sexta-feira, 20 de junho de 2014

Iraque paga o preço da intervenção sectária dos EUA

18/6/2014, [*] Ramzy Baroud, Asia Times Online
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Guerreiros xiitas preparam-se para a luta em Bagdá - 13/6/2014
Xiitas armados cantavam “Labeiki ya Zaynab”, brandindo os rifles frente às câmeras de TV em Bagdá, dia 13/6/2014. Aparentemente, se preparavam para a luta difícil que tinham pela frente. Para eles, seria como se um canto de guerra respondesse ao chamamento de Zaynab, filha do Imã Ali, o grande califa muçulmano que viveu em Medina há 14 séculos. Foi o período durante o qual a seita xiita emergiu lentamente, baseada numa disputa política cujas consequências se sentem ainda hoje.

O canto, só ele, basta para demonstrar a feia natureza sectária da guerra no Iraque, que nos últimos dias atingiu ponto sem precedentes. Menos de mil combatentes do Estado Islâmico do Iraque e Levante (ing. ISIL) avançaram contra a maior cidade do Iraque, Mosul, dia 10/6, forçando duas divisões do exército iraquiano (cerca de 30 mil soldados) a uma retirada caótica.

Aiatolá Ali al-Sistani
O chamado às armas foi feito por um dos mais reverenciados clérigos xiitas do Iraque, o Grande Aiatolá Ali al-Sistani, e lido num dos sermões da oração da 6ª-feira (13/6/2014) em Kerbala:

(...) Todos os que tenham condições de portar uma arma e lutar contra os terroristas em defesa do próprio país (...) devem unir-se como voluntários às forças que já combatem para alcançar esse objetivo sagrado – dizia um trecho do sermão.

Os terroristas dos quais falou Sistani são o ISIL, estimados em apenas 7 mil terroristas na região. São bem organizados, muito bem equipados e muito cruéis.

Para conservar os seus já consideráveis ganhos territoriais, o ISIL moveu-se rapidamente para o sul, aproximando-se de outras cidades iraquianas. Atacaram e tomaram Baiji, dia 11/6/2014. No mesmo dia, tomaram Tikrit, cidade do ex-presidente Saddam Hussein do Iraque, onde receberam reforços de ex-combatentes ba’athistas.

Por dois dias tentaram tomar Samarra, sem conseguir; voltaram-se então para o leste de Bagdá, contra as cidades de Jalawala e Saaddiyah. Não há como verificar a veracidade do noticiário sobre o que está acontecendo nas cidades que caem sob controle do ISIL, mas a considerar o legado sangrento que deixaram na Síria, e o que o próprio ISIL noticia das suas atividades, deve-se esperar pelo pior.

Em poucos dias, o ISIL já controlava grande extensão de terra, suficiente para alterar o mapa político do Oriente Médio previsto pelas potências coloniais França e Grã-Bretanha há quase um século.

É difícil antever o que o futuro guarda. O governo dos EUA está petrificado ante a ideia de voltar a envolver-se no Iraque.

Mas foi a ação dos EUA – em nome dos neoconservadores que em larga medida determinavam a política exterior dos EUA durante o governo de George W. Bush – que pôs fogo nesse conflito e gerou o incêndio que arde até hoje.

Em dezembro de 2011, os EUA reconheceram o próprio fracasso e retiraram-se do Iraque, na esperança de mesmo assim conservarem alguma influência sobre o governo iraquiano dos xiitas do primeiro-ministro, Nouri al-Maliki. Falharam miseravelmente mais uma vez; hoje, é o Irã que tem influência considerável sobre o governo em Bagdá.

De fato, a influência e os interesses iranianos no Iraque são tão poderosos que, apesar das muitas “declarações” de arrogância e provocação que têm sido feitas pelo presidente Barack Obama dos EUA, os EUA não têm meios para intervir na mutável realidade no Iraque, sem a ajuda dos iranianos. Notícias que circulam na imprensa-empresa de EUA e Grã-Bretanha falam da possibilidade de uma “parceria” EUA-Irã para enfrentar os terroristas do ISIL, não só no Iraque mas também na Síria.

ISIL fuzila sumariamente a população xiita em Mosul (Iraque)
A história está-se acelerando a velocidade frenética. Alianças aparentemente impossíveis começam a criar-se muito rapidamente. Os mapas são apagados e redesenhados por linhas determinadas por combatentes mascarados armados com armas automáticas montadas em carrocerias de caminhonetes. É verdade que ninguém poderia prever esses eventos; mas quando alguns disseram que a guerra do Iraque poderia “desestabilizar” o Oriente Médio por décadas futuras, estavam falando precisamente do que hoje todos veem.

Quando Bush inventou sua guerra contra o Iraque para combater “al-Qaeda”, não havia “al-Qaeda” no Iraque; a guerra de Bush, sim, levou a “al-Qaeda” para o Iraque.

Um misto de húbris e ignorância – e nenhuma compreensão da história do Iraque – levou o governo Bush a inventar e manter aquela guerra horrível. Morreram centenas de milhares de iraquianos naquela aventura militarista imoral dos EUA. Os que não foram mortos foram presos, espancados, torturados, violentados ou fugiram, numa odisseia iraquiana sem fim.

Os norte-americanos brincaram levianamente com o Iraque, em vários sentidos. Dissolveram o exército; destroçaram todas as instituições políticas; tentaram refazer uma “nova” sociedade seguindo fórmulas do Pentágono e de analistas da CIA em Washington e na Virginia. Oprimiram os muçulmanos sunitas, deram poder aos xiitas e assim alimentaram a fogueira do sectarismo, sem medir qualquer consequência. Quando as coisas não saíram como o planejado, tentaram dar poder a alguns grupos xiitas e outros; e armaram grupos sunitas para combater a resistência iraquiana contra a guerra.

As consequências disso tudo são um mar de sangue. A guerra civil iraquiana de 2006-07 custou dezenas de milhares de mortos, que se somam à lista sempre crescente de vítimas de toda aquela aventura militarista dos EUA. Não houve eleição que não tenha sido fraudada, no esforço para remediar o irremediável; nenhuma técnica de tortura deixou de ser usada contra a rebelião; nenhuma “acordo” servil com os grupos sectários ou étnicos deixou de ser feito; não se economizou em nenhuma corrupção; e nem assim foi possível criar sequer algum arremedo verossímil de “estabilidade”.

Em vermelho, área do Iraque e da Síria atualmente ocupada pelo ISIL/ISIS
Em dezembro de 2011, os norte-americanos fugiram do inferno iraquiano, deixando para trás uma luta ainda em andamento e sem conclusão à vista.

O que se vê hoje no Iraque é parte integral da desgraça que os EUA distribuíram na região. Basta dizer que o líder do ISIL, hoje, Abu Baker al-Baghdadi, é iraquiano de Samarra, que combateu contra os EUA e foi preso e torturado em Camp Bucca – a maior prisão dos EUA no Iraque – por cinco anos.

Não seria muito exato dizer que o ISIL nasceu num calabouço de uma prisão norte-americana no Iraque. Seria preciso examinar com mais detalhe a história do ISIL, porque tem raízes que vão ao fundo desse conflito. É história tão cheia de mistérios quanto as figuras mascaradas que explodem gente e degolam gente sem nenhuma atenção aos elevados valores da religião que eles dizem representar.

Mas não há como negar que a orquestração ensandecida e ignorante que os EUA promoveram, para opressão em massa dos iraquianos – e contra, sobretudo, os sunitas, principalmente na guerra de 2003, antes de os EUA terem de bater em retirada apressada, foi fator importante, dos principais, na formação do ISIL – e para os horrendos níveis de violência do grupo extremista.

Não se sabe ainda se o ISIL conseguirá manter os territórios que tomou, nem se terá meios para enfrentar combate na Bagdá xiita controlada por EUA e Irã. Mas algumas coisas são certas:

A marginalização política sistemática das comunidades sunitas iraquianas é, ao mesmo tempo, sem sentido e insustentável. Um novo contrato social e político é indispensável, para reorganizar o que foi destruído pela invasão norte-americana e outras interferências externas, inclusive do Irã.

A natureza do conflito tornou-se tão complexa, que um acordo político no Iraque terá de ser amparado em acordo similar na Síria – que está servindo como criadouro de brutalidades, como o ISIL. É hora de começar a cuidar de tratar das feridas sírias e das feridas iraquianas, para que, afinal, possam começar a cicatrizar.



[*] Ramzy Baroud, palestino da diáspora, é colunista internacional e editor do site Palestine Chronicle. Seu mais recente livro é My Father Was a Freedom Fighter: Gaza’s Untold History [Meu pai era um revolucionário: a história não contada de Gaza], publicado pela Pluto Press.

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