22/11/2013, [*] Pepe Escobar, Russia Today
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Soldados dos EUA vigiam local próximo de um ataque suicida em Maidan Shar, cidade capital de Wardak, província ao sul de Kabul em 8/9/2013. (AFP Photo/Shah Marai) |
Viemos.
Vimos. Ficamos. Para sempre. Eis a essência do chamado Acordo Bilateral de
Segurança [orig. Bilateral Security Agreement (BSA)] a ser firmado entre
o governo Obama e o Afeganistão – mais de 12 anos depois de iniciada a
interminável Guerra ao Terror.
O
presidente Obama e o secretário de Estado dos EUA, John Kerry definem o tal
acordo como uma “parceria estratégica”. Se for, é a parceria mais desigual em
toda a história: o presidente afegão Hamid Karzai não passa de fantoche,
decorado com precisão de alfaiataria, dos norte-americanos.
Kerry
anunciou o chamado acordo BSA em Washington na 4ª-feira, mesmo antes do
“Grande Conselho” (em pashtun, Loya Jirga) de 2.500 líderes tribais
afegãos, clérigos, membros do parlamento e comerciantes iniciarem os trabalhos
de quatro dias de deliberações, numa tenda no campus da Universidade
Politécnica em Kabul, na 5ª-feira.
Mas foi
quando Karzai, no discurso que, provavelmente, foi o seu último grande
pronunciamento como presidente, jogou uma jogada espetacularmente arriscada.
Ele sabe que está sendo e será acusado de jogar o Afeganistão rio (Panjshir)
abaixo. Sabe que está sacrificando a soberania do Afeganistão por muitos anos,
para o futuro – e que pagará caro por isso.
Então, mais
uma vez, encarnou Hamid, O Ator, e fez-se de negociador sério e honesto,
insistindo em que o acordo BSA deve ser adiado para depois das eleições
presidenciais afegãs, em abril de 2014, e que deve ser assinado por seu
sucessor.
Fez drama.
Há desconfiança entre os norte-americanos e
eu. Eles não confiam em mim, e eu não confio neles. Sempre os critiquei e eles,
pelas minhas costas, sempre propagaram coisas negativas – disse
ele.
Já assisti
a Jirgas no Afeganistão; até olhar aqueles rostos tribais, enrugados,
imperscrutáveis, já é, em si, um espetáculo. O que estariam pensando aquelas
pessoas em Cabul? É claro que não confiavam nos norte-americanos. Mas
confiariam em Karzai? Será que veem que tudo aquilo não passa de encenação?
Uma Loya
Jirga consultiva não tem poder para vetar o BSA. Até o presidente da
Jirga, Sibghatullah Mojadeddi, lembrou que Karzai pode assinar o acordo
sem qualquer consulta. Mas Karzai insiste que não assinará, se não tiver a
aprovação da Loya Jirga.
Muitos
membros do Parlamento afegão e toda a oposição afegã já votaram a tapa,
boicotando a Jirga. Para nem falar dos Talibã – parte essencial de
qualquer acordo sobre o futuro do Afeganistão – e o ainda totalmente armado
“Exército do Islã” [Hezb-e-Islami]. Todos esperam ansiosamente para
ouvir o líder supremo dos Talibã, quando subir ao palco para o seu kabuki.
Soldados dos EUA chegam no local de um ataque suicida em Maidan Shar, cidade capital de Wardak, província ao sul de Kabul, em 8/9/2013. (AFP Photo/Shah Marai) |
Contraterrorismo
grátis para todos
A “negociação”
do BSA foi como um sketch de Monty
Python estendido. Washington sempre insistiu que os soldados dos EUA podem
invadir casas de afegãos o quanto queiram, e mesmo assim continuar imunes a
qualquer tipo de processo judicial no Afeganistão. Ou isso, ou os EUA deixam o
país no final de 2014, deixando lá o Exército Nacional Afegão [Afghan
National Army (ANA)], mal treinado e quase totalmente corrompido, para
enfrentar os Talibã.
Até a mais
recente encenação de Karzai, o governo Obama tinha o acordo como favas
contadas. Basta ler a carta
que Obama enviou a Karzai.
Ah! De
desculpas, nem se fala! A conselheira para assuntos de segurança, Susan Rice
disse que Washington nada deve, em matéria de desculpas, por ter matado e
ferido dezenas de milhares de civis afegãos desde 2001, nem por ocupar vastas
porções de território afegão. Antes, um porta-voz de Karzai dissera o
contrário.
Na dúvida,
basta ouvir o seador Lindsay Graham, mega-linha-dura, que disse à Reuters:
Estou boquiaberto. Desculpas, por quê? Talvez
seja o caso de exigir que o presidente afegão peça desculpas aos soldados dos EUA,
por tudo que os fez passar.
Soldados dos EUA levam o Sargento Matt Krumwiede, ferido por um dispositivo explosivo improvisado (IED), para um helicóptero Blackhawk no sul do Afeganistão, 12 /6/2012. (Reuters/Shamil Zhumatov) |
Nada há de “residual”:
é ocupação norte-americana a ser disfarçada como se fossem “forças” necessárias
para treinar e “aconselhar” os não mais de 350 mil soldados e policiais que
compõem o Exército Nacional Afegão, criado do nada durante os últimos poucos
anos.
Aqui se
fala de um acordo que começará a ser vigente em 2015, com efeitos até 2024 “e
além”.
O acordo
final não é muito diferente da versão que vazou [já não é encontrável na página
de Russia Today (NTs)]. Essa semana, começou a circular no Pentágono e
no Congresso dos EUA uma versão atualizada. O Pentágono, via o general Martin
Dempsey, Comandante da Junta de Comandantes do Estado-Maior, justifica a coisa
toda, recorrendo à proverbial necessidade de “manter a segurança do Afeganistão”
e garantir que a ajuda externa não seja desperdiçada (como sempre foi).
Haverá
muitas bases e postos militares dos EUA; bases afegãs; e outras bases das quais
os EUA têm “uso exclusivo”. Bagram, Kandahar, Jalalabad e Mazar-e-Sharif estão,
inevitavelmente na lista. Mais uma vez, trata-se do Império Norte-americano de
Bases – tão bem caracterizado pelo falecido Chalmers Johnson – em sua melhor
forma.
O general
de Marinha, Joseph Dunford, atual comandante militar de EUA/OTAN no
Afeganistão, quer que fiquem mais de 13 mil soldados, sem contar guardas de
segurança e o crème de la crème, a gangue do contraterrorismo. Em
teoria, essas forças não entrarão em combate, “a menos que as partes decidam
conjuntamente, de outro modo”. O texto da versão provisória enfatiza:
Operações militares dos EUA para derrotar a
Al-Qaeda e seus grupos afiliados podem ser indicadas, na luta comum contra o
terrorismo.
Tradução:
um futuro festival de raids pelas Forças Especiais, e contraterrorismo
grátis para todos.
O texto
provisório só fala, vagamente, de “pleno respeito à soberania afegã e plena
consideração à segurança e proteção do povo afegão, inclusive dentro das casas”
– como Obama também mencionou na carta a Karzai.
E silêncio,
absolutamente nenhuma palavra, sobre o emprego crítico de drones baseados
em bases afegãs, que foram usados para incinerar o velho comandante, mas,
também, quantidades incalculáveis de civis inocentes nas áreas tribais do
Paquistão.
O caso é
sempre o pivoteamento rumo à Ásia
O governo
Maliki em Bagdá teve colhões para confrontar o Pentágono e vetar a imunidade
para as forças dos EUA – e efetivamente chutou para fora do Iraque a força de
ocupação. Hamid Karzai, por sua vez, aceitou virtualmente todas as demandas
norte-americanas. A questão chave nos próximos meses é “em troca de quê?”
Proteção à moda mafiosa, se ele ficar no Afeganistão, ou o equivalente ao
programa de proteção a testemunhas do FBI, caso mude-se para os EUA?
Mesmo
assumindo que a Loya Jirga endosse o acordo BSA (o que ainda não
está definido) e que o sucessor de Karzai assine (com Karzai conseguindo
safar-se das cordas), dizer que tudo isso abre uma nova caixa de Pandora é
dizer muito pouco.
Para todas
as finalidades práticas, a ocupação continuará. Nada disso tem qualquer coisa a
ver com combater a Guerra ao Terror ou a Jihad. Não há Al-Qaeda no
Afeganistão. Os poucos remanescentes estão no Waziristão, território
paquistanês. Os EUA estão – e continuarão em guerra, essencialmente, contra pashtuns
afegãos que são membros dos Talibã. E os Talibã continuarão a fazer suas
ofensivas de primavera e verão enquanto houver qualquer tipo de ocupação
estrangeira em solo afegão.
Soldados dos EUAparticipam da cerimônia de comemoração do 4 de julho na base aérea de Bagram, ao norte de Cabul, 4 /7/2013. (Reuters/Omar Sobhani) |
A guerra
dos drones continuará, com o Pentágono e a CIA a servirem-se daquelas
bases afegãs para atacar pashtuns nas áreas tribais do Paquistão. Para nem
mencionar que aquelas bases norte-americanas, para serem operacionais, carecem
de acesso irrestrito às rotas de trânsito paquistanesas, do desfiladeiro Khyber
e do corredor Quetta-até-Kandahar. Significa que Islamabad continua a lucrar,
recolhendo gordas taxas de passagem, em dólares norte-americanos.
Ainda não
se sabe como a Organização de Cooperação de Xangai responderá a isso. Não só
Rússia e China – que se opõem absolutamente às bases dos EUA no Afeganistão –
mas também Irã e Índia, observadores na OCX, e dois países que podem balançar o
Afeganistão para longe dos Talibã, sem recorrer a meios militares.
Pode-se
delinear, por exemplo, um desenvolvimento futuro praticamente inevitável:
Washington decide implantar o sistema de mísseis de defesa dos EUA no
Afeganistão (já aconteceu na Turquia). Rússia e China já estão vendo que é
possível que os EUA tenham perdido a disputa econômica pela Ásia Central –
enquanto a China assina negócio após negócio no contexto da sua grande
estratégia da(s) Nova(s) Rota(s) da Seda. O que sobra para Washington é –
adivinhem! – cacos e pedaços desconjuntados da mesma velha doutrina do Espectro
de Plena Dominação, do Pentágono, tipo... bases militares para “monitorar”
China e Rússia, de pontos muito próximos das respectivas fronteiras.
Certo,
mesmo, é que ambas, Rússia e China – para nem falar do Irã – veem essa
“Operação Ocupação Perpétua do Afeganistão” como o que ela é: mais um capítulo
(militar) do “pivoteamento” dos EUA para a Ásia.
[*] Pepe Escobar (1954) é jornalista, brasileiro, vive em São Paulo, Hong Kong e Paris, mas
publica exclusivamente em inglês. Mantém coluna (The Roving Eye) no Asia Times Online; é também analista de política do blog Tom Dispatch e correspondente/ articulista das redes Russia Today, The Real News Network Televison e Al-Jazeera. Seus artigos podem
ser lidos, traduzidos para o português pelo Coletivo de Tradutores da Vila Vudu
e João Aroldo, no blog redecastorphoto.
Livros:
- Globalistan: How the Globalized World is Dissolving into Liquid War, Nimble Books, 2007.
- Red Zone Blues: A Snapshot of Baghdad During the Surge, Nimble Books, 2007.
- Obama Does Globalistan, Nimble Books, 2009.
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