terça-feira, 17 de junho de 2014

A Desordem das “Forças da Ordem” pós-Modernas


14/6/2014, [*] Philippe Grasset, Blog DeDefensa, Bélgica
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Guarda Nacional da Ucrânia está alistando neonazistas do Pravy Sektor (Setor Direita)
Aqui aproximaremos dois episódios concernentes às forças armadas de dois países nessa situação pós-moderna intermediária que mistura (i) a conquista ou a influência pelo Sistema, que vêm do exterior; e a (ii) desestruturação de todos os quadros de princípios que daí decorrem, e com essas forças confrontadas a conflitos de contestação daquela situação. Não se trata de julgar pelas orientações ideológicas, políticas, militares e outras desses países, mas, sim, de aproximá-las conforme o estado de desestruturação – se não de dissolução – de cada uma, depois da intervenção do Sistema.

Os dois países são Ucrânia-Kiev no assalto contra os revoltosos do Donbass, de um lado; e o Iraque ante o ataque de terroristas islamistas do ISIS, de outro lado. Como se verá adiante, se trata de estabelecer uma analogia de situação, concernente especificamente ao tratamento pelas respectivas autoridades políticas e ao comportamento dessas forças armadas nas situações de conflito evocadas, que levam à fragilização, se não à impotência, das próprias forças armadas.

(Que fique desde já bem entendido: os dois eventos não serão tratados como eventos militares – o que, conforme nossa avaliação, não são. Por exemplo, o desmonte ou a dissolução do exército iraquiano não deve ser considerado, como nem poderia ser, na relação a outro evento assemelhado, da história militar. Se se toma o caso do desmonte e dissolução do Exército russo no verão-outono de 1917, esse evento, que se pode qualificar clara e efetivamente como evento militar, é a conclusão de uma longa sequência marcada por três anos de guerra cruel e perdas imensas, num clima nacional pesadíssimo de dissolução. A dissolução do exército iraquiano, que não foi conclusão de nada e tampouco é consequência de algum conflito, é episódio de uma sequência histórica ainda em curso, que tem a ver diretamente com o enfrentamento geral gerado pelas tensões surgidas do Sistema e de sua crise geral).

Do lado ucraniano, trata-se da odisseia de uma unidade da Guarda Nacional na região leste, o 3º esquadrão do 1º batalhão de reserva da Guarda Nacional, uma das diversas forças pró-Kiev.

Treinamento dos novos recrutas da Guarda Nacional ucraniana
Normalmente, essas unidades da Guarda Nacional, constituídas depois que a nova equipe tomou o poder, com o objetivo específico de intervir no Leste do país, são constituídas, sobretudo, de membros do grupo Pravy Sektor (Setor Direita), ultranacionalista e de tendência neonazista.

O 3º esquadrão amotinou-se por causa das condições em que está tendo de operar, sem pagamento, sem equipamentos de subsistência (sobretudo, sem alimento e em instalações precaríssimas de campanha), sem apoio logístico, etc., e em situação administrativa extraordinária – “como se não existisse...” Dia 12/6/2014, Russia Today noticiou a odisseia do 3º esquadrão

Agora, uma unidade inteira da Guarda Nacional revoltou-se e está marchando de volta a Kiev, reclamando que foram abandonados pelo governo e deixados sem soldo. ‘Segundo os documentos oficiais, nós não existimos! Somos uma ilusão. É como se não tivéssemos sido mandados para cá, não temos munição. Nada!’ – disse o comandante do 3º esquadrão do 1º Batalhão da Reserva da Guarda Nacional, tenente Taras Zherebetsky. Disse que todos os documentos de seu destacamento desapareceram, como se nunca tivessem existido. “Estamos dormindo no chão, porque não temos barracas. Nos mandaram para cá  – e nos esqueceram aqui. E enquanto todos os generais e comandantes sentam-se confortavelmente em suas tendas com aquecimento, protegidos pelos mais modernos equipamentos de comunicação, somos mandados combater como bucha de canhão” – disse Zherebetsky. Vídeo a seguir:


Outros membros da Guarda Nacional disseram que às vezes têm de pagar pelos uniformes e os coletes à prova de bala foram distribuídos como amostras pelos patrocinadores, não pelo governo. Outro detalhe sobre a unidade, revelado pelos combatentes, é que muitos soldados foram alocados em unidades que nunca existiram. Significa que, tecnicamente, realmente combateram, portam armas e provavelmente mataram inimigos na região de Donetsk por decisão pessoal deles.

Mas ainda há mais! Os Guardas Nacionais descobriram que, enquanto estiveram em zona de guerra perto da cidade de Slavyansk durante semanas, segundo os relatórios e documentos existentes, não saíram da pacífica cidade de Pavlograd na Região de Dnepropetrovsk, o que significa que jamais serão pagos por tempo de combate, como lhes foi prometido. “Nunca recebemos pagamento algum, além dos cerca de $600 na chegada, há dois meses. E mais nada. Não temos comida. Tem-nos enchido de promessas de que nos pagarão amanhã... Mas estamos cansados de esperar” – disse outro soldado da Guarda Nacional, Evgeny Ivanenko.

Várias dúzias de membros não armados da Guarda Nacional reúnem-se agora em frente aos quartéis da Ucrânia, exigindo o reconhecimento como combatentes. Se forem reconhecidos como tal, terão direito a descontos em aluguéis para moradia e para compra de móveis e utensílios domésticos, e benefícios na assistência à saúde.

De modo geral, tomamos esse caso particular como exemplar do que deve ser o estado geral das forças pró-Kiev. Já houve vários casos nessas forças armadas – soldados que se recusam a combater, deserções etc., e uma atitude geral marcada por reticência evidente a aventurar-se, apesar da considerável superioridade em número e armas, em fases ofensivas que permitiriam ganhos significativos.

Por sua vez, o aspecto não homogêneo, com estatutos diferentes (por exemplo, diferentes comandos, outras forças engajadas, inclusive tropas estrangeiras – não ucranianos, até mercenários norte-americanos), tudo isso implica completa falta de unidade e de coordenação.

• O caso das forças armadas iraquianas poderia parecer muito diferente, à primeira vista, do ponto de vista dos combates em que se engajaram, do volume e do comportamento dos exércitos, etc..

Mas já se publicaram análises sobre o comportamento dos soldados, e há casos surpreendentes, como o de uma divisão de 15 mil soldados regulares do exército iraquiano, que debandou ante uma força de 800 homens do ISIS. Em contraste com as forças pró-Kiev no caso acima comentado, os soldados iraquianos são regiamente remunerados, mais bem pagos que várias profissões liberais (US$ 1.300/mês para um soldado, contra US$ 1.000 para um professor universitário). A corrupção parece ser atividade generalizada, em todos os níveis, enquanto as motivações são muito fortemente marcadas pela proveniência de cada soldado, suas lealdades étnicas, tribais, de partido, de religião, etc..

Essas proveniências e lealdades podem ser honradas em si, mas pesam e reforçam massivamente uma situação de desestruturação e de dissolução, sempre que tomam o lugar dos princípios de legitimidade e de soberania que já não existem no caso que tende a tornar-se universal, desses estados reduzidos a uma existência fantasmática, ela também muitas vezes ‘com lado’ e lealdades específicas, também desestruturada e também em dissolução. O jornal Al-Akhbar (ed. em inglês), dia 13/6/2014, trouxe matéria sobre esse assunto:

Blindado das FFAA iraquianas incendiado pelos terroristas do ISIS
O Dr. Hisham al-Hashemi, especialista em questões militares, diz que o exército do Iraque compreende 15 divisões, cada uma com de 12 mil a 15 mil soldados, além de Força Aérea, Marinha, Forças de Segurança, Inteligência e Polícia Militar. O total de soldados alcança 600 mil, o que deveria bastar para conter qualquer conspiração ou ataque contra o Iraque, diz ele, “não fossem o espírito militar muito fraco, a corrupção entre os oficiais e a deserção dos oficiais encarregados do Comando de Operações Ninawa.

Ao explicar as causas da debandada das forças de segurança, Hashemi diz que “foi resultado de os comandantes militares confiarem em partidos políticos para explicar suas ações e para protegê-los, ao mesmo tempo em que descuidam das responsabilidades e decisões militares, sempre preocupados com outras atividades que lhes dão dinheiro; além da básica falta de integridade moral.  [...]

Ali al-Nour, outro especialista em questões militares, entende que o colapso do exército não é resultado de um único erro, mas de um acúmulo de muitos erros políticos e militares; e inclui também o fracasso do estado, que não contém a corrupção nem garante segurança e serviços básicos aos cidadãos.

Nour disse a Al-Akhbar que o que aconteceu em Mosul não foi resultado só de corrupção, mas foi a culminação de toda a corrupção que o Iraque vê desde 2003; o que aconteceu foi resultado de falta de adequado trabalho de segurança, quotas sectárias para nomeação aos postos da segurança e a falta de seriedade entre os políticos, para tudo que tenha a ver com “construção do Estado” depois de 2003.

E acrescentou: “A corrupção é institucionalizada no Iraque. É normal que os militares envolvam-se também na mesma corrupção, com muitos oficiais lucrando muito, sem cumprir o próprio dever. Eles vendem de tudo: combustível, veículos, armas; aceitam suborno de prisioneiros e praticam extorsão”. Nour lembra que o exército não tem doutrina (exceto o sectarismo).

Por exemplo, diz ele, um soldado xiita não tem interesse algum em defender cidade sunita e vice-versa; e lembra que uma doutrina do exército tem de ser uma combinação de laços emocionais e intelectuais, que o exército iraquiano não desenvolve, apesar de os soldados receberem salário superior ao de professor universitário. Disse Nour: “Um soldado comum recebe salário mensal de, no mínimo, US$ 1.300; os professores ganham só US$ 1.000”. Oficiais com patente de major-general e superior ganham mais de US$ 6.000 por mês. É mais do que ganha um vice-ministro.

E Nour continua: “O problema do armamento e slogans vazios foi resultado da retirada dos EUA sem que qualquer alternativa tivesse sido preparada, mais um erro enorme”.

O especialista chama a atenção também para o fenômeno dos “soldados fantasmas”, soldados alistados no exército, sem atribuições e sem precisarem sequer aparecer nos quartéis e bases, mas pelos quais os oficiais superiores são pagos (metade do salário de cada “fantasma”), e tudo com pleno conhecimento dos oficiais superiores do Alto Comando e de vários deputados do Parlamento.

Na opinião desse especialista, o que aconteceu no Iraque é reflexo da situação em toda a região, mas também é resultado da quantia imensa de riquezas desperdiçadas no clientelismo baseado em quotas sectárias. Para Nour, nem toda a ajuda pelo exército dos EUA ou qualquer ajuda internacional ao exército do Iraque jamais resolverá a crise de segurança, a menos que todas as crises na região sejam atacadas simultaneamente...

Em todas essas considerações, nem se fala de defender a pátria, heroísmo, espírito de sacrifício, etc.. Essas referências soam hoje como anacronismos completamente estranhos ao espírito do tempo, a mil séculos de distância e de outra civilização.

Filósofo e pesquisador do CNRS que publicou Le Soldat impossible [O soldado impossível], sobre a questão da evolução do soldado (ou “soldado” conforme a ideia de uma única missão sacrificial, convertido em “militar” com múltiplas missões segundo a evolução dos costumes culturais e ideológicos, num tempo extremamente elástico), Robert Redeker observa:

Um soldado se bate, quer dizer, mata e morre, pela nação, a França, por exemplo, articulado à profundidade temporal, à longa duração; mas o militar contemporâneo, apenas fantasiado de soldado, é obrigado a se bater para impor ideias, valores, num horizonte pedagógico (converter – punindo os recalcitrantes, todos os Estados – aos direitos do homem e à democracia)” (Dans Eléments, abril-junho, 2014).

Robert Redeker
Nos casos que examinamos aqui, os soldados pró-Kiev e o exército iraquiano, trata-se de sub-“soldados contemporâneos”, com capacidades pedagógicas apenas caricaturais, supletivos dos “soldados contemporâneos” nascidos das necessidades de atos desestruturantes do Sistema, sobre as quais gravamos alguns slogans vazios importados do Bloco Americanista Ocidentalista (orig. bloc BAO).

Esses slogans vazios respondem a projetos-Sistema, que repercutem os que os formaram. Evoluem numa rede de comandos políticos absolutamente corrompidos antes mesmo de existirem, que são subcomandos-Sistema (impostos pelo Sistema) – não corrompidos pelo Sistema, mas corrompidos antes de existirem como tais, quer dizer, paridos pelo próprio Sistema e tendo, como condição para existir, a corrupção, para começar, psicológica. Consequentemente, tendo como condição sine qua non para existir a rejeição de todos os princípios (legitimidade, autoridade, identidade), dos quais se pode esperar criar uma força coerente, solidária e com projeto-objetivo coletivo comum.

É o caso também das forças pró-Kiev, que dependem de um poder implantado pelo Bloco Americanista Ocidentalista (Bloco BAO) para servir aos interesses desestruturantes do Bloco; como as forças iraquianas, que dependem de um governo formado por démarche de rumo semelhante, ainda que feita sob condições completamente diferentes e segundo referências correspondentes às situações regionais, ao espírito e às nuances religiosas das populações e da história.

Tudo isso significa que, para nós, as dinâmicas pós-modernas do Sistema, aplicadas a situações existentes com seus conflitos, latentes ou ativos, servem-se dessas situações existentes para nutrir a produção de desordem das próprias situações.

Resulta daí que esses “soldados” são, por definição, péssimos combatentes, simplesmente porque não podem ser coisa diferente, porque são ontologicamente impotentes para ser qualquer outra coisa, em razão das condições impostas pelo Sistema.

O Setor Direita [Pravy Sektor] não recebe dos nazistas apenas a tendência a comportamento de massacres; recebe também a menor capacidade para o combate das tropas nazistas.

Os soldados iraquianos, dependentes de um poder que se mostra sectário, por causa das condições criadas pelo Sistema (os EUA e a invasão de 2003, depois de mais de uma década de pressões de todos os tipos) e que em nome do próprio partidarismo-sectarismo corrompe tudo que se move, são, eles mesmos, partidários-sectários no plano das respectivas etnias, das respectivas tribos, das confissões religiosas, etc., quer dizer, os reflexos deles os empurram na direção dos objetivos que são objetivos dos adversários (limpeza étnica, divisões tribais, étnicas, etc.), não na direção dos objetivos que se espera que os soldados iraquianos promovam.

Pelo próprio comportamento, fazem-se cúmplices, mais ou menos voluntários, conforme o caso, dos que eles enfrentam, que em geral são “irregulares” em relação aos arranjos do Sistema, os quais em geral seguem objetivos precisos e estruturantes por si mesmos, a serviço de entidades unitárias ou de ideologias bem identificadas (para o que aqui se diz, não importa que algumas delas sejam detestáveis ou criticáveis; aqui só se considera a problemática da evolução do modo como as situações estruturaram-se).

Trata-se pois de conflitos que se incluem na guerra dita de 4ª geração (G4G), na qual as diferenças marcam-se segundo as referências a capacidades unificantes, estruturantes e identitárias muito desiguais, conforme respondam ou não a princípios – e arrastam os que mais bem respondem a essas referências, em todos os casos em que as próprias referências representem princípios unificadores.




[*] Philippe Grasset é argelino emigrado para a França em 1962. Bacharel em Filosofia, três anos como publicitário e ao final de 1967 mudou-se para Liège (Bélgica), casou-se pela primeira vez (2 filhos 1970/71) e iniciou-se no jornalismo no diário La Meuse - La Lanterne, como cronista de política internacional e de segurança e também como crítico literário; Entre 1978/80 colaborou com publicações internacionais com crônicas sobre assuntos militares e de literatura. Tornou-se jornalista independente em 1985 lançando diversas publicações (Lettre d’Analyse); a editora Euredit SPRL (1987); Context (1994); e o sítio dedefensa.org (1999). Quatro livros editados (3 ensaios; La drôle de détente em 1978, Le monde malade de l’Amérique em 1999, Chronique de l’ébranlement em 2003; e um romance histórico: Le regard de Iéjov em 1989) além de centenas de artigos.

2 comentários:

  1. Isso é burrice nata ou ignorância generalizada difarmar um país em Guerra porque não deseja mais ser escravo e sim parceiro? Extremamente patético o que está fazendo inventando e distorcendo a verdade. Esse é o objetivo principal da propaganda Russa inventando história sobre facismo quando os únicos facistas que estão na Ucrânia são aqueles enviados pela Russia como mercenarios. Terroristas são subhumanos quando eles invadem sua casa, mata sua família e te faz escravo. É o que está acontecendo lá e existem milhares de provas para isso. RT e outros canais russos estão criando falsa informações usando imagens digitalizadas alteradas. Inacreditável tua attitude.

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    1. Burrice e ignorância é o que você demonstra; leia/assista no "link" abaixo e leia/assista o que rola na internet: http://veragraziadei.wordpress.com/2014/06/18/ukrainian-genocide-and-its-cheerleaders/
      Além desse existe na internet enorme quantidade de vídeos postados pelo Pravy Sektor e Svoboda se vangloriando das atrocidades por eles cometidas, notadamente no Donbass. A redecastorphoto e os blogs norte-americanos The Vineyard of the Saker (animado por um ex-diplomata dos EUA) e Moon of Alabama (animado por um ex agente da CIA) mantém na Ucrânia vários correspondentes relatando "in loco" o que acontece. O pessoal da Vila Vudu traduziu inúmeras postagens desses blogs. Não estamos informando baseados na RT, mas nesses blogs. A análise do Philippe Grasset é eminentemente comparativa entre o que acontece na Ucrânia e no Iraque. Antes de falar/escrever BESTEIROL informe-se.

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