4/11/2013, [*] Robert Fisk, The Independent, UK
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Apoiadores de Mursi em frente ao Tribunal Militar do Cairo em 3/11/2013 |
Todos sabíamos
o que o presidente Mohamed Mursi diria ontem (3/11/2013), quando pela primeira
vez enfrentou os juízes. E ele gritou: “Sou o presidente da República”.
A Corte
pôs-se a uivar, dickensiana, e
jornalistas egípcios – que jamais deixam de participar das próprias histórias –
berravam contra Mursi e os seis co-acusados, repetidas vezes: “Executem todos!
Executem todos!” em coro, e os policiais, alguns à paisana, outros
uniformizados, uns fumando cigarro após cigarro, outros usando coletes à prova
de bala, nada fizeram para pôr fim àquele circo monstruoso.
Talvez os
policiais concordassem com seus próprios jornalistas, mas, a certa altura, os
advogados de defesa da Fraternidade Muçulmana lutavam sobre os bancos da corte
com jornalistas e policiais egípcios, enquanto Mursi e seus ex-camaradas – que
se viam ali pela primeira vez, desde o golpe militar em julho – a tudo
assistiam placidamente, de dentro da jaula com barras de ferro.
Seria fácil
zombar desse tribunal-carnaval, os guardas judiciários pedindo silêncio à
multidão de jornalistas e advogados, que parassem de se esmurrar e berrar,
enquanto o ex-presidente do Egito – porque é o que ele é – lá ficava, num terno
de trabalho, barbas grisalhas, vez ou outra abraçando um ou outro dos
prisioneiros enjaulados, todos por trás das barras de ferro negro, num canto da
sala de julgamento de paredes revestidas de madeira. Mas era só parte da
tragédia egípcia pós-revolucionária, um presidente eleito julgado por crime de
incitamento ao assassinato, acusação que – se for suficientemente provada ante
o tribunal – pode custar-lhe a vida.
Ninguém
acredita que chegue a tanto. Os jornalistas não estariam exigindo a cabeça do
réu se supusessem que possa ser, mesmo, condenado à morte. Exatamente como o
próprio Mursi não se teria declarado presidente do Egito se realmente
acreditasse que seja.
Mas disso,
desnecessário dizer, é do que trata essa audiência absolutamente sem
precedentes – na mesma academia de polícia na qual Hosni Mubarak, o ditador que
precedeu Mursi no governo do Egito, foi julgado: de se o Egito
pós-revolucionário pode vir a ser democracia funcional, de se governos árabes
podem representar as próprias nações inteiras – de se suas administrações podem
ser “inclusivas” - como os ocidentais arrogantes os mandam ser – ou se o povo
que lutou tão bravamente pela própria dignidade e liberdade tem, mesmo, de
bater palmas em desiludido uníssono, ante mais um general.
Os augúrios,
ontem, não foram bons. Os policiais do lado de fora estavam ótimos,
comportamento exemplar. Apertavam mãos, sorriam muito, tomavam nossos
passaportes e nossos celulares, nos devolviam cartões plásticos com números de
identificação, nos levavam, em ônibus, até o Tribunal, respeitosamente
reviravam pastas, livros, bolsas e sacolas. Só quando se chegava ao prédio do
tribunal é que se via o que nos esperava: mais policiais. Centenas, ocupando
todas as cadeiras das primeiras filas, das laterais, os assentos junto aos
corredores de passagem e mais três dúzias deles apertados numa outra jaula de
barras de ferro adjacente à do acusado, para o caso de Mohamed Mursi abrir asas
de anjo e tentar voar dali.
Com roupa branca de prisioneiro, Mohamed El-Beltagy |
Ninguém vira
Mursi desde o golpe – ninguém; nunca mais fora visto em público – mas parecia
em boa forma, talvez um pouco mais gordo, conversando animadamente com os
colegas, vestidos em uniformes brancos de prisioneiros. Seu correligionário,
Mohamed El-Beltagy, lá estava e via-se também Essam el-Arian, líder da
Fraternidade, o qual, acho que foi ele – a aglomeração na sala tornava difícil
identificar as pessoas – gritou que nenhuma corte criminal poderia julgá-lo,
que a aquela audiência era “ilegal, injusta, ilícita, inconstitucional”. Seis
dos prisioneiros permaneciam na academia de polícia desde a madrugada – Mursi
chegou às 7h20 – e el-Arian repetia que haviam sido “torturados” e impedidos de
ver seus advogados desde que foram presos.
Os próprios
advogados reclamaram que não lhes deram tempo para preparar a defesa.
Perguntaram por que policiais à paisana apareciam por trás do juiz com câmeras
e por que tantos policiais só faziam fotografar os advogados que trabalhavam na
defesa de Mursi e dos demais prisioneiros. O juiz Ahmed Sabri Youssef optou por
não explicar quem seriam aquelas estranhas criaturas. Num dado momento, Mursi e
seus colegas ergueram a mão fazendo o sinal de quatro dedos, da “Rabaa”,
símbolo da Fraternidade na oposição, e exibiram retratos desenhados de um
jornalista pró-Fraternidade que foi morto na Praça Tahrir. Foram vaiados por
jornalistas egípcios e por alguns dos policiais. Em Nuremberg não teve disso.
O juiz leu o
nome de Mohamed Mohamed Mursi – o nome do meio mostra que seu pai também se
chamava Mohamed – e, claro, todos assistíamos àquele estranho julgamento, por
causa dele. Ahmed Abdul-Ati, outro dos acusados, disse a repórteres, falando de
dentro da jaula, que desde julho Mursi não falara com nenhum de seus advogados
– motivo pelo qual o juiz Youssef saiu com espalhafato da sala, pela primeira
vez, logo aos dez minutos. Via-se Mursi em ativa conversa com seus ex-colegas,
provavelmente a primeira verdadeira reunião do banido Partido Liberdade e
Justiça, desde o golpe. Mursi beijou as duas bochechas de um dos prisioneiros.
Quando
interrompeu o juiz Youssef, a voz era forte e confiante. “Sou o Presidente da
República”, declarou. “O golpe é um crime. Essa corte é responsável por esse
crime. Tudo que está acontecendo aqui visa a dar cobertura ao golpe. É uma
tragédia que o grande judiciário do Egito tenha de dar cobertura ao golpe”. E
quando a plateia respondeu com berros – ainda se ouvia a voz de Mursi dizendo
que “não se deixem enganar. Isso aqui só serve aos interesses do inimigo
externo...”
Chegada de Mursi para o 1o. dia de julgamento |
Mursi disse
outras coisas, difíceis de entender, porque sua voz era frequentemente
encoberta por gritos. Disse que respeitava os membros da corte, mas que a corte
não tinha direito constitucional de julgar um chefe de Estado. “Sou o
presidente do Estado, e estou detido contra minha vontade”. Essa é a razão pela
qual insistia que ainda é o presidente; porque, se não fosse, então a corte
teria perfeito direito de julgá-lo.
Que Mursi
lutou, lutou. Quando subiram o volume do microfone do juiz, para encobrir as
palavras de Mursi, ainda se ouvia a voz dele: “Deem-me algo (um microfone) para
que eu possa falar a vocês”. “Agora, não!”, o juiz respondeu sem pausa.
Se alguma
corte pode expor as divisões de uma nação, aquela expôs. Mursi pode até ter
razão para opor-se à realização daquela audiência, mas, infelizmente, muita
gente acredita piamente que não poderia jamais ter sido eleito, que jamais agiu
como presidente e que foi deposto quando já estava em desgraça, em julho
passado, porque planejava um golpe próprio, só dele.
Do lado de
fora da academia de polícia, uma vasta cidade de policiais onde antes havia o
deserto em torno de Maadi, a tropa de choque carregava as armas com granadas de
gás, à frente de centenas de manifestantes apoiadores de Mursi. Uma gangue de
militantes armados – apoiadores da junta militar – começou a perseguir homens
que corriam para todos os lados, no estacionamento. Julgamento adiado, como se
diz. Até dia 8 de janeiro. Feitas as contas, foi dia dos mais desgraçados.
__________________
[*] Robert Fisk é
filho de um ex-soldado britânico da Primeira Guerra Mundial, Robert Fisk
estudou jornalismo na Inglaterra e Irlanda. Trabahou como correspondente
internacional na Irlanda - cobrindo os acontecimentos no Ulster - e Portugal.
Em 1976, foi convidado por seu editor no The
Times para substituir o correspondente do jornal no
Oriente Médio. Fisk trabalhou para The Times até 1988, quando se mudou para The
Independent - após uma discussão com seus editores sobre
modificações feitas em seus artigos, sem seu consentimento.
Fisk cobriu a guerra civil
do Líbano, iniciada em 1975; a invasão soviética do Afeganistão, em 1979; a
guerra Irã-Iraque (1980-1988), a invasão israelense do Líbano, em 1982), a
guerra civil na Argélia, as guerras dos Balcãs e a Primeira (1990-1991) e a
Segunda Guerra do Golfo Pérsico, iniciada em 2003. Fisk notabiliza-se também
pela cobertura ao conflito israelo-palestino. Ele é um defensor da causa
palestina e do diálogo entre os países árabes, o Irã e Israel.
Considerado como um dos
maiores especialistas nos conflitos do Oriente Médio, Fisk contribuiu para
divulgar internacionalmente os massacres na guerra civil argelina e nos campos
de refugiados de Sabra e Chatila, no Líbano; os assassinatos promovidos por
Saddam Hussein, as represálias israelenses durante a Intifada palestina e as
atividades ilegais do governo dos Estados Unidos no Afeganistão e no Iraque.
Fisk também entrevistou Osama bin Laden, líder da rede terrorista Al-Qaeda (em
1993, no Sudão, em 1996 e em 1997, no Afeganistão).
Robert Fisk é o
correspondente estrangeiro britânico mais premiado. Recebeu o Prêmio
Correspondente Internacional Britânico do Ano sete vezes (as últimas em 1995 e
1996). Também ganhou o Prêmio à Imprensa da Anistia Internacional no Reino
Unido em 1998 e 2000.
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