mundo árabe. Desperdício, morte e destruição, no fim de luta por vida melhor. Forasteiros competem por mais influência e acertam contas. As manifestações pacíficas com as quais tudo começou, os valores alçados que as inspiraram, são lembranças distantes. Eleições são momentos festivos nos quais as visões políticas são consideração desimportante. O único programa consistente é religioso, forçado pelo passado. Luta-se desbragadamente por poder, sem regras claras, valores ou objetivos. Não acabará nem com mudança de regime, nem com regime sobrevivente. A história não anda adiante: escorrega de lado.

Há jogos dentro de jogos: batalhas contra regimes autocráticos, confronto confessional sunita-xiita, luta por poder regional, uma Guerra Fria redeclarada. Nações dividem-se, minorias acordam, sentindo uma possibilidade de escapar das restrições do Estado cerceador. O quadro não é claro. Veem-se fragmentos de uma paisagem que ainda está em devir, só com pinceladas de algum rumo. As mudanças que hoje se creem essenciais logo são descartadas como bobagens, em jornada mais extensa.

Comício de Mohamed Mursi, candidato à presidência do Egito pela Irmandade Muçulmana, em Mansoura, 22 de abril de 2012. Mursi foi declarado vencedor
do pleito em 24 de junho de 2012
. Foto de Moises Saman/Magnum Photos 
Atores novos ou apenas recentemente revigorados correm para o procênio: a mal definida “rua”, a postos para mobilizar-se, tão rapidamente quanto para debandar; jovens protestadores, ativistas centrais durante o levante, atropelados logo adiante. A Fraternidade Muçulmana ontem tratada pelo Ocidente como bando de perigosos extremistas, é hoje abraçada e festejada como associação de empresários sensíveis, pragmáticos. Os salafistas mais tradicionalistas, antes alérgicos a qualquer forma de política, apressam-se hoje a concorrer em eleições. Há tantos grupos armados e milícias sombrias de fidelidade duvidosa a benfeitores desconhecidos, quanto gangues, criminosos, salteadores e sequestradores.

Há alianças às avessas, que desafiam qualquer lógica, inidentificáveis e sempre alteradas. Regimes teocráticos apoiam secularistas; tiranias promovem democracia; os EUA firmam parcerias com islamistas; islamistas apoiam intervenção militar ocidental. Nacionalistas árabes cerram fileiras com regimes que combatem há anos; liberais unem-se a islamistas com os quais, imediatamente, passam a viver aos murros. A Arábia Saudita apoia secularistas contra a Fraternidade Muçulmana e salafistas contra secularistas. Os EUA são aliados ao Iraque, que é aliado do Irã, que apoia o regime sírio, que os EUA esperam derrubar. Os EUA são aliados também do Qatar, que financia o Hamás, e da Arábia Saudita, que financia os salafistas que inspiram jihadistas que não perdem ocasião de matar norte-americanos.

Em tempo recorde, a Turquia passou, de zero-problemas com seus vizinhos a todos-os-problemas com os mesmos vizinhos. Afastou-se do Irã, enfureceu o Iraque e está às turras com Israel. Está virtualmente em guerra com a Síria. Os curdos iraquianos são hoje aliados de Ancara, por mais guerra que Ancara faça aos seus próprios curdos, e mesmo que suas políticas no Iraque e na Síria incendeiem as tendências secessionistas na própria Turquia.

Durante anos, o Irã opôs-se a regimes árabes, cultivando laços com islamistas de cujas motivações religiosas o Irã sentia que poderia fazer causa comum com suas próprias motivações. Nem bem chegam ao poder, os islamistas tratam de ganhar a confiança de antigos inimigos sauditas e ocidentais, e afastam-se de Teerã, por mais que Teerã lhes faça a corte. O regime iraniano, obrigado a diversificar suas alianças, busca não islamistas que se sintam abandonados pela ordem nascente e apavorados ante a crescente camaradagem entre islamistas e os EUA. O Irã tem experiência nisso: ao longo dos últimos 30 anos, manteve-se aliado à Síria secular, mesmo quando Damasco detonava os seus islamistas.

Quando os objetivos convergem, os motivos divergem. Os EUA cooperavam ontem com as monarquias e os xeiques do Golfo para depor Gaddafi e, hoje, para depor Assad. Dizem que têm de manter-se do lado certo da história. Mas são regimes que não respeitam em casa os direitos que tanto pregam longe de casa. Não visam nem a alguma democracia nem a sociedades abertas. Disputam encarniçadamente o domínio regional. O que, além do butim, proponentes de levantes democráticos sui generis podem encontrar em países cujos sistemas de governo são anátemas face ao projeto democrático que eles mesmos supostamente estariam promovendo?

O novo sistema de alianças depende de quantidade excessiva de falsos pressupostos e encobre quantidade excessiva de incongruências profundas. Não presta, porque não pode ser real. Alguma coisa está errada. Alguma coisa extrapola. Não pode terminar bem.

A guerra “midiática” que começou no Egito alcança o zênite na Síria. Cada lado só mostra o próprio lado, amplifica os números, esquece o resto. No Bahrain, acontece exatamente o contrário. Não importa quantos opositores o regime mate, ninguém percebe coisa alguma. Não há registro, na escala de atenção. Há pouco tempo, vídeos filmados na Líbia glorificavam gangues que exibiam bandanas coloridas e aplomb triunfante. As batalhas verdadeiras, sangrentas, a morte chovendo quase sempre do céu, aconteciam noutro cenário. Não se registravam baixas.

Gangues mascaradas se reúnem na Praça Tahrir. A câmera fecha nos que protestam. E os milhões invisíveis que ficaram em casa? Festejam a derrubada de Mubarak ou lamentam silenciosamente aquela partida? O que sentem os egípcios sobre a desordem, a confusão, o colapso econômico e a incerteza política reinantes? Nas eleições, metade da população do Egito não votou. Dos que votaram, metade votou a favor da velha ordem. Quem procurará os que jazem do outro lado do lado certo da história?

Muitos sírios lutam, nem em defesa do regime, nem em apoio à oposição. Estão no ponto que só padece desse confronto vicioso, ninguém ouve seus desejos, são vozes mudas, destinos esquecidos. A câmera é parte integrante da agitação, instrumento de mobilização, propaganda e incitamento. O desequilíbrio militar favorece regimes velhos, mas esse desequilíbrio é, com frequência, muito mais que compensado pelo desequilíbrio da mídia, que favorece as forças novas. O antigo regime líbio dependia da retórica bizarra de Gaddafi; o da Síria de Assad depende da mídia estatal desacreditada. Não é luta equilibrada. Na batalha pela simpatia pública, em tempos de lavagem de notícias, a velha ordem não teve, jamais, qualquer chance.

Hussein Agha
Na Tunísia, Egito, Iêmen, Líbia, Síria e Bahrain, não emergiu qualquer figura com estatura para unificar e capacidade para modelar caminho ovo. Quase não há liderança. Onde há liderança, quase sempre é liderança em comitê. Onde há comitês, emergem misteriosamente para assumir autoridade que não receberam de ninguém. Praticamente sempre, a legitimidade é outorgada de cima para baixo: o ocidente fornece respeitabilidade e exposição; os estados árabes do Golfo fornecem dinheiro, recursos e apoio; organizações internacionais fornecem validade e socorro.

Os que estão no poder praticamente nunca tem a força que advém de eleitorado local, cuja lealdade seja clara; carecem de apoio externo e, assim, têm de ser cautelosos, ajustar suas posições ao que os forasteiros aceitem. Líderes revolucionários, antes, jamais foram dirigidos por considerações desse tipo. Para o bem ou para o mal, eram furiosamente independentes e orgulhavam-se de rejeitar qualquer interferência externa.

Muito semelhantes aos governos que ajudam a depor, os islamistas acomodam-se ao ocidente, aplacam o ocidente. Muito semelhantes aos que substituem, que usavam os islamistas como espantalhos para manter o ocidente junto deles, os Irmãos da Fraternidade Muçulmana acenam com o espectro do que sobrevirá, se falharem agora: os salafistas, os quais, por sua vez e semelhantes, nisso, aos Irmãos “de raiz”, estão divididos entre a fidelidade às próprias tradições e o gosto do poder.

É um jogo de cadeiras. No Egito, os salafistas representam o papel que, antes, coubera à Fraternidade Muçulmana; a Fraternidade representa o papel que, antes, coubera ao regime Mubarak. Na Palestina, a Jihad Islâmica é o novo Hamás, lançando foguetes para criar problemas ao partido que governa Gaza; o Hamás, o novo Fatah, que se diz movimento de resistência e mete as garras nos que resistam; o Fatah, versão das velhas autocracias árabes que, antes, criticava. Quanto falta, para que os salafistas apresentem-se ao mundo como alternativa preferível aos jihadistas?

A política egípcia está entalada entre a Fraternidade Muçulmana triunfante, salafistas linha mais dura, não islamista ansiosos e remanescentes da velha ordem. Enquanto a Fraternidade vitoriosa tenta chegar a algum acordo com o resto, o futuro político é uma incógnita. A velocidade e a elegância com que o novo presidente Mohamed Mursi aposentou ou descartou a velha liderança dos militares e a calma com que esse movimento ousado foi recebido sugerem que aumentou a confiança dos islamistas, que já estão interessados em andar mais depressa.

A Tunísia é história confusa. A transição foi, em boa parte, pacífica; o partido an-Nahda, que venceu as eleições em outubro passado, oferece face moderada, pragmática do islamismo. Mas seus esforços para consolidar o próprio poder são fonte de nervosismo. Cresce a desconfiança entre secularistas e islamistas; protestos socioeconômicos, vez ou outra, tornam-se violentos. Os salafistas operam nas sombras, atacando símbolos de sociedades modernas, liberdade de manifestação e igualdade de gêneros.

No Iêmen, o ex-presidente Saleh está fora do poder, mas não do palco. Uma guerra é gestada no norte, outra no sul. Os jihadistas flexionam a musculatura. Os jovens revolucionários, que sonharam com mudança completa, só podem assistir, enquanto diferentes facções da mesma velha elite rearruma o salão. Sauditas, iranianos e qataris patrocinam, cada um, suas próprias facções. Pequenas escaramuças podem virar grandes confrontos. Enquanto isso, os drones norte-americanos eliminam agentes da al-Qaeda e quem mais esteja por perto.

Dia após dia, a guerra civil na Síria vai ganhando feições mais feias, mais sectárias. O país está convertido em arena para uma guerra regional por procuração. A oposição é um sortido eclético de Irmãos Muçulmanos, salafistas, manifestantes pacíficos, militantes armados, curdos, soldados desertores, elementos tribais e combatentes estrangeiros. Nada existe que o regime ou a oposição não tentem, no desespero pelo triunfo. O estado, a sociedade, uma cultura milenar, em colapso. O conflito engolfa a região.

A batalha na Síria também é batalha pelo Iraque. Estados árabes sunitas não aceitaram perder Bagdá para os xiitas e, aos seus olhos, também para safavidas iranianos. Chegada ao poder na Síria, pelos sunitas, fará renascer o sol para seus colegas no Iraque. Militantes sunitas iraquianos estão fortalecidos e a al-Qaeda está revitalizada. Uma guerra pela reconquista do Iraque será guerra que envolverá todos os vizinhos. A região preocupa-se com a Síria. E é obcecada com o Iraque.

Robert Malley
Islamistas na região, esperam o resultado na Síria. Não querem abocanhar mais do que podem mastigar. Se a paciência é o primeiro princípio islâmico, consolidar os ganhos é o segundo. Se a Síria cair, em seguida cai a Jordânia. Aquela demografia peculiar – maioria de palestinos governados por uma minoria trans-Jordão – é um peso para o regime: as duas comunidades alimentam ressentimentos profundos contra os governantes haxemitas, e desconfiam, ainda mais, uma da outra. Que isso possa mudar em função do poder unificador do Islã, pendendo para uma ou outra etnia, pelo menos em teoria, é possibilidade sem maiores consequências.

Podem advir entidades mais fracas. No norte do Líbano, grupos islamistas e salafistas apoiam ativamente a oposição síria, com a qual podem ter mais em comum que com xiitas e cristãos libaneses. Frágil desde o início, o Líbano é puxado em direções divergentes: uns olharão com inveja para uma nova Síria dominada por sunitas, ansiando talvez por unir-se a ela. Outros a olharão com pavor e desespero.

No Bahrain, uma monarquia sunita pensa em conservar o poder e os privilégios mediante violenta repressão contra a maioria xiita. Arábia Saudita e outros estados do Golfo veem em socorro de seu aliado. O ocidente, que fala tão alto em outros locais, mantém-se mudo. Há eleições na Líbia, e os islamitas dão-se mal; os adversários creem que, afinal, venceram uma num país sem qualquer tradição de abertura política, sem estado e intoxicado pela quantidade de milícias armadas que regularmente se envolvem em confrontos mortais. Liderança octogenária na Arábia Saudita luta contra uma transição que se vai tecendo, vive com medo do Irã e da própria população e abre as burras de dinheiro, tentando sufocar a insatisfação. Quanto tempo mais pode durar tudo isso?

Mohamed Mursi por John Molas
Em alguns países os regimes serão derrubados, em outros, sobreviverão. Forças que tenham sido derrotadas, nem por isso terão sido erradicadas. Elas se reagruparão e lutarão para voltar ao poder. Hoje, o equilíbrio de poder não é claramente visível. Nem sempre a vitória fortalece o vencedor.

Os que estão no poder ocupam o estado, mas o estado é trunfo que se pode comprovar de valor muito limitado. Inerentemente fracos e com magra legitimidade, os estados árabes tendem a ser vistos com suspeita pelos próprios cidadãos, corpos estranhos superimpostos sobre estruturas familiares e sociais mais firmemente enraizadas e com longas histórias de continuidade. Não são plenamente aceitos, sequer, por seus contrapartes no poder em outros pontos. Onde haja levantes, a habilidade desses estados para funcionar enfraquece ainda mais, na medida em que se vai erodindo seu poder de coerção.

Sentar-se na cadeira do poder não implica necessariamente exercer o poder. No Líbano, a coalizão 14 de Março, pró-ocidente, forte enquanto esteve na oposição, foi esvaziada de poder quando passou a integrar o Gabinete em 2005. O Hezbollah jamais antes esteve tão na defensiva ou usufruiu de menos autoridade moral, do que após se converter em principal força de apoio do governo. Distantes do poder, os personagens podem operar sob menos restrições. Tem o luxo de denunciar todas as falhas dos governantes, a liberdade que advém da nenhuma responsabilidade. Num Oriente Médio poroso, polarizado, têm acesso muito fácil a apoio externo sempre disponível. 

Estar no posto, operar pelos canais formais oficiais do estado pode tanto pesar quanto empoderar. A retirada dos militares sírios, do Líbano, em 2005, em nada diminuiu a influência deles; Damasco apenas passou a exercê-la mais sub-repticiamente, longe dos olhos públicos e sem quem lhe pedisse satisfações. Amanhã, padrão semelhante pode tomar conta da própria Síria. O colapso do regime seria golpe significativo contra o Irã e o Hezbollah, mas ninguém pode saber, hoje, o quanto. Um dia depois de conflito tão longo e tão violento, é mais previsível o caos que a estabilidade; luta feroz pelo poder, em vez de algum governo central forte. Forças políticas e excluídas buscarão ajuda de qualquer fonte e de quaisquer patrões estrangeiros solícitos que haja, independente da identidade. O Irã e o Hezbollah têm muito mais prática em explorar a desordem, que os seus inimigos. Sem o regime sírio, cujos interesses são obrigados a considerar, tanto quanto têm de curvar-se às limitações que lhes sejam impostas, é possível que ambos fiquem em condições de agir mais livremente.

A Fraternidade Muçulmana reina. O presidente recém-eleito no Egito é homem deles. Reinam também na Turquia. Controlam Gaza. Ganharam no Marrocos. Na Síria e na Jordânia, a hora deles também pode chegar.

Fraternidade Muçulmana (logo)
“A Fraternidade Muçulmana reina” são palavras de peso e, não há muito tempo, impensáveis, impronunciáveis. Os Irmãos sobreviveram por 80 anos no subsolo e nas trincheiras; foram caçados, torturados e mortos, forçados a ceder e a esperar que sua hora chegasse. A luta entre o islamismo e o nacionalismo árabe foi longa, tortuosa e sangrenta. Estará próxima do fim?

A 1ª Guerra Mundial e a ascensão imperial da Europa, em seguida, interromperam quatro séculos de governo islâmico otomano. Aos trancos e barrancos, o século seguinte seria o do nacionalismo árabe. Para muitos, foi importação trazida do ocidente, distante, não natural, não autêntica – um desvio, a suplicar correção. Forçados a ajustar seus pontos de vista, os islâmicos conheceram o que lhes impunham o estado-nação e governos laicos. Mas seus alvos nunca deixaram de ser os líderes nacionalistas e seus sucessores desfigurados.

Ano passado, os Irmãos ajudaram a depor os presidentes da Tunísia e do Egito, pálidos sucessores dos nacionalistas originais. Os islamistas tinham em mente adversários maiores, mais valiosos e mais perigosos. Atacaram Ben Ali e Mubarak, mas tinham em mente, ali, a derrubada dos pais fundadores – Habib Bourguiba e Gamal Abdel Nasser. Entendem que corrigiram a história. Deram nova vida à era dos muçulmanos sem fronteiras.

O que significará tudo isso? Os islâmicos relutam em dividir o poder alcançado a tão alto custo ou a desperdiçar ganhos tão pacientemente adquiridos. Devem buscar o equilíbrio entre a própria militância inquieta, uma sociedade mais ampla, nervosa; e uma comunidade internacional indecisa. A tentação de aplicar golpes rápidos numa direção; e o desejo de manter calmos os próprios quadros e apoiadores. Em geral, preferirão evitar a coerção, despertar o povo para a sua própria natureza islamista adormecida, em vez de impô-la. Tentarão fazer tudo: governar, promover reformas sociais graduais e ser fiéis a eles mesmos, sem se converter em ameaça para outros.

Os islamistas propõem uma barganha. Em troca de ajuda econômica e apoio político, não ameaçarão o que veem como interesses centrais do ocidente: estabilidade regional, Israel, a luta contra o terror, o fluxo de petróleo. Sem perigo para a segurança do ocidente. Nada de guerra comercial. O confronto com o estado judeu pode esperar. O foco será a lenta, gradual e segura modelagem das sociedades islâmicas. EUA e Europa talvez manifestem alguma apreensão, talvez, até, indignação. Mas os Irmãos as superarão. Exatamente como superaram o fundamentalismo austero da Arábia Saudita. Uma permuta – no sentido de “cuidaremos dos interesses de vocês; deixem-nos cuidar dos nossos” – sentem os islamistas, levará ao resultado buscado. Se se considera a história, quem pode culpá-los?

Mubarak foi derrubado em parte porque foi visto como excessivamente subserviente ao ocidente; já os islamistas que o sucederam podem oferecer negócio mais doce, porque mais sustentável. Entendem que podem sair-se melhor, onde Mubarak fracassava. Despido do manto nacionalista, Mubarak ficou sem ter o que oferecer: nada além de um autocrata nu. A Fraternidade Muçulmana, comparada a Mubarak, tem programa muito mais amplo – moral, social, cultural. Os islamistas sentem que ainda podem seguir as próprias convicções, mesmo sem serem empedernidamente antiocidente. Podem moderar, diluir, adiar.

Diferentes dos aliados próximos do ocidente que estão substituindo, os islamistas foram ouvidos clamando por intervenção militar da OTAN na Líbia ontem, na Síria hoje, onde quer que alimentem a esperança de vir a reinar amanhã. Sempre é possível usar infiéis distantes, que não permanecerão por aí por muito tempo, para caçar os infiéis locais que os caçaram durante décadas. Rejeitar interferência estrangeira, que um dia foi a pedra de toque do projeto pós-independência já não está na pauta do dia; é atitude contrarrevolucionária e punida como tal.

O que os EUA tentaram conseguir durante décadas, com intrusão e imposição, talvez agora obtenham com aquiescência: regimes árabes que não desafiem interesses ocidentais. Não surpreende que muitos na região estejam convencidos de que os EUA são cúmplices no levante islamista, parceiros silenciosos no que aconteceu.

Por todos os lados, Israel enfrenta o crescimento do Islã, da militância, do radicalismo. Ex-aliados foram-se; inimigos figadais reinam supremos. Mas os islamistas têm objetivos diferentes e mais amplos. Querem promover seu projeto islâmico, que significa consolidar o mando deles onde possam, evitar alienar o ocidente e evitar confrontos perigosos e prematuros com Israel. Nesse esquema, a presença de um estado judeu é e continuará a ser intolerável, mas muito provavelmente, é a última peça de um quebra-cabeça maior, que talvez jamais seja completamente montado.

A meta de estabelecer um estado palestino independente e soberano jamais esteve inscrita no coração do projeto islamista. O Hamás, setor palestino da Fraternidade Muçulmana, tem projetos mais grandiosos, menos confinados territorialmente, mas, ao mesmo tempo, menos alcançáveis. Apesar das circunvoluções do Hamás e inobstante sua evolução política, o partido jamais se desviou da ideia original – o estado judeu é ilegítimo e toda a terra da Palestina histórica é inerentemente islâmica. Se o atual equilíbrio de poder pende para lado oposto ao seu, espere e faça o que puder para diminuir a disparidade. O resto é tática.

A questão palestina tem sido a preservação do movimento nacional palestino. Como no final da década dos 1980s, seu objetivo declarado passou a ser um estado soberano na Cisjordânia, Gaza e Jerusalém. Alternativas, temporárias ou precárias, foram categoricamente rejeitadas. O plano dos islamistas pode ser até mais ambicioso e grandioso, mas é também mais flexível e elástico. Para eles, estado diminuto, amputado, cercado por Israel, à mercê da boa-vontade de Israel, dependente do reconhecimento por Israel, que ponha fim ao conflito, não é objetivo pelo qual valha a pena lutar.

Podem viver com vários arranjos transitórios: um acordo provisório; uma trégua de longo prazo, uma hudna; uma possível confederação transjordaniana com a Jordânia, com Gaza movendo-se na direção de aproximar-se do Egito. São passos que contribuem para a maior islamização da sociedade palestina. Nada impede que o Hamás se volte para sua agenda social, cultural e religiosa, sua verdadeira vocação. Tudo favorece que o Hamás mantenha o conflito com Israel, ser ter de escalar. Nada, aí, viola os compromissos nucleares do Hamás. O seu objetivo final continua de pé. Algum dia, pode chegar a hora da Palestina, de Jerusalém. Não agora.

Na era do Islamismo Árabe, é possível que Israel descubra que a pressuposta intransigência do Hamás é mais flexível que a ostensiva moderação do Fatah. Israel teme o despertar islâmico. Mas o movimento nacional palestino pode ser ameaça mais imediata. O projeto de independência está sem energia; associado a políticas velhas e lideranças muito desgastadas, acabou por se autoconsumir. Não haverá lugar no novo mundo para o Fatah e a OLP. Ninguém mais está preocupado, como primeira preocupação, com a Solução dos Dois Estados. Está em vias de expirar, não por causa da violência, das colônias israelenses ou pelo papel dos EUA atrabiliários. Morrerá de indiferença.

Uma era islamista, que retome de onde o Império Otomano parou, o fim do interlúdio nacionalista não é coisa predeterminada. A Fraternidade Muçulmana floresceu na oposição, em boa parte, porque se manteve secretiva, mostrou paciência, impôs e obteve disciplina interna. Ganhou influência ao longo dos anos mediante trabalho silencioso e luta. Quando os islamistas disputaram o poder, perderam muitos de seus ativos, que se tornaram obsoletos. Têm de movimentar-se abertamente porque as políticas são mais transparentes; ajustam-se rapidamente porque as mudanças são rápidas; e lidam com a diversidade nas suas fileiras porque o sistema todo se tornou mais plural.

Os islamistas que governam a Tunísia devem fazer uma escolha sobre o lugar do Islã na nova Constituição; se optam por lugar mais moderado, enfurecem os salafistas, não ganham a confiança dos não islamistas e confundem legiões dos seus próprios quadros. A Fraternidade Muçulmana do Egito enfrenta ataques de secularistas por injetar religião demais na vida pública; e dos salafistas, por não injetar a quantidade necessária. Irmãos afastam-se, para unir-se a expressões ou mais moderadas ou mais rigorosas do Islamismo. A ênfase que a Fraternidade dá à economia de livre-mercado e às classes médias não é vista com bons olhos pelos mais pobres.

Até aqui, o novo linguajar islamista, que enfatiza liberdade, democracia, eleições e direitos humanos, recebe elogios no ocidente, mas, dos críticos, só ceticismo. Parecem palavras, nada além de palavras, mas palavras fazem enorme diferença; podem ganhar vida própria, forçar mudanças políticas, tornar a coisa difícil de renegar. Nesse momento, a Fraternidade pode converter-se no partido que diz que é, mas, então, o que terá restado de seu islamismo? Ou pode persistir como o movimento que foi, mas, então, o que terá restado de seu pragmatismo? Historicamente uma organização transnacional ligada por fortes laços de coesão interna, a Fraternidade hoje já não fala voz única dentro de um país nem, tampouco, através das fronteiras. Com o poder a tentar todos, cada ramo tem prioridades e preocupações políticas diferentes, não raras vezes opostas.

Os islamistas também enfrentam os dilemas da política exterior. A nova assertividade do Egito, a tentativa de construir diplomacia mais independente, pode levá-los a confrontos com o ocidente. A decisão aparente de suspender as posições anti-ocidente e anti-Israel carrega o risco de alienar a Fraternidade do próprio público. Muitos egípcios anseiam por mais que um Mubarak ornamentado com versos corânicos.

Os islamistas prosperaram na oposição porque sempre puderam culpar outros; talvez venham a sofrer no poder porque outros poderão culpá-los. Diluam as agendas doméstica e externa, e correm o risco de perder militantes; insistam nelas e afastarão deles os não islamistas e o ocidente. Adiem a luta contra Israel, e sua retórica soará desconectada de sua política; avancem na luta contra Israel, e sua política parecerá ameaçadora aos novos aliados no ocidente. Se explicam que sua moderação é tática, expõem-se demais; se calam, confundem a base. São tantas as contradições a serem simultaneamente administradas nesse movimento de equilibrismo Olímpico. O poder do Islã político fluiu sempre, sobretudo, de não ser exercido. Os sucessos recentes talvez marquem o declínio. A vida, na oposição, é sempre mais fácil.

Apesar do caos e da incerteza, só os islamistas oferecem visão autêntica, familiar, do futuro. Podem falhar ou não corresponder, mas quem pegará o bastão? Forças liberais vêm de linhagem fraca, baixo apoio popular e nenhum peso organizativo. Remanescentes do velho regime conhecem bem as vielas do poder, mas parecem exaustos, drenados. Se a instabilidade se alastra, se a crise econômica aprofunda-se, podem talvez beneficiar-se de uma onda de nostalgia. Mas as dificuldades são tremendas, e não têm outro argumento senão que, se as coisas andavam mal, hoje andam pior.

Assim sendo, resta sortimento variado de nacionalistas, anti-imperialistas, esquerdistas demodés e nasseristas. Sua ideologia foi a única ideologia legítima no mundo árabe, invocada pelos que lutaram contra o colonialismo e pelos que substituíram as potências coloniais. Ideias similares também têm sido invocadas, acidentalmente, mas inegavelmente, pelos manifestantes que se viram nos protestos e passeatas e comícios desses últimos meses: falavam de dignidade, independência e justiça social, vale dizer, repetiam o mesmo léxico ideológico dos que eles mesmos acabaram de depor.

Essa visada não islamista, “progressista”, tem raízes, apelo e soldados de infantaria; não tem qualquer organização nem recursos e foi indelevelmente manchada e corrompida por gerações que governaram em seu nome. Conseguirá reinventar-se ela mesma? Se a Fraternidade Muçulmana não der atenção aos sentimentos nacionalistas populares, se ignorar as aspirações populares por justiça social, se não conseguir governar com eficácia e efetividade, pode surgir uma abertura. Uma visada mais nacionalista, progressista, pode tentar voltar ao palco.

Um vídeo está circulando. Nasser regala a multidão com a história de seu encontro com o então líder da Fraternidade Muçulmana que lhe pede que obrigue as mulheres a usar o véu. Nasser responde: “Sua filha usa véu?” “Não.” “Se você não controla sua filha, como espera que eu controle dezenas de milhões de mulheres egípcias?” Nasser ri e a massa ri com ele. Era começo da década dos 1950s, há mais de meio século. Hoje, já se tem saudade desse humor e dessa superficialidade. A história não anda para a frente.

O século 20 pode ter sido desvio aberrante na trajetória inerentemente islâmica do mundo árabe? O renascimento islâmico hoje é retrocesso, volta atrás anômala, na direção de passado já envelhecido há muito tempo? Qual o desvio? Qual a trilha natural?



Notas dos tradutores
[1] Hussein Agha é membro sênior associado do St. Antony’s College, Oxford, e coautor de “A Framework for a Palestinian National Security Doctrine” (Novembro, 2012).
Robert Malley é diretor de programa de “Crisis Group” (Oriente Médio e Norte da África).

[2] Paul Simon interpretando The Boxer  pode ser visto/ouvido a seguir:

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