segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Respeitem o arquiteto: Malcolm X, eleições e a política do império


Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Nosso problema é problema também de vocês. Não importa quanta independência os africanos conquistem na África. A menos que nunca dispam seus trajes africanos quando andarem pelos EUA, vocês correm lá o risco de ser confundidos com um de nós. E serão espancados como nós, em qualquer rua. Essa é a rotina de todos os negros, nos EUA.

Obama foi ao Cairo como “enviado do império” buscando universalizar o poder norte-americano. Malcolm X lá esteve para “internacionalizar as lutas pela liberdade dos negros e aproximá-las das lutas no Terceiro Mundo, onde vivem as vítimas do império”.  [GALLO/GETTY]

Com Guantánamo ainda em operação, os drones matando como sempre, e o sentimento antimuçulmano soando nas claves mais baixas e marcando as passadas do avanço imperial, as próximas eleições presidenciais nos EUA fazem surgir, mais uma vez, o espectro do Terceiro Mundo islâmico e muçulmano apresentado como ameaça à segurança nacional e aos interesses dos EUA. E com Obama concorrendo à reeleição como um, dentre dois candidatos, a questão da Negritude volta a ser o elefante na sala de visitas.

Enquanto muitos ainda querem estigmatizar Obama, cada vez mais, como “cripto-muçulmano” e “candidato árabe” do século 21, outros veem a evidência de que Obama é negro como meio para “reposicionar” a imagem dos EUA e ajudar a promover os interesses dos EUA no Terceiro Mundo muçulmano, acrescentando a eles um verniz ‘pós-racial’ e benevolente.

Mas, como detalho em meu livro mais recente [2], esses relacionamentos e histórias entre a Negritude, o Islã e o Terceiro Mundo muçulmano nada têm de novidade nos EUA.

De fato, foi Malcolm X quem definiu essas histórias convergentes. E é esse legado dele que, em vários sentidos, provoca tanta ansiedade em EUA pós-11/9, com um negro na presidência, cujo segundo prenome é Hussein.

Porque ser negro nos EUA basta, para ser excluído como não-norte-americano; mas ser negro e muçulmano é ser anti-norte-americano. A “desqualificação” de Obama como muçulmano no clima do pós-11/9 veio ocultada pela ameaça representada por aquela coisa chamada “al-Qaeda”; mas a negritude de Obama e sua “proximidade” do Islã provoca, de fato, uma espécie de reirrupção de uma ansiedade nacional muito mais profunda nos EUA, que vai até Malcolm X.

Malcolm X desafiou a autoridade do Estado norte-americano, não só no que tivesse a ver com o passado dos negros, mas também com um futuro para os negros; e exigiu que os negros norte-americanos aprendessem a ver-se não como uma minoria nacional, mas como parte de uma maioria global.

Para Malcolm X, “o Islã foi a maior força de unificação do Mundo Negro” [orig. Dark World], e o Terceiro Mundo muçulmano teve impacto definitório na vida e na visão política de Malcolm X – fosse Meca, como centro espiritual; ou as lutas anticoloniais no Egito, Argélia, Palestina, Iraque e por toda a parte. Mas, para Malcolm, ninguém teria de ser muçulmano. O que importava era reconhecer a realidade do racismo no sofrimento secular dos negros; assim se veria, afinal, o suprematismo branco como fenômeno global e laço necessário que liga as lutas dos negros com as lutas no Terceiro Mundo. Mas sempre houve atenção persistente, nos EUA, para conter e mesmo para erradicar qualquer possibilidade de internacionalismo negro.

Como uma espécie de realização da tradição dos Direitos Civis, a presidência de Obama sugeriu, no plano simbólico, que não apenas os negros têm a própria existência investida nos EUA, mas, também, que a recíproca é verdadeira; o status de Obama como “líder do mundo livre” casaria a identificação dos negros com os EUA, e com o poder e o destino dos EUA.

Barack Obama durante o Discurso do Cairo de 4/6/2009
Obama tentou capturar a euforia em torno de sua eleição no muito divulgado “Discurso do Cairo”, em 2009, intitulado “Um Novo Começo” [orig. "A New Beginning"], que visava a marcar uma mudança, depois do militarismo polarizado do 2º governo Bush.

Mas Malcolm X também falou no Cairo: em 1964, falou numa reunião de chefes de Estado da Organização da Unidade Africana [orig. Organisation of African Unity].

Obama foi ao Cairo como enviado do império que buscava universalizar o poder dos EUA; Malcolm lá esteve para internacionalizar as lutas pela liberdade dos negros no Terceiro Mundo e que eram as vítimas do império.

No Cairo, Malcolm conclamou os chefes de Estado a não se deixarem enganar pelo “lobo imperialista” dos EUA ou pelas tentativas do Departamento de Estado de usar propaganda para convencer as nações africanas de que os EUA estariam avançando no rumo da igualdade racial depois do julgamento do caso Brown vs Board e de a legislação dos Direitos Civis ter sido aprovada.

Como Malcolm disse lá, aquelas medidas eram “manobras de propaganda” e “não passam de truques da potência neocolonial que domina o século”. Malcolm pediu que ouvissem o que fora dizer: “Não fujam do colonialismo europeu, só para se deixar escravizar ainda mais profundamente pelo dolarismo norte-americano, falsamente solidário”.

Ao chamar a atenção para o uso da propaganda e para o gerenciamento da imagem dos EUA no exterior, Malcolm anteviu não só o que aconteceria depois do 11/9, quando o Departamento de Estado daria postos destacados na arte e na política a muçulmanos, para influenciar a opinião pública em outros países, mas, também, como e o quanto a eleição de Obama e a retórica da “diversidade” seriam usadas para reposicionar a imagem dos EUA, promovendo uma imagem renovada de inclusão progressista e “pós-racial”, exclusivamente para mascarar o enraizamento do suprematismo branco, não só nacionalmente, nos EUA, mas também no plano global.

E ao ligar as políticas racistas domésticas nos EUA ao papel da “potência neocolonial” e a emergência do “dolarismo norte-americano”, Malcolm mostrou também o quanto o racismo operava como elo que unia todo o colonialismo europeu aos EUA que emergiam como superpotência global.

Obama foi ao Egito para cooptar aquela cidade sagrada e apresentar uma face benevolente do poder dos EUA. Malcolm lá esteve para rasgar a máscara de benevolência e revelar a verdade nua sobre o nexo que liga a injustiça racial nos EUA e a ambição imperial. Por isso o legado de Malcolm X é tão importante: porque lança luz sobre a dinâmica racista que modela hoje toda a paisagem global sob o poder dos EUA.

Cicatrizes vermelhas, negras e verdes

Logo depois da 2ª Guerra Mundial, quando os EUA substituíram a Europa como ator dominante no cenário global, o presidente Truman declarou o “comunismo” inimigo público n.1; o comunismo seria, disse ele, ameaça maior que o colonialismo, para o Terceiro Mundo em luta para descolonizar-se. Resultado disso, os EUA e seus aliados europeus convenceram-se de que um Terceiro Mundo independente seria a maior ameaça contra a ordem do pós-guerra que os EUA desejavam dominar, porque um Terceiro Mundo independente geraria um vácuo de poder que poderia ser facilmente preenchido pelo comunismo.

O medo real, como Malcolm e outros como Lumumba, Fanon e Nkrumah compreenderam, era medo da libertação e da independência da maioria do mundo, que ganharia força potencial para redistribuir radicalmente o poder e a riqueza globais – e sem considerar qualquer prioridade para o mundo branco.

Então, os EUA expandiram o seu tacão imperial para o Terceiro Mundo e, com ele, estenderam a lógica do racismo colonialista, servindo-se do “anticomunismo” como meio que justificaria a intervenção, o apoio a ditaduras, a deposição de governos democraticamente eleitos, os assassinatos e a desestabilização em todo o Terceiro Mundo (como o comprovam Mossadegh, Arbenz, Lumumba e tantos outros). A política exterior dos EUA usou o “anticomunismo” como simulacro, como máscara, para esconder o racismo; e, assim, conseguiu minar o processo de descolonização do Terceiro Mundo.

Malcolm emergiu desse cadinho da Guerra Fria, onde ativistas dos Direitos Civis abraçaram uma identidade norte-americana e passaram a argumentar que a violência de Jim Crow seria um calcanhar de Aquiles que minaria as ambições globais dos EUA num Terceiro Mundo já hostil ao suprematismo branco. Malcolm criticou duramente o establishment dos Direitos Civis por ter domesticado a luta dos negros, limitando-a ao cenário dos EUA e usando-a como suporte da lógica do “anticomunismo”.

Para Malcolm e outros, o establishment dos Direitos Civis – por não entender a natureza global do suprematismo branco – não obteria qualquer ganho efetivo na luta contra o racismo. Em vez de tentar a sorte ao lado das lutas pela descolonização do Terceiro Mundo, a luta pelos Direitos Civis apenas mascarou o poder branco, com postura reformista para exclusivo uso interno; ao mesmo tempo em que facilitou o processo pelo qual o poder branco entrincheirou-se em todo o mundo, sob a lógica sobreposta, e falhada, do “anticomunismo”.

Em 1964, Malcolm X fez o conhecido e tantas vezes criticado discurso “À urna ou à bala” [orig. The Ballot or the Bullet] [3], em que confrontou o establishment dos Direitos Civis, e disse que o voto sempre seria inútil, para os negros, como meio para alcançar direitos iguais nos EUA.

Em vez de votar, disse ele, os negros deveriam internacionalizar suas lutas e aproximar-se das lutas em curso no Terceiro Mundo, na África, na Ásia e na América Latina. Como disse, “ninguém leva o próprio caso para ser julgado pelo criminoso: leva-se para ser julgado por tribunal”.

Para Malcolm X, a deriva, de “direitos civis” para “direitos humanos”, implicava apresentar a causa dos negros norte-americanos ante um fórum ampliado, o que forçaria os EUA a submeter-se ao escrutínio e desafio do Terceiro Mundo; e isso, sim, poderia fazer pender a balança do poder a favor das nações negras, tanto quanto revelaria as hipocrisias dos EUA, tornaria menos exequíveis os objetivos da política externa dos EUA no Terceiro Mundo e exporia a extensão brutal do mesmo racismo colonial europeu.

Todos esses compromissos e apoios são signos de seu internacionalismo radical e da profunda divergência que o afastava do establishment dos Direitos Civis. Malcolm apoiou a luta dos palestinos contra os sionistas; aproximou os guetos do Harlem sob leis de segregação racista à Casbah de Argel sob leis colonialistas francesas; elogiou a posição de Nasser contra Inglaterra, França e Israel; comemorou a Conferência de Bandung [4], que viu como um modelo para unificar a cultura política negra durante a Guerra Fria; apoiou a revolta dos Mau Mau contra o colonialismo britânico, e do Vietnã contra o colonialismo francês; reuniu-se com Fidel Castro, elogiou Lumumba como “o maior negro que jamais andou pelo continente africano” e, como Fanon, afirmou o valor ético da luta armada; fundamentalmente, desafiou todo o consenso da Guerra Fria.

O presente pós 11/9

Com o hipernacionalismo da era pós 11/9 a soprar as chamas do incêndio da guerra dos EUA contra o Terceiro Mundo muçulmano, o legado de resistência de Malcolm – no qual se combinam o internacionalismo negro e as políticas do Terceiro Mundo muçulmano – é como roteiro pronto para quem se empenhe em desafiar o consenso imperial que caracteriza a era pós-11/9.

O racismo está crescendo nos EUA

Assim como o “anticomunismo” foi usado para encobrir o racismo durante a Guerra Fria, o “antiterrorismo” é a nova máscara que, hoje, esconde o mesmo racismo e o re-entrincheiramento do suprematismo branco. Serve para justificar a intervenção pelos EUA em vários pontos do mundo, ao mesmo tempo em que contém a insatisfação popular interna, com a lógica do “terrorismo” usada até para determinar quem é cidadão e que é inimigo; quem é humano e quem não é; quem é marcado para morrer e quem ganha alvará para continuar vivo.

Forjado nas lutas da Guerra Fria, o legado de Malcolm tem potência para impedir que comunidades minoritárias (inclusive muçulmanas) sejam manipuladas pela retórica do “terrorismo”. O legado de Malcolm ajuda a reconhecer as raízes racistas dessa nova retórica. Ajuda a ver o modo como o “antiterrorismo” é usado, não só para conter qualquer oposição interna, mas, também, para promover a violenta expansão de ambição imperial, dos EUA. Porque a lógica do “antiterrorismo” opera a favor da lógica racista que divide os muçulmanos entre “moderados” e “radicais”, ela rouba também qualquer dignidade aos que se ergam em oposição ao poder imperialista dos EUA em todo o mundo.

Hoje, quando já muitos ativistas, artistas, acadêmicos e organizações voltam-se outra vez para o pensamento de Malcolm e servem-se dele em seu trabalho, é importante que as comunidades negras e outras não brancas, e as comunidades muçulmanas, continuem a traçar e recompor as profundas conexões internacionalistas às quais Malcolm deu tanta atenção.

Essa conexão de todas essas lutas nada tem a ver com qualquer ideia romântica de solidariedade. É conexão que brota da compreensão mais firmemente enraizada de o quanto são profundamente conectadas, de fato, todas essas forças da violência. É o reconhecimento de que a persistência do racismo nos EUA acontece como efeito de o suprematismo branco ser muito fundamente entretecido no próprio tecido do poder político nos EUA; por isso, o suprematismo branco recebe novo fôlego mediante a simples operação do Estado norte-americano, do modo como os EUA conduzem seus negócios, interna ou externamente.

Implica reconhecer que a lógica do encarceramento em massa nos EUA destruiu qualquer possibilidade de vida política para os negros norte-americanos. Conter internamente as forças de oposição popular, usando as polícias locais e a contraguerrilha, é motivação que também inspira os militares norte-americanos em suas prisões imperiais em Abu Ghraib, Guantánamo, Bagram e outras.

Implica reconhecer também que o suplício dos migrantes através da fronteira pesadamente militarizada entre EUA e México é em tudo muito assemelhado ao processo pelo qual os palestinos são simultaneamente contidos e destruídos, os palestinos e a terra deles.

Implica reconhecer que as políticas econômicas neoliberais que destruíram o salário social e fizeram emergir o estado de guerra nos EUA são muito profundamente enraizadas na exploração do Terceiro Mundo – exploração para a qual operam o capital financeiro e a guerra.

Falar só sobre o antirracismo doméstico e não ver o suprematismo branco como problema global, ou só tecer críticas mornas às políticas externas dos EUA, sobre táticas e estratégias, nunca sobre sua postura nacional fundamentalmente racista, é ter perdido completamente o rumo. Porque essa fala e essa crítica mostram que não veem – ou impedem que todos vejam – que o suprematismo branco enraíza-se na própria estrutura das relações globais que os EUA tanto têm trabalhado para inventar; um conjunto de relações nas quais a diplomacia, o comércio, a manobra política, a guerra e questões de soberania são disputadas em terreno absolutamente desnivelado, sobre o qual os EUA e a Europa têm poder de arbitragem, poder político e brutal força militar.

Ignorar tudo isso nos leva às piores formas do internacionalismo liberal, que presume que os EUA sejam potência benéfica para o mundo, e reproduz o problema contra o qual Malcolm X lutou tão heroicamente, até ser morto. [5]

Malcolm deixou uma marca indelével para gerações de artistas e ativistas. Mas seu legado está hoje sob ataque, como se o projeto fosse apagá-lo, desta vez para sempre, em tempos em que o governo Obama e a narrativa triunfante dos Direitos Civis ainda insistem em dar à ação internacionalista dos movimentos de negros ares de impulso antiquado e irrelevante.

Sohail Daulatzai
Frente aos que dizem que votar em Obama seria “mais pragmático”, e que votar em candidato independente ou não votar seria “não pragmático”, Malcolm viraria a mesa. Para ele, jamais houve coisa alguma de “pragmático” em votar em Democratas ou em Republicanos, se as forças que comandam esses atores permanecem resistentes a qualquer mudança (para já nem falar em transformação). Para Malcolm, nada jamais houve de ‘pragmático’ em continuar a investir e a envolver-se nesse processo em que nada muda, sempre sonhando com mudanças. Para Malcolm, isso é pragmatismo-zero. E caminho direto para a irrelevância.

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Notas dos tradutores

[1]  Epígrafe acrescentada pelos tradutores.

[2]  Black Star, Crescent Moon: The Muslim International and Black Freedom beyond America [Estrela Negra, Lua Crescente: A internacional muçulmana e Liberdade Negra, além dos EUA], 2012 (sumário em inglês).

[3]3/4/1964, em Detroit, EUA. Pode ser lido (em inglês) em: “The Ballot or the Bullet”: Malcolm X

[4] 18-24/4/1955, realizada em Bandung, Indonésia: primeira conferência em grande escala (29 países, representando ¼ da superfície terrestre e população total de 1,5 bilhão de pessoas) de países africanos e asiáticos, a maioria dos quais acabavam de tornar-se independentes. A Conferência de Bandung está na origem da constituição do Movimento dos Não Alinhados.

[5] Malcolm X foi assassinado num atentado, dia 21/2/1965, em New York, aos 39 anos.  

Um comentário:

  1. (comentário enviado por e-mail e postado por Castor)
    A rigor, Obama é muçulmano, filho de pai, logo de mãe também, muçulmanos. Aliás, ela depois casou-se com um muçulmano indonésio, com quem teve filhos, irmãos de Obama, todos muçulmanos. Como ele não se declara súdito do Deus alcorânico (Állah), mas do Inominado cristão, para o Islã o Presidente dos EUA não passa de um herege. Assim mesmo, é recebido, com honras e respeito, por todas as autoridades e clérigos islâmicos, xiitas, sunitas, drusos, ismaelitas, alauítas etc..

    Abraços do
    ArnaC

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