2/11/2012, Pepe Escobar,
Asia Times Online – The Roving Eye
Traduzido
pelo pessoal da Vila
Vudu*
Mona Lisa must have had the highway blues
You can tell by the way she smiles
[Mona
Lisa deve ter conhecido a tristeza das grandes estradas
Vê-se,
pelo jeito que ela sorri]
Bob Dylan, Visions of Johanna [2]
Pepe Escobar |
NA
ESTRADA, no Arizona e Colorado – 5 da tarde, sábado em Shungopavi (“casa da
areia grama primavera”), fundada pelo Clã do Urso [orig. Bear Clan], o
primeiro a chegar às três mesas Hopi no nordeste do Arizona. Toda a
aldeia, mais as aldeias em volta, estão assistindo uma dança das cestas [orig.
basket dance] antes do pôr do sol; espetáculo espantoso, onde a América
Central encontra o Sudoeste Norte-Americano. Diz a geologia que aqui, sem
problemas, poderia ser o Afeganistão.
É
proibido fotografar. Então, me dedicava a imprimir na lembrança o quadro inteiro
de uma tradicional casa Hopi de dois pisos como organismo vivo; uma velha
senhora como anjo guardião, crianças escalando os degraus, uma família
expandida, conversando. E foi um milagre: cheguei a essa cerimônia sagrada por
acaso, dirigindo pelas mesas antes de a noite cair, aquelas vilazinhas
penduradas no alto, contemplando as planícies sem fim.
Paisagem da região de Four Corners |
A
Nação Hopi sempre viveu na área de Four
Corners [quatro cantos] do Platô do Colorado. Vivem sob umas das cosmologias
mais sofisticadas do mundo. Segundo ela, emergiram do submundo através de um
sipapu – uma abertura – no Grande Canyon. Foram lançados à luz desse – o
Quarto – Mundo, graças à ajuda de um pequeno pássaro, shrike [gavião
pequeno, de bico curvo], e fizeram um voto a Sootukwnangwu, o Supremo Criador,
de viver com decência. O espírito guardião da terra contou aos Hopis que teriam
de servir como guardiões da terra, depois de terem concluído suas quatro
migrações, para o norte, sul, leste e oeste à procura do centro da terra.
Conta
a lenda que os Hopis viajaram aos tempos aztecas no México, para a América do
Sul, até o Círculo Ártico e atravessaram os EUA de costa a costa. No centro da
cruz formada pelas quatro rotas que percorreram estão as mesas Hopi. Cada
vez que volto aqui – já voltei algumas vezes – seguindo a estrada Arizona 264
Leste, sei que essa é terra sagrada, a mais sagrada que já vi.
Four Corners (Vista aérea da intersecção das divisas dos Estados de Utah, Colorado, Arizona e Novo México) |
Outros
clãs também migraram para as mesas Hopi, e contribuíram, com habilidade
ou cerimônia diferente dedicada à prosperidade comum. O calendário cerimonial
dos Hopi é ultra sofisticado. Um homem santo em cada aldeia determina a ocasião
de cada cerimônia, conforme a posição do sol.
Dança Hopi Kachina (desenho de 1921) |
As
Kachinas [3] são seres espirituais, absolutamente
importantes na cosmologia Hopi, encarregadas de fazer com que a chuva não falte.
Elas visitam os Hopis e trazem presentes – daí as senhoras da aldeia vestidas
como Kachinas, com trajes fabulosamente elaborados, distribuindo cestas à
assistência (atualmente, também utensílios de plástico para o dia a dia). No
final da dança, as Kachinas recebem amuletos de penas, para que as rezas
pedindo chuva e os mais variados eventos auspiciosos sejam transportados em
todas as direções.
E todo
mundo vota com os Democratas
Todos
os sítios arqueológicos da Reserva Hopi são protegidos por lei federal e,
sobretudo, por leis tribais dos Hopi. É absolutamente proibido fotografar,
filmar ou, mesmo, desenhar, o que ali se vê, as aldeias ou as cerimônias – o que
prova que as mais impressionantes imagens dos EUA, a terra universal da
imagem-monstro, continuam absolutamente misteriosas, invisíveis, impublicáveis e
impublicadas.
Um
dos habitantes da aldeia pediu-me, muito gentilmente, que parasse de tomar notas
num iPhone. Álcool e drogas são proibidos – embora, infelizmente, sim, há
tráfico de tudo, alguns traficantes são Hopis, traidores de seus próprios
códigos nacionais. Cada aldeia Hopi é autônoma – estabelece suas próprias
políticas, sancionadas a seguir pelo Conselho Tribal Hopi.
Four Corners fica na intersecção das divisas dos Estados de Utah, Colorado, Arizona e Novo México |
Mitt Romney jamais seria
encontrado morto [4] num lugar como a Nação Hopi. Para
começar, os Hopi sobreviventes são só 15 mil, distribuídos em 12 aldeias. Como
Rhonda, minha amiga Hopi em Tuba
City, explicou, esse território é predominantemente Democrata, num estado
profundamente Republicano.
Pelos
padrões norte-americanos, são todos parte dos 47% de Mitt, alguns muito pobres,
vivendo em casas feias, de blocos de concreto, embora alguns poucos jovens Hopi
estudem na Universidade do Arizona. Tudo indica que a Nação Hopi votará
predominantemente em Obama – sempre elogiado por ter feito “coisas boas para
nosso povo”. Mesmo assim, o único presidente Democrata que algum dia visitou
pessoalmente a Nação Hopi foi, claro, ele, o grande Bubba, em carne e
osso. É, Bill Clinton lá esteve, durante o primeiro mandato.
Quer
dizer: fui abençoado e pude assistir a uma dança dos cestos; ganhei uma
Kachina – “O Homem Borboleta” – que velará pela retaguarda; e uma
pulseira nova, “pata de urso”, para substituir a que eu tinha, e quebrou. Mais
uma vez, apresentei meus solenes respeitos ao que resta do sonho Americano
Nativo.
Mas
não consegui descobrir um homem santo Hopi para me contar o que foi feito do
Sonho Americano, na versão excepcionalista. Assim sendo, segui adiante para o
território sagrado da Nação Navajo, acompanhando o indispensável Native
Roads (Rio Nuevo Publishers, Tucson,
2nd edition), de Frank Kosik – diretamente para a Geologia Espetacular,
maior que a vida, além da IMAX, do Vale Monumental.
A Reserva Hopi é cercada pela
Reserva Navajo. Nem preciso dizer que não se entendem lá assim tão bem.
Entendem-se pessimamente mal. E, isso, para não falar das histórias imundas de
colonos Mórmons – a tribo de Mitt – quando tomaram as terras Navajos no século
19. Diferente de Jim Morrison – o qual, em viagem psicodélica, foi visitado por
um homem santo Navajo e viu a luz – o que eu queria, mesmo, era conversar um
pouco. Nada há, para elevar a alma, ouvir, ali, que o presidente dos Navajos,
Ben Shelly, [5] está nas tratativas finais para
renovar a concessão de uma Usina Navajo de Geração [orig. Navajo Generation
Station (NGS)] movida a carvão, altamente poluidora, sem sequer consultar os
próprios Navajos.
Como
Marie Gladue recordou a todos, em carta publicada no Navajo-Hopi
Observer, “a NGS é a maior emitente de gases do efeito estufa, do
estado do Arizona”, emissões que têm levado a secas, incêndios, temperaturas
altíssimas, para nem falar de crianças com asma e idosos com bronquite e risco
cada dia mais alto de desenvolverem doenças cardíacas. Mas nada sugere qualquer
possibilidade de a NGS passar a usar, em vez de carvão, energia solar.
Navajos em foto de 1905 (alguns ainda com vestimenta original) |
Sem homem santo Navajo à vista,
fui premiado com um satori [6] estético que faria John Ford
[7] corar de inveja. Aconteceu à vista
de Albert e seu cavalo, no cenário do Vale Monumental; a filha dele vende jóias
navajo exatamente no point de John Ford. Albert conta que não está fácil
ganhar a vida, desde que a recessão tudo envolveu, em 2007/8. Mas ele ainda
acredita na promessa de sua terra abençoada. Como no ginásio Grey Hills Academy – um dos melhores
exemplos da luta da Reserva Navajo para alcançar autodeterminação na educação.
Entra
em cena o caubói judeu
Marco da fronteira quádrupla |
Era
hora de tentar jogada arriscada, de último minuto, ou o jogo estaria perdido.
Comecei pelos Quatro Cantos – onde Utah, Colorado, Arizona e Novo México
encontram-se. Utah e Arizona votam Romney; Novo México vota Obama. Colorado é
estado indeciso, mas as chances de Obama vencer ali já chegaram a 63% e
continuam subindo, segundo as projeções de Nate Silver.
Nos
Quatro Cantos, encontrei Wayne, que me presenteou com toda a cosmologia Navajo,
inteira, pintada por ele mesmo, em arenito. Promissor, como presságio, de que
conseguiria encontrar um curador curandeiro de verdade. Mas ainda tive de cruzar
metade do Colorado, entre florestas majestosas de pinheiros, cafés imaculados da
era do excepcionalismo norte-americano, embrião da estação de esqui em Vail, uma
tempestade-monstro-furacão de spots de propaganda de ataque, sem parar,
na televisão, das duas campanhas, de Obama e de Romney, até o Instituto Naropa
de Estudos Budistas, ultraverde e ecoamigável, em Boulder; e bicicletistas e
skatistas por toda parte.
E foi quando, finalmente, dei com
ele – em Broomfield, perto de Boulder; a encarnação pós-tudo do que seja um
curandeiro curador norte-americano. Era um caubói judeu/rabino que cantava casos
com voz muito abaixo de grave. Claro, tinha de ser: concerto de Bob Dylan
[8] inserido em tour sem fim;
uma espécie de cerimônia sagrada, só para iniciados, para gente que sabe para
onde olha, à procura de chaves para achar resposta.
Lá estava ele, coringa curandeiro
curador, sempre de camisas e calças azuis, sempre pela estrada 61, a
lembrar aos passantes que algo acontece aqui e não se sabe o que é.
Obcecadamente dedicado a nada ser além de seixo que rola, a postos, torre de
vigia e esperando chuva – ou a resposta que venha soprada no vento. [9]
Ao
fim de minha peregrinação à procura de um homem santo, encontrei minha resposta
quando Bob Dylan cantou versão inacreditável de Visions of Johanna [10] – coloradenses autênticos,
ao meu lado, também boquiabertos. Enquanto a consciência corre perigo de
explodir e talvez exploda na busca de um evanescido sonho
americano,
as
gaitas de boca tocam acordes [notas, chaves] antiquados, e a chuva
e essas
visões de Johanna são agora tudo que resta. [11]
Ô,
sim, EUA excepcionais:
Não é bem
a noite [no sudoeste], a nos pregar peças, quando você tenta manter a calma?
Parece que ficaremos sentados aqui, desamparados, fazendo hora, por um bom tempo
– embora todos insistindo, fazendo o máximo, mentindo que não. [12]
___________________________________________
Comentário
do pessoal da Vila Vudu:
Tradução quase impossível, dificílima. Fizemos o que deu. Todas as correções são bem-vindas. A luta
continua!
Notas
de tradução:
[1]
Orig. [Mas essas visões de Johanna] make it all seem so cruel. É verso de
Bob Dylan. Vide nota [2]
[2] Letra original e tradução (ruim) em: Visions of
Johanna .
Assista gravação com o
autor (Bob Dylan) a seguir:
[3] Podem ser vistas em: Kachina
Hopi
[4] Orig. wouldn't be caught dead. A tradução
acima é literal e não está errada. Mas essa expressão, em inglês, está associada
para sempre a uma fala de George Harrison, dos Beatles, em A
Hard Day ’s
Night, o filme: “[as roupas dele são horríveis]. Eu nunca serei encontrado
morto vestindo isso!” (com pequena variação em: “A
Hard Day's Night Script - Dialogue Transcript”)
Essa nota pareceu-nos necessária, porque, aqui, ninguém está falando em o cara
ser encontrado morto-morto.
[5] Veja a página da Nação Navajo, com
fotos do presidente.
[6] “Satori” é termo do budismo japonês, para “iluminação”.
Literalmente, significa “compreensão”.
[7] John Ford dirigiu
vários filmes em que o mesmo cenário – Vale Monumental, Arizona, na fronteira
com Utah – é, também, personagem. Por exemplo, Stagecoach [No
Tempo das Diligências (título no Brasil) e A Cavalgada Heróica (título em
Portugal)], de 1939, já clássico do western.
[9]Orig. “[para lembrar que]something's
happening here and we don't know what it is [verso
de Bob Dylan, em Ballad Of A
Thin Man
(...) a rolling
stone
(Bob Dylan em Like a Rolling
Stone ), all
along
the watchtower (...) [(Bob Dylan, All Along The
Watchtowe e expecting
rain) –
or the answer
blowing the Wind” (Bob Dylan)] .
[10] Vide Nota [2]
[11] Orig. the harmonicas play the skeleton keys
[também “chaves antigas”, das que se veem em: “Bulk Skeleton Keys
Package” , p. ex.] and the rain / and these visions of Johanna
are now all that remain (a tradução acima visa, apenas, a ajudar a
ler.
[12] Orig. Ain't it just like the [Southwest] night to
play tricks when you're trying to be so quiet? It seems like we'll be sitting
here stranded for quite a while - even though we all keep doing our best to deny
it (a tradução acima visa, apenas, a ajudar a ler).
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