Baby Siqueira
Abrão
Brazilian journalist -
Middle East correspondent
Jornalista brasileira
– correspondente no Oriente Médio
Skype ID:
alo.baby
P. O. Box 1028,
Ramallah, West Bank
São
pouco mais de sete da manhã na Palestina. As comemorações nas ruas de Gaza, pelo
cessar-fogo intermediado pelo Egito e assinado ontem no Cairo, terminaram há
algumas horas. Não se veem mais adultos e crianças – um público
predominantemente masculino – comemorando pulando, dançando, com as bandeiras da
Palestina e do Hamás nas mãos. Todos foram para casa. Mas ninguém conseguiu
dormir.
Caças
F16, helicópteros Apache e drones sobrevoaram Gaza durante toda a noite e a
madrugada. É a versão sionista do conceito “cessar-fogo”: eles suspendem os
bombardeios, mas mantêm a tortura física e psicológica. O barulho das aeronaves
lembra aos moradores da faixa costeira palestina a tragédia (mais uma) da perda
de 162 vidas em oito dias de ataques contínuos e simultâneos, vindos do ar e do
mar. Mísseis, bombas e balas eram atirados ao mesmo tempo no norte, no centro e
no sul de Gaza, matando civis – a maior parte deles composta de crianças,
mulheres e jovens –, arrasando moradias, prédios públicos, sedes dos meios de
comunicação local e internacional, destruindo a já carente infraestrutura de
serviços gazense, ainda não recuperada do assalto militar israelense de
2008-2009, a operação Cast Lead.
Além
dos bombardeios e das mortes que eles provocaram, a população de Gaza teve de
suportar longos cortes de energia elétrica, de água, de telefonia fixa e móvel.
Nos hospitais, faltam medicamentos para atender aos milhares de feridos. Muitos
foram levados para o Egito porque não havia como tratar deles em Gaza. Poucos
carros nas ruas, durante os oito dias de massacres, permitiram que o combustível
enchesse os tanques de ambulâncias e carros de bombeiros, que não tiveram parada
em momento
algum. Jornalistas , cinegrafistas e funcionários de hospitais,
enrolados em cobertores, dormiam em seus locais de trabalho, incapazes de dar
conta da demanda de atendimento médico e de notícias.
Mesmo
assim, hoje Gaza tenta voltar à normalidade. Conversas, barulho de carros nas
ruas, buzinas, ruídos típicos de consertos e de trabalho, vozes infantis enchem
o ar, tirando um pouco da crueza do forte zumbido dos aviões. Mas crianças agora
órfãs, viúvas e viúvos recentes, pais sem filhos e filhos sem pais permanecem
silenciosos em seu luto, em dor profunda talvez pelo resto da
vida.
Os
motivos da guerra
O
que levou Israel a mais uma ofensiva militar a Gaza? A proximidade das eleições
e a necessidade de Benjamin Netanyahu garantir a vitória, dizem alguns.
Argumento fraco, uma vez que as pesquisas indicam que o atual primeiro-ministro
tem ampla maioria das intenções de voto. Mesmo assim, pesquisa do jornal
israelense Haaretz indicou que praticamente toda a nação israelense –
entre 84% e 90% – aprovou a ofensiva contra Gaza. Ofensiva que teve por objetivo
testar novas misturas químicas na população de Gaza, alegam outros, e estes têm,
sim, parte da razão: as queimaduras e os ferimentos das vítimas sugerem o uso de
novas fórmulas, experimentadas em campo. Como já demonstrei antes, baseada em
documento idôneo, os habitantes de Gaza são cobaias de Israel para testes de
armamentos e armas químicas.
Schlomo Sand |
Há outros motivos, porém. A ampla
maioria de palestinos que hoje vive na Palestina e em Israel é motivo de
preocupação[1] para
os sionistas. Israel quer a Palestina inteira para constituir seu “Estado
judeu”, e não poderá tê-lo com maioria palestina, muçulmana e cristã. Lembremos
que o judaísmo é uma religião, não a designação de um povo. Como o historiador
israelense Schlomo Sand já demonstrou, em A invenção do povo judeu, não
apenas a noção de “povo” é recente, e ainda indefinida, na historiografia, como
a ideia de “povo judeu” surgiu com o sionismo, no século XIX, como necessidade
política, para justificar a tomada da Palestina. Uma justificação insensata,
pois não se tira um povo de seu país, muito menos à base da força e das armas –
o método usado pelos grupos paramilitares sionistas para massacrar e expulsar os
palestinos de suas casas e terras, em especial depois de 1947, quando a
Assembleia Geral da ONU, pressionada pelo sionismo, recomendou a partilha da
Palestina. Partilha, lembremos, que não se consumou na ONU e sim em campo, uma
vez que os sionistas já haviam eliminado, com matanças e expulsão, a maioria dos
palestinos, confiscando a Palestina para abrigar
Israel.
Ilan Pappé |
Os
sucessivos ataques a Gaza fazem parte desse amplo contexto, que o historiador
israelense (hoje apátrida) Ilan Pappé denominou “limpeza étnica”, usando um
termo menos agressivo do que “genocídio”. Mas é de genocídio que se trata. Basta
procurar a definição de genocídio na legislação internacional e ver-se-á que é
exatamente isso que os vários governos israelenses vêm fazendo com os palestinos
há mais de 60 anos: a eliminação, ou a tentativa de eliminação, de um grupo
étnico.
Iniciada em 14 de novembro, com o
assassinato de Ahmed al-Jaabari, comandante militar do Hamás com quem Israel
negociara, com a mediação do Egito, mais uma das incontáveis tréguas quebradas
pelos israelenses, a operação Coluna de Nuvens [2] matou
sobretudo mulheres, crianças e jovens. Mulheres mortas não dão à luz; crianças e
jovens assassinados não se tornam adultos, não podem ter filhos nem renovar seu
grupo social à medida que os mais velhos vão perdendo as forças e
perecendo.
Já
a poluição ambiental causada pelas substâncias tóxicas atiradas com bombas e
mísseis executam o genocídio a longo prazo, envenenando a natureza e os animais,
incluindo os humanos. Não à toa, Gaza hoje tem um número elevado de crianças e
mulheres com câncer e poucas possibilidades, em consequência do bloqueio
israelense, de proporcionar-lhes tratamento eficaz. Isso significa ainda mais
vidas humanas perdidas – ou eliminadas – não só pelos ataques massivos, mas
também por assaltos feitos em base quase diária por Israel a
Gaza.
Condenação
internacional
A
notícia de mais uma ofensiva militar israelense a Gaza levou milhões de pessoas
às ruas, no mundo todo. Convocadas às pressas pelas redes sociais, as
manifestações reuniram ativistas que entoavam palavras de ordem e levavam
cartazes com dizeres que devem ter deixado o governo israelense irado. “Israel,
Estado terrorista”, “Do rio [Jordão] ao mar [Mediterrâneo], a Palestina será
livre”, “Saiam da Palestina, sionistas” foram os mais leves e publicáveis. Essa
pressão da sociedade civil internacional, que não descansou um só instante para
deter a matança em Gaza, foi fundamental para o cessar-fogo, garantem seus
patrocinadores, Egito e Estados Unidos. Passeatas (em São Paulo, foram
iniciativa da Frente de Defesa do Povo Palestino, que reúne dezenas de entidades
pró-Palestina, de mulheres, sindicatos e associações profissionais), e-mails e
telefonemas a congressistas, ministros e governos, cartas abertas, postagens nas
redes sociais, em blogues e na mídia alternativa formaram uma corrente de
solidariedade planetária a Gaza.
Incapazes
de deter a avalanche de apoios aos palestinos, os sionistas insistiram na
justificativa que vinham dando desde antes de a Pilar de Nuvens ser iniciada:
“autodefesa” contra os “terroristas do Hamás”. Há cerca de 16 brigadas em Gaza,
mas Israel não as cita porque associar as palavras “terrorismo” e “Hamás” faz
parte da estratégia de propaganda destinada a satanizar o grupo islâmico de
resistência palestina.
Os
sionistas usam os foguetes Qassan atirados no sul de Israel pelas brigadas de
Gaza, em geral em locais desabitados, como desculpa para a prática da guerra.
Calam-se, porém, sobre os mísseis, as bombas e as balas que atiram praticamente
todos os dias na população palestina, e que provocam a reação das brigadas. No
caso da Coluna de Nuvens, a responsabilidade é de Israel, que em 5 de novembro
matou um garoto com deficiência mental que sem querer se aproximou da
zona-tampão de Gaza. Depois foi a vez de garotos de 12, 13 anos que jogavam
futebol num campinho improvisado na rua onde moravam. É impossível que esses
meninos representassem algum risco para Israel, mas mesmo assim seus soldados os
abateram a tiros.
O ataque de uma potência ocupante
a uma população ocupada é expressamente proibido pela IV Convenção de Genebra.
Além disso, como lembrou o Tribunal Russell em carta que exige o embargo militar
a Israel, “a tentativa de justificar esse uso ilegal de força militar
beligerante e desproporcional como “autodefesa” não passa por escrutínio legal
ou moral, pois Estados não podem invocar a autodefesa por atos que servem para
defender uma situação ilegal que eles mesmos criaram [3].
Além
disso, ao classificar o Hamás como “terrorista” e ao pressionar para que outros
países, como Estados Unidos e membros da União Europeia, também o considerem
assim, Israel viola outro princípio da legislação internacional: o do direito
que os povos ocupados têm à resistência armada. Há uma resolução da ONU, a 3070,
que se refere expressamente ao povo palestino (os destaques são
meus):
A
Assembleia Geral
[...]
Ciente da
importância do reconhecimento do direito dos povos à autodeterminação e da
rápida concessão de independência a países e povos coloniais
[...]
Perturbada com a
contínua repressão e com o tratamento inumano infligido aos povos ainda sob
dominação colonial e de outras nações e subjugação estrangeira, incluindo o
tratamento inumano de pessoas aprisionadas em consequência de sua luta pela
autodeterminação,
Reconhecendo a
necessidade imperativa de colocar logo um fim ao controle colonial, à dominação
e à subjugação estrangeira,
1. Reafirma o
direito inalienável à autodeterminação, à liberdade e à independência de todos
os povos sob dominação colonial e de outras nações e sob subjugação estrangeira
[...]
2. Também
reafirma a legitimidade da luta dos povos por libertação da dominação
colonial de outras nações e da subjugação estrangeira por todos os meios à
disposição, incluindo a luta armada
[...]
6.
Condena todos os governos que não reconhecem o direito dos povos à
autodeterminação e à independência, em particular os povos da África [...] e
o povo da Palestina; [...]
Repare-se
que o texto fala em “reafirmar a legitimidade da luta dos povos [...] por
todos os meios à disposição, inclusive a luta armada”, o que significa
que em outros documentos e resoluções a legitimidade da luta armada já havia
sido afirmada. Assim, tanto o Hamás como as demais brigadas de Gaza estão dentro
da lei. Fora da lei, como se acabou de demonstrar aqui, e por violar convenções,
leis internacionais e centenas de resoluções da ONU, está
Israel.
Fim
do bloqueio?
Mohammed Kamel-Amr |
O
cessar-fogo foi negociado entre Israel e o Hamás – ou, mais precisamente, entre
o primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu e o primeiro-ministro do
governo de Gaza, Ismail Hanyeh – com a intermediação do presidente do Egito,
Mohamed Mursi, e de seu ministro das Relações Exteriores, Mohammed Kamel-Amr. O
documento final foi assinado no Cairo, para onde acorreram o secretário-geral
das Nações Unidas, Ban Ki-moon e a secretária de Estado estadunidense, Hillary
Clinton, representando os interesses de Israel.
A
euforia pelo cessar-fogo foi tamanha que poucos se lembraram de dar destaque à
alínea C do artigo 1o do
acordo:
Devem-se
abrir todas as passagens e facilitar o movimento de pessoas e o trânsito de bens
e produtos e devem ter fim todas as restrições à livre movimentação dos
residentes em áreas de fronteira. Os procedimentos para implementar essas
medidas devem começar a ser analisados e definidos 24 horas depois do início do
cessar-fogo.
Caso
os governos de Israel fossem sérios, o bloqueio desumano e ilegal imposto a Gaza
começaria a cair hoje, 22 de novembro, à meia-noite. Alguém duvida de que
Netanyhau vai encontrar um modo de se safar dessa determinação, assinada por seu
governo?
Notas
de rodapé
[1]
De acordo com os registros oficiais de Israel, há atualmente, em toda a Palestina ,
incluindo Israel, 12 milhões de habitantes, dos quais 6,1 milhões são palestinos
e 5,9 milhões são israelenses. O governo de Israel não faz propaganda do fato,
descoberto por acaso por um jornalista israelense ao ler uma reportagem do
caderno de economia do jornal Haaretz. Juntem-se a esses 6,1 milhões
oficiais os mais de 7 milhões de refugiados e chegar-se-á a 13,1 milhões de
palestinos com direito, reconhecido internacionalmente, a viver em seu país. Isso
significaria o fim de Israel como “Estado judeu” e o estabelecimento de uma
nação multiétnica, para todos os que nela vivem, onde hoje existem a Palestina
ocupada e Israel.
[2]
Coluna de Nuvens é nome retirado de Êxodo 13:21-22, livro da Torá ou
Antigo Testamento que narra a saída dos judeus do Egito, liderados por Moisés:
“E Iahveh ia adiante deles, de dia numa coluna de nuvem, para lhes mostrar o
caminho, e de noite numa coluna de fogo, para os alumiar, a fim de que
caminhassem de dia e de noite. Nunca se retirou de diante do povo a coluna de
nuvem durante o dia, nem a coluna de fogo, durante a noite” (A Bíblia de
Jerusalém. 6 reimp. São Paulo: Paulinas, 1983. p.
125.)
[3]
Trata-se do princípio ex injuria non oritut ius, consagrado pelo direito
internacional. Segundo esse princípio, um direito legal não pode nascer de um
ato ilegal.
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