21/11/2013, [*] Conflicts
Forum
Traduzido pelo pessoal da
Vila Vudu
Uma coisa
que se resultou da primeira rodada de negociações dos EUA (P5+1) com o Irã é
que, afinal, há clareza sobre as verdadeiras posições de vários atores: é
visível que os sauditas (como uma espécie pervertida de Perseu no submundo),
acionaram as forças mais obscuras, tentando matar “os demônios” do Oriente
Médio (tudo e todos que não sejam os próprios sauditas). Mas, diferentes de
Perseu, os sauditas não tem Hermes, para guiá-los e explicar que nunca
conseguirão realmente “matar” a Medusa, nem o Cérbero de várias cabeças, porque
essas entidades não passam de imagens – imagens que, em última
instância, são projeções dos abismos interiores dos próprios sauditas.
Rei Abdullah Arábia Saudita |
Até aqui,
não há sinal de que algum Hermes-guia tenha surgido dentro da família de Saud
(pelo menos, alguém que se consiga ver de cá, de fora do círculo familiar). O
que se vê é que todos parecem paralisados, numa luta viciosa pela coroa.
A menos que
algum deus ex machina intervenha logo (o que pode bem acontecer), os
sauditas parecem condenados a só aumentar suas ameaças contra todos os “demônios”
que veem na Síria, no Líbano, no Iraque, no Iêmen e no Irã. A “missão” deles,
nesse “mundo infernal” do Oriente Médio, com certeza afetará o timing para
o início de alguma Genebra-2, mas também pode complicar as negociações do Irã. A
violência dos sauditas está encorajando a França e Israel a tentar boicotar as
negociações. (A França, principalmente por razões comerciais: a França espera
substituir os EUA como parceiro comercial privilegiado da Arábia Saudita; e
Israel, porque o atual primeiro-ministro jamais quis qualquer tipo de
negociação que não tratasse exclusivamente dos “termos de rendição” do Irã).
Recentes declarações
de porta-vozes oficiais dos EUA na imprensa-empresa norte-americana têm
destacado a mudança de interesses dos EUA, além do abandono da noção de que os
EUA devam agir só como “advogados de Arábia Saudita e Israel”; para eles, tudo
isso sugere “um tranco” que o atual governo dos EUA estaria dando contra o eixo
franco-saudita-israelense. Mas, mais importante, os comentários que têm
aparecido sugerem que o contexto geral para o acordo provisório proposto em
Genebra nada teve de “momentâneo” e deve a própria gênese a conversas entre EUA
e Irã ao longo dos últimos meses em Omã; isso sugere, afinal, que os EUA têm
forte intenção de persistir na sua iniciativa iraniana.
Mas o outro
elemento chave em todos esses eventos intercomunicantes no Oriente Médio é a
Rússia.
A Rússia,
trabalhando com os EUA, produziu o Tratado das Armas Químicas para a Síria. A
Rússia está-se engajando num Egito muito frágil, pela primeira vez em 30 anos –
e num momento em que a influência dos EUA está ali sob eclipse total. A
Rússia está profundamente envolvida na campanha para derrotar o extremismo
sunita; e a Rússia pode, com plena justiça, reclamar os méritos de ter
influenciado a modelagem do Acordo Provisório proposto em Genebra, a partir de
contatos diretos já de longa data que mantém com o Irã, sobre sua “questão
nuclear”. Mas será a Rússia um parceiro potencial de um Irã que emerge do
isolamento? Ou a Rússia vê o Irã como concorrente, que ameaçaria diretamente os
interesses energéticos da Rússia?
Fyodor Lukyanov |
Já se disse – observou
o conhecido analista Fyodor Lukyanov – que a volta do Irã aos palcos mundiais, depois de longo isolamento,
seria uma perda para a Rússia, porque o atual “relacionamento especial” se
baseia principalmente no fato de Teerã enfrentar terríveis sanções e não ter
mais ninguém a quem recorrer senão à Rússia (o que se aplica basicamente às
relações que têm a ver com a construção de usinas nucleares e cooperação
militar). Mas, se o Irã tiver outras oportunidades, o país se reorientará na
direção de países ocidentais mais influentes. Sempre há o risco de o país que
tanto se dispunha a relações “amistosas” em tempos de dificuldades, afaste-se,
tão logo o isolamento seja afrouxado. É o que a Rússia já se viu acontecer, em
certa medida, na Líbia de Gaddafi e na Sérvia depois de Milosevic.
Conflicts Fórum agradece a
um de nossos colegas, pelo parecer sobre a região, que lhe solicitamos e que
aqui transcrevemos:
Bashar al-Assad |
O recente levante na Síria serviu, de fato,
para exacerbar e tornar muito mais visível, a fratura existente na região,
entre dois blocos opostos – um cisma que se ampliou ao longo da última década. Há,
é claro, muitos fatores que nos levaram a esse ponto; mas o fator mais
significativo é o projeto para a construção de um gasoduto para transportar gás
natural a partir do Qatar passando por Arábia Saudita, Jordânia e Síria, até a
costa Mediterrâneo, de onde pode ser embarcado para os mercados europeus. O
governo Assad foi o primeiro obstáculo no caminho desse gasoduto politicamente
estratégico. Mas Assad nunca esteve sozinho na obstrução, que serviu para
empurrar a Rússia e o Irã na direção de encontrarem um interesse “energético”
comum; e a apoiarem a posição de Assad, a qual complementa os interesses
político-estratégicos dos dois países.
Há uma situação semelhante a essa entre Irã e
Rússia, relacionada à exportação de gás a partir do Turcomenistão, onde os dois
países estão bloqueando qualquer fornecimento direto à Europa que não passe por
gasodutos russos ou iranianos.
Prioridade energética para a Rússia é, bem
claramente, proteger seu objetivo de converter-se em principal fornecedor de
energia para a União Europeia e dificultar a concorrência. É claro que o Irã
também tem interesse em impedir que o Qatar se converta em principal exportador
de gás do Golfo – sobretudo num momento em que o Irã está sob sanções, incapaz
de exportar o próprio gás. Mas o interesse do Irã não se centra tão
decididamente na Europa, mas no potencial de fornecer para seus vizinhos
(inclusive Síria e Líbano), que o Irã vê como mercado crescente. Mais
importante, os dois países têm interesse em impedir que aumente a importância
estratégica, no campo energético, do Qatar e da Arábia Saudita, para os países
europeus. Rússia e Irã têm, ambos, interesse comum em impedir que o gasoduto
qatari veja a luz do dia; mas também têm interesse comum em ver Síria e Líbano
estabilizados, estabilidade que um gasoduto ajudaria a consolidar.
Contudo, à parte esse interesse comum, a
conciliação de interesses russos e iranianos é mais nuançada. A Rússia observa
atentamente o projeto do gasoduto iraniano, que levará gás do Golfo à Síria, em
esforço conjunto com o Iraque. O Irã declarou que seu principal interesse nesse
gasoduto é fornecer gás à Síria e ao Iraque, e possivelmente também ao Líbano.
Estima-se, porém que, somados, Iraque, Síria
e Líbano precisarão de cerca de 16 bilhões de barris/ano, enquanto a capacidade
planejada do gasoduto é de 40 bilhões de barris/ano. É razoável que os russos
estejam preocupados com a possibilidade de que esse superávit possa ser
redirecionado para projetos de gasodutos alternativos, do Leste do Mediterrâneo
para a Europa – os quais, atualmente, estão sendo ativamente pensados. Os
iranianos não se cansam de repetir que não têm interesse em fornecer para a
Europa; que aspiram a fornecer na direção leste, para Índia e China (o
Paquistão está saindo da linha de interesse). Funcionários do governo iraniano
têm insistido que só querem fornecer gás para seus vizinhos.
Um prolongamento da crise síria – pode-se
argumentar – obrigaria a suspender o projeto iraniano, mas não afetaria
diretamente os interesses energéticos russos, uma vez que não impedirá que a Gazprom expanda o Gasoduto do Norte
na direção da Europa nem terá impacto na construção do Gasoduto do Sul. Nem
Síria nem o Irã, contudo, veriam aí alguma razão para a Rússia adiar um acordo
para a Síria – porque, para o governo russo, derrotar o extremismo sunita é
interesse maior que qualquer interesse que os russos tenham na competição por
energia.
Projetos de gasodutos da Gazprom construídas e a construir (clique no mapa para visualizar melhor) |
O novo governo do Irã quer, visivelmente,
mudar a situação atual, na qual o Irã é importador líquido de gás, para
explorar ao máximo o potencial significativo que o país tem como exportador de
gás. Nesse contexto, o Irã negocia com o P5+1 e, paralelamente, indica sua intenção
de abrir sua indústria de energia a investidores estrangeiros. O Irã precisa
atrair investimento externo para o setor de energia na ordem de 100 bilhões de
dólares norte-americanos. Para tanto, os iranianos já indicaram também que
estão dispostos a alterar os procedimentos atuais para contratos e empréstimos,
para torná-los mais atrativos aos investidores de fora. Naturalmente, o Irã
deseja condições de concorrência entre as empresas internacionais de petróleo,
incluindo as empresas russas, chinesas e talvez, até, as norte-americanas. E a
Rússia também quer que o Irã abra sua indústria de gás para as empresas russas.
O comércio e a oferta internacionais de gás
mudarão significativamente, se o Irã tornar-se grande exportador. A Rússia está
acompanhando atentamente todos os movimentos do Irã nessa área, especialmente a
extensão de uma possível abertura em direção ao ocidente em geral,
preparando-se para proteger seus interesses, se as coisas tomarem esse rumo.
Prestarão extrema atenção a qualquer tentativa de levar o gás iraniano até a
Europa (pela Turquia, Azerbaijão ou o Leste do Mediterrâneo) deixando de fora a
Rússia e excluindo a Gazprom desses
projetos. Cabe esperar que a Rússia tome medidas concretas para dificultar
esses movimentos, como já fez no passado. Por exemplo, a Gazprom assegurou que o gasoduto
Irã-Armênia, que já opera desde 2009, tivesse sua capacidade limitada a 50% do
previsto – insuficiente, assim, para que haja gás exportável para a Europa.
Uma prioridade estratégica para a Rússia é continuar
como o maior fornecedor de gás natural para a Europa e continuar a usar essa
posição como alavanca política em sua política europeia. Com esse objetivo, a
Rússia está atualmente exercendo fortes pressões para remover os obstáculos
remanescentes à construção do Gasoduto Sul – na Sérvia. Mas, tão logo o
Gasoduto Sul se torne operacional, a Rússia estará provavelmente aberta para
que o gás iraniano junte-se nesse fluxo.
Há pois várias razões pelas quais Rússia e
Irã devam cooperar no campo energético e fazer avançar seus interesses comuns –
como controlar o transporte mundial e a oferta e o preço do gás natural. Ambos
os países têm apostas altas no futuro dessa indústria e no preço do gás no
mercado internacional. Se não estreitarem a cooperação, inevitavelmente se
tornarão concorrentes, em detrimento dos dois lados.
Rota sul de oleogasodutos da Gazprom em projeto e já construídos (clique neste link para aumentar a imagem} |
Uma parceria estratégica implicaria um acordo
de divisão do mercado, com a Rússia focada na Europa, e o Irã na China, Índia,
Japão e países vizinhos; projetos conjuntos para conectarem as redes de dutos;
e promoção de cooperação regional no que tenha a ver com depósitos de energia
na bacia do Cáspio, inclusive um acordo que controle a exportação de gás do
Turcomenistão. Atualmente, há esforços para promover essa cooperação em três
diferentes níveis:
(a) mediante um acordo bilateral para cooperação
de petróleo e gás;
(b) no Fórum dos Países Exportadores de Gás
[orig. Gas Exporting Countries Forum
(GESF)], que reúne os 13 mais produtores de gás; e
(c) na Organização de Cooperação de Xangai, que
reúne, como membros, os maiores produtores e consumidores de petróleo e gás na
Ásia.
Mais importante, as relações bilaterais, em
geral, e a aliança entre Rússia e Irã estão em ascensão. A Rússia é e
continuará a ser a principal fornecedora de armas e de tecnologia nuclear para
o Irã, e é contrapeso vital ao ocidente, especialmente se se leva em conta o
fortalecimento da influência regional da Rússia e seu comprovado empenho no
apoio e na proteção que garante aos aliados. Os dois países também têm muitos
aspectos comuns entre os respectivos interesses estratégicos, dentre os quais,
e principalmente, a proteção aos respectivos recursos naturais; impedir que se
disseminem a militância da Al-Qaeda e a ideologia salafista radical; e proteger
os respectivos interesses de segurança na bacia do Cáspio, na Ásia Central, no
Oriente Médio e no Golfo. A confluência dos mais altos interesses estratégicos
nacionais entre os dois países não lhes deixa alternativa, além de cooperarem
também no campo do gás e da energia.
Essa opinião
é
apoiada por Fyodor Lukyanov, que argumenta:
(...) agora é a hora para [a Rússia] promover a “abertura”
do Irã: o conflito sírio, em todas as suas diversas manifestações, mudou a
paisagem diplomática no Oriente Médio. A firme posição da Rússia, não importa
em que esteja baseada (considerações globais predominando sobre questões
regionais), levou a um resultado não esperado. Os interesses
da Rússia e do Irã ficaram muito intimamente alinhados, muito mais que
antes, quando os dois países tentavam, em essência, explorar cada um as
dificuldades do outro, considerando só os interesses de cada um. A emergência
da aliança situacional – e também, no atual momento, lógica – entre Moscou,
Teerã, Bagdá, Damasco e Hezbollah fez da Rússia um player regional
muito mais influente do que seria de esperar há dois anos. Esse curso (...)
plantou os pilares para a ação na região.
[*] Conflicts Fórum visa mudar a
opinião ocidental em direção a uma compreensão mais profunda, menos rígida,
linear e compartimentada do Islã e do Oriente Médio. Faz isso por olhar para as
causas por trás narrativas contrastantes: observando como as estruturas de
linguagem e interpretações que são projetadas para eventos de um modelo de
expectativas anteriores discretamente determinam a forma como pensamos -
atravessando as pré-suposições, premissas ocultas e até mesmo metafísicas
enterradas que se escondem por trás de certas narrativas, desafiando
interpretações ocidentais de “extremismo” e as políticas resultantes; e por
trabalhar com grupos políticos, movimentos e estados para abrir um novo
pensamento sobre os potenciais políticos no mundo.
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