quarta-feira, 11 de junho de 2014

O fascismo ucraniano reciclado/reciclável


Fascismo: um “ismo” para o século 21

6-8/6/2014, [*] Peter Lee, Counterpunch
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Fascistas (neonazistas) desfilam  com suástica estilizada e efígie de Stepan Bandera
Leitores não europeus talvez não saibam, mas a primavera é a estação preferida para as marchas dos fascistas nas repúblicas do Báltico. Na Estônia, é dia 16 de fevereiro; na Lituânia, 16 de fevereiro e 11 de março (aniversários das declarações de independência); e 16 de março, na Letônia (dia 16/3/1944, pela primeira vez a Legião Letoniana lutou ao lado da Wehrmacht contra o Exército Vermelho), os fascistas locais desfilam para celebrar seus grandes fascistas e seus fascistas heróis, a maior parte dos quais colaboraram com a Alemanha nazista durante a IIª Guerra Mundial, em guerra contra a União Soviética.

O grande evento dos fascistas ucranianos é 1º de janeiro, aniversário do nascimento de Stepan Bandera (1909-1959), líder do grupo fascista OUN-B (Organização dos Ucranianos Nacionalistas-Bandera).

Em 2014, 15 mil pessoas marcharam à luz de archotes, pelas ruas de Kiev, dia 1º de janeiro, para homenagear Bandera.

O fascismo no leste da Europa é ideologia durável e alarmantemente vital. Não se trata só de afeto atávico por Hitler e o nazismo, por um poucos doidos fanáticos.

E o fascismo ucraniano é mais durável e mais vital que vários outros fascismos. Foi forjado nas condições mais adversas que se possam imaginar: na fornalha do stalinismo, sob governo de Hitler e durante o esforço polonês para destruir a nacionalidade ucraniana.

Kruchev
Entre as duas guerras mundiais, o nacionalismo ucraniano ficou sob ataque feroz. A URSS ocupava a parte leste da Ucrânia, submetida à coletivização sob Stálin, e implantou repressão feroz; e a fome matou milhões. De início, os soviéticos tentaram cooptar o nacionalismo ucraniano, apoiando a expressão cultural ucraniana, ao mesmo tempo em que reprimiam as aspirações políticas ucranianas; as políticas para as nacionalidades da URSS eram “nacionalistas na expressão e socialistas na essência”. Então, em 1937, Stálin fechou todo o aparelho cultural ucraniano e o aparelho comunista num só expurgo, e implementou um controle central russificado, servindo-se de seu instrumento sob medida: Nikita Kruchev.

Entrementes, a parte leste da Ucrânia estava sob o tacão da República da Polônia, que tentava impor-se, antes que ou alemães ou russos reaparecessem para dificultar outra vez a ação do mesmo tacão. Implicou avançada organizada dos poloneses, política, de segurança, cultural e demográfica, contra a Galicia ucraniana. O governo polonês expulsou intelectuais e fazendeiros ucranianos, atacou a cultura e a religião deles (tomou inclusive igrejas ortodoxas, transformadas em prédios católicos romanos), marginalizou os ucranianos dentro de sua própria terra, e reprimiu os ativistas ucranianos pró-independência (como Bandera, que passou seis anos – de 1933 a 1939 – na prisão polonesa de Wronki, depois de ter tentado assassinar o ministro polonês do Interior).

Nacionalistas ucranianos, portanto, não conseguiram levar ao poder nem o comunismo nem a democracia burguesa. O comunismo era ferramenta do expansionismo soviético, não de empoderamento de classe; e a democracia polonesa não oferecia qualquer proteção, nem direitos, nem expressão política – muito menos algum estado ucraniano –, à minoria ucraniana.

Muitos nacionalistas ucranianos voltaram-se na direção do fascismo, especificamente na direção do conceito de “nacionalismo integral”, o qual, na ausência de governo nacional aceitável, manifestava-se ele próprio num desejo nacional que ainda havia no espírito dos militantes, não manifestado pelo estado, ou limitado por suas leis, mas como que encarnado num líder carismático e exercido mediante uma organização-partido, cuja legitimidade supera a do estado, e cujo compromisso com a violência a converte, a própria organização-partido, em lei.

Stepan Bandera, já coronel nazista, entre 2 oficiais alemães na IIa. Grande Guerra
O líder, pelo menos para muitos ucranianos de convicção fascista, era Stepan Bandera. A organização, a sua OUN-B (Organização dos Ucranianos Nacionalistas-Bandera).

Esse estado de coisas persiste no Setor-Direita, (Pravy Sektor) grupo sucessor, hoje, da OUN-B, com seus uniformes fascistas, culto ao líder, e braço paramilitar. A ascensão do segundo maior grupamento fascista, o Partido Svoboda, mais parece uma reembalagem estratégica, que oculta os antecedentes fascistas, em busca de maior sucesso eleitoral.

Fato é que, infelizmente para os defensores e apoiadores do atual regime de Kiev, o adjetivo correto para descrever esses dois partidos não é nem “nacionalistas” nem “ultranacionalistas”; é “fascistas”.

Fatalmente, o governo ucraniano voltou-se para o nacionalismo e os heróis fascistas, para tentar forjar uma identidade pós-soviética essencialmente ucraniana, para aquele estado no pós-1991.

Numa repetição de uma tendência no leste da Europa para fazer ressurgirem os nacionalistas fascistas da IIª Guerra Mundial – alguns dos quais colaboraram ativamente com os nazistas – para reforçar o sentimento anti-russo, Bandera foi também adotado como herói nacional ucraniano: em 2010, o presidente Yuschenko condecorou Bandera postumamente (e também ilegalmente, segundo sentença de uma corte de Donetsk), como “Herói da Ucrânia”.

Viktor Yushenko
A verdade inconfortável é que o governo investiu tanto esforço para reinventar e celebrar Bandera como herói nacional, que o epíteto “banderista”, que os pró-Rússia usam para o regime de Kiev, não está muito distanciado da verdade.

Por razões óbvias, a propaganda russa muito trabalhou para caracterizar Bandera como nazista, até condená-lo como colaborador de Hitler em sua guerra contra a URSS e contra o mundo, não como combatente independentista contra a Rússia e o governo soviético – brutal e extremamente impopular (pelo menos entre os ucranianos étnicos) – no leste da Ucrânia.

Na verdade, o fascismo banderista, com seu foco em criar um estado ucraniano puro, só tangencialmente se relacionava às extravagâncias expansionistas hitleristas, centradas numa guerra apocalíptica contra o “judeu-bolchevismo” que, na ideia de Hitler, plantava-se como obstáculo entre a Alemanha e o lugar que lhe caberia por direito como governante de uma Europa racialmente limpa e império global comparável aos EUA e à Grã-Bretanha.

Bandera não foi colaborador nazista importante, mas é verdade é que jamais encontrou espaço real para tentar ser mais. Ativistas independentistas ucranianos de todas as estirpes lançaram-se no nazismo nos anos 1930s, vendo a Alemanha como única força que poderia destruir os dois opressores que eles odiavam: a Polônia, odiada pelos ucranianos do oeste; e a URSS, pelos ucranianos do leste.

Mas os nazistas sempre desconfiaram dos eslavos, aos quais na nova ordem ariana receberiam tarefas degradantes. Os trabalhadores ucranianos levados para trabalhar na Alemanha eram submetidos a condições miseráveis e tratamento subumano, por mais que suassem a serviço do Reich.

As conhecidas formações militares de ucranianos étnicos, “SS Galiciana” e “Nachtigall” e “Roland”, sempre mantidas sob rédea curta pelos alemães, não fizeram muita coisa durante a IIª Guerra Mundial, e só viram ação às veras quando os nazistas ficaram realmente desesperados.

Os nazistas estavam decididos, sobretudo, a manter total controle sobre a Ucrânia, região central para o conceito nazista de uma Lebensraum sem eslavos e zona chave para suas operações militares contra a URSS. Sabiam que o interesse pétreo de Bandera era criar um estado ucraniano que nenhum estrangeiro controlaria, e sabiam de sua tendência à violência física. Os nazistas o mantiveram preso por quase toda a IIª Guerra Mundial e só o libertaram no esforço “pouco-demais-tarde-demais” para deter o Exército Vermelho que já varria a Alemanha da Europa Oriental em 1945.

Pós-guerra, um oficial alemão observou – observação eloquente – que a guerra no leste não foi perdida em Stalingrado; foi perdida “muito antes – em Kiev, quando hasteamos a swastika em vez de hastearmos a bandeira ucraniana!”.

Stepan Bandera foi fascista e terrorista convicto, cuja organização OUN-B lançou campanha de limpeza étnica com massacres de brutalidade inimaginável durante a IIª Guerra Mundial. Thomas Snyder, historiador de Yale, elogiador incansável de praticamente tudo que tenha acontecido na praça Maidan em Kiev, suspende os elogios no momento em que Bandera entra em cena.

Os nazistas mataram dezenas de milhões de anônimos no leste da Europa como parte de uma guerra de conquistas que visava a germanizar a Europa até os Urais; os ucranianos da OUN-B assassinaram dezenas de milhares dos próprios vizinhos, ao mesmo tempo em que tentavam arrancar um estado nacional só deles, do tecido político do leste da Europa.

Como Hitler, Bandera queria purificar a “pátria” dos seus elementos impuros. Diferente de Hitler, Bandera só pode aplicar sua fúria contra seus inimigos – basicamente os poloneses da Galicia – por alguns meses.

5 mil policiais ucranianos desertaram com as armas para unir-se ao grupo de Bandera, quando o poder dos nazistas começava a desmanchar-se na Ucrânia, e garantiram os músculos necessários para a mais famosa ação de Bandera na IIª Guerra Mundial: o massacre de poloneses onde hoje está o que se chama “oeste da Ucrânia”.

Os historiadores concordam em que as forças de Bandera cometeram atrocidades sistemáticas para gerar um reino de terror que espantaria dali os poloneses.

Norman Davies
Norman Davies:

Cidades foram incendiadas. Padres católicos romanos foram empalados ou crucificados. Igrejas foram incendiadas com todos os paroquianos que haviam procurado refúgio ali. Fazendas isoladas foram atacadas por gangues armadas com ancinhos e facas de cozinha. Houve degola. Mulheres grávidas foram mortas à baioneta. Crianças cortadas ao meio. Homens foram emboscados no campo e nunca mais foram vistos.

Timothy Snyder:

Timothy Snyder
Os partisans ucranianos queimaram casas, mataram a tiros ou obrigaram a entrar nas casas os que tentavam fugir, e usaram foices e ancinhos para matar os fugitivos capturados. Houve degola, crucifixão, esquartejamento, corpos com as vísceras expostas foram deixados nas estradas, para aterrorizar poloneses remanescentes e fazê-los fugir.

Várias estimativas falam de algo entre 35 mil e 100 mil poloneses mortos, durante o terror banderista.

Os que defendem Bandera lembram que ele ainda estaria preso na Alemanha, quando aconteceram os massacres, e que não haveria provas de que ele tivesse ordenado os massacres. Mas, dada sua ideologia, o ódio manifesto contra os poloneses e seu papel como líder carismático de sua facção, é pouco provável que seus seguidores tivessem empreendido os massacres sem orientação superior.

Roman Shukhevych
Um dos tenentes de Bandera foi Roman Shukhevych. Em fevereiro de 1945, Shukhevych distribuiu ordem que dizia:

Em vista do sucesso das forças soviéticas, é necessário acelerar a liquidação dos poloneses, que têm de ser totalmente varridos, vilas queimadas (...) só a população polonesa deve ser destruída.

Para incômodo ainda maior de Bandera, Shukhevych era também comandante do batalhão Nachtigall [rouxinol] organizado pela Wehrmacht.

Hoje, a principal preocupação da academia histórica ucraniana nacionalista é desmontar alegações (muito convincentes), de historiadores russos, poloneses e judeus, de que o batalhão Nachtigall foi participante ativo e importante no massacre de judeus de Lviv orquestrado pelo exército alemão depois de chegar, em junho de 1941.

Mas é batalha pode-se dizer, perdida. Bandera classificou os judeus como “inimigos de segunda ordem”, graças ao papel que teriam tido como colaboradores e adjuntos da estratégia russo e polonesa de “dividir e conquistar” contra o nacionalismo ucraniano.  O antissemitismo, de fato, é parte do moderno fascismo ucraniano e sem dúvida contribuiu para a emigração de 60% dos judeus ucranianos – 340 mil pessoas –, desde a independência.

Shukhevych continua a ser um dos heróis dos fascistas ucranianos, até hoje. Mais importante – porque Bandera foi assassinado em Munique pela URSS em 1959 sem deixar herdeiro – ele serve como o ancestral, em linha direta, que levou à formação do principal grupo fascista ucraniano ativo até hoje, o Setor Direita, Pravy Sektor.

Em fevereiro de 2014, Andrew Higgins do New York Times redigiu passagem muito embaraçosa, em que apresenta em alta conta a ocupação de Lviv – cidade galiciana, no coração do fascismo ucraniano, base de Roman Shukhevych e do batalhão Nachtigall, e cidade natal também de Simon Wiesnthal – por forças anti-Yanukovich, em janeiro de 2014:

Yurii Shukhevych
Alguns dos adversários de longo tempo do presidente assumiram linha cada vez mais radical.

Como conselheiro e inspiração, lá estava Yurii Shukhevych, veterano nacionalista cego, que passou 31 anos em prisões e campos de trabalhos forçados soviéticos e cujo pai, Roman, liderou o Exército Insurgente Ucraniano contra os poloneses e, depois, contra os soviéticos.

Mr. Shukhevych, 80 anos, que perdeu a visão no tempo que permaneceu preso no gulag soviético, ajudou a orientar a formação do Setor Direita, organização informal, cujos combatentes ergueram e hoje controlam as barricadas em torno da Praça Independência [depois, Euromaidam], no epicentro do movimento de protesto em Kiev

O papel de Yuriy Shukhevych no moderno fascismo ucraniano não é simplesmente inspirar e fazer relembrar os atos heroicos de seu pai contra a URSS, aos olhos de nacionalistas ucranianos contemporâneos. Ele próprio é figura essencial na emergência da principal formação fascista ucraniana de hoje, o Setor Direita e seus corpos paramilitares.

E os paramilitares do Pravy Sektor – UNA-UNSO – não são absolutamente “organização informal”, espécie de coleção de guerreiros de fim-de-semana, como Mr. Higgins, do NYT, tenta fazer crer que seriam.

A organização UNA-UNSO foi constituída durante os tumultos do início dos anos 1990s, principalmente por ucranianos étnicos veteranos da amarga guerra da URSS no Afeganistão. Desde o início, a UNA-UNSO manifestou gosto por aventuras em solo estrangeiro, mandando destacamentos a Moscou, em 1990, para fazer oposição ao golpe comunista contra Ieltsin, e para a Lituânia, em 1991. Com razões provavelmente bem sólidas, os russos também acusaram milicianos da UNA-UNSO de terem lutado ao lado das forças anti-Rússia, na Geórgia e na Chechênia.

Depois da independência formal da Ucrânia, os milicianos elegeram seu líder Yuriy Shukhevych – filho do comandante banderista Roman Shukhevych – e constituíram uma ala política, que adiante viria a ser o Setor Direita.

Também depois da independência em 1991, foi constituído o Partido Social Nacionalista, declarada e assumidamente fascista – com seu próprio inevitável braço paramilitar, “Patriotas da Ucrânia” – e sob a liderança de Andriy Parubiy.

Andriy Parubiy, um neonazista no Comando das Forças de Segurança do Governo de Kiev
Parubiy deixara o Partido Social Nacionalista em 2004, quando se tornou veículo das aspirações políticas de Oleh Tyahnybok e converteu-se em Partido Svoboda. As motivações de Parubiy não são perfeitamente identificáveis, mas eu diria que ele se tornou uma espécie de cavalo de Troia fascista, dentro do partido da Pátria de Yulya Tymoshenko. De fato, enquanto o comando político de Tymoshenko enfraquecia enquanto ela esteve na cadeia, Parubiy continuou como organizador chave de “voluntários” na Praça Maidan, e emergiu como secretário do Conselho de Segurança Nacional e Defesa da Ucrânia, encarregado das operações “antiterroristas” no leste.

Análises sempre muito otimistas-panglossianas do fascismo ucraniano têm assumido, como ponto a considerar, o resultado que os partidos Pravy Sektor e Svoboda obtiveram nas eleições presidenciais de 2014.

Somados, os dois partidos fascistas não alcançaram 2% dos votos nas eleições presidenciais de 2014. Mas esse, creio, é indicador pouco significativo da forças dos fascistas. Yarosh, do Setor Direita, anunciou que não faria campanha eleitoral ativa (provavelmente, parte do negócio firmado com os apoiadores ocidentais dos fascistas da Praça Maidan, para ajudar Petro Poroshenko a evitar uma disputa de segundo turno contra Yulia Timoshenko). Quanto a Tyahnybok, o partido Svoboda obteve 10% dos votos nas eleições parlamentares de 2012, e parece implausível que esse apoio tenha simplesmente sumido depois do palanque triunfante da troika de Maidan, em que Tyahnybok aparecia ao lado de Klitschko e Yatsenyuk.

Seja como for, os fascistas não consideram o estado, a Constituição e o processo eleitoral como veículos para as aspirações nacionais ucranianas. Esse é o papel do líder, do partido e dos paramilitares. Aos fascistas, o que interessa é a influência que tenham nos assuntos da nação; e, na Ucrânia, essa influência deles é significativa.

Quando o leste da Ucrânia levantou-se, o atual governo de Kiev, enfrentando reconhecidos problemas de ilegitimidade, incompetência e penúria, teve imensas dificuldades para reunir uma nação ucraniana multiétnica. É conclusão praticamente indiscutível que paramilitares fascistas serão chamados para suplementar ou, até, para substituir, as já desgastadas forças em campo, do regime.

Dmytro Yarosh, lider do "Pravy Sektor" e comandante do
Batalhão Donbass (esquadrão da morte sob as expensas do
Governo de Kiev e dos EUA)
Numa espectral – mas, talvez, sim, previsível – recapitulação da colaboração militar oportunista entre a OUN de Bandera e aWehrmacht, o líder do Setor Direita, Dmytro Yarosh, organizou o “Batalhão Donbass”, para ajudar as operações do governo ucraniano no leste. Líderes e escalões inferiores do Setor Direita também aparentemente aumentaram, se não constituíram completamente, o Batalhão Dniepr, financiado por oligarcas – e atualmente um das poucas formações militares que opera no leste e que é brutal e violentamente leal ao governo de Kiev.

Ainda que se possa dizer que a Rússia está incitando e apoiando a resistência, o ressentimento local contra Kiev e suas táticas de violência extrema são inegavelmente presentes e parecem crescentes, e talvez com ele a necessidade de mais homens e armas fascistas para subjugar o leste insubordinado.

O cenário europeu otimista prevê que os problemas com fascistas na Ucrânia (até aqui praticamente nem reconhecidos) desfaçam-se, à medida que avance a integração europeia, e a prosperidade decorrente opere como fator de moderação, e aconteça a Ucrânia floresça como outra Polônia: politicamente estável, unida, democrática e confiavelmente anti-Rússia.

Mas a feia verdade é que a Polônia teve suas questões de identidade nacional resolvidas por Hitler, Stálin e pelo Holocausto, que extirparam todas as complicadas questões de nacionalidades criadas por suas populações de alemães, de ucranianos e de judeus. Antes da IIª Guerra Mundial, um terço da população da Polônia eram “minorias”. Hoje, a Polônia é 96% “polonesa”.

A Ucrânia, por sua vez, carrega um legado de divisões graças à administração pela URSS no leste da Ucrânia antes da IIª Guerra Mundial, e a dominação pela elite de Kiev durante o período soviético. 18% dos ucranianos são russos étnicos; mas 30% da população é falante de russo como primeira língua. Nas oblasts [províncias] do leste que atualmente dá combate a Kiev, a porcentagem de falantes de russo varia de 72% (Dnipropetrovsk) a 93% (Donetsk). Na Crimeia, já reintegrada à Federação Russa, essa porcentagem chega a 97%.

Ucrânia - mapa étnico-linguístico
A menos que o regime de Kiev sem o ter desejado ou planejado resolva o problema escalando a crise ao ponto de a Rússia incorporar as províncias do leste e remover os russo-ucranianos da equação nacional, o futuro mais plausível para a Ucrânia é fracasso, polarização, pobreza, violência – e sucesso político dos fascistas, com identidade de russos étnicos e linguísticos convertida em significante de sempre crescentes ameaças ao estado ucraniano.

Mas, ao avaliar as possibilidades do fascismo na Europa, é erro supor que os fascistas estejam combatendo a última guerra – para completar a des-bolchevização e a des-russificação do leste da Europa que Hitler só pôde começar.

O comunismo não é a única luz que já fraqueja.

Os fascistas ucranianos adoram ver a Rússia a martelar contra a OTAN, mas detestam ver União Europeia supranacional a acertar os ponteiros com a Rússia.

Nisso, não estão sozinhos. O fascismo – e um sentimento anti-União Europeia – invade também partes da Europa que jamais conheceram a ira de Stálin. Nas mais recentes eleições para o Parlamento Europeu, os “eurocéticos” e ultranacionalistas xenofóbicos ganharam muitos votos, liderados por Marine Le Pen, cujo Front National obteve 25% dos votos franceses naquele Parlamento.

Thomas Piketty
Muito disso tudo tem a ver com a trilha equivocada que o capitalismo neoliberal globalizado seguiu ao longo da última década. Já que agora, somos todos Pikettyistas... parece que dentre os principais resultados obtidos pelo neoliberalismo lá estão a desigualdade de renda e grande número de oligarcas.

É anátema para os liberais democratas, mas já tristemente evidente, que o fascismo prospera, largamente como resultado da percepção crescente de que o neoliberalismo e a globalização não estão conseguindo entregar justiça e igualdade de bens econômicos e sociais às maiorias.

A democracia já está sendo vista como brinquedo preferencial dos oligarcas, que manipulam o sistema atual para proteger e expandir a riqueza e o poder DELES; constituições liberais, com suas garantias aos direitos das minorias, parecem receitas para gerar impotência nacional. Mercados livres transnacionais em bens e capitais alimentam a austeridade local, o desemprego local e a miséria local. Governos democráticos parecem obedecer ao manual dos livres mercados, só para se verem mergulhados em problemas que não conseguem gerir, e rendem-se entregando a própria soberania a grupos de euro-financistas.

O fascismo, com a exaltação que promove do particular, do emocional e do des-democrático, oferece o núcleo ideológico e político duro necessário para contra-arrestar aquelas outras forças externas.

O fascismo já se converteu em elemento importante da política de oposição: uma força que obstrui a imposição das normas da globalização, e uma ideologia que justifica protegerem-se interesses locais contra as demandas da democracia liberal, do capital transnacional e dos direitos de propriedade e das minorias.

Talvez se trate de neoliberalismo, não de fascismo. E talvez o neoliberalismo esteja passando por crise de legitimidade e aceitação.

Assim sendo, não passam de delírio e pensamento delirante-desejante as ideias de que o fascismo possa ser tratado como criação delirante do século 20, e de que o desafio do fascismo contra a ordem neoliberal possa ser ignorado.

Ainda que a União Europeia cresça e floresça, continuará a enfrentar grandes dificuldades para superar a percepção de que só garante seus benefícios a um subconjunto bem limitado de países, empresas e indivíduos, à custa dos demais, muitos.

No leste da Europa, acrescente à mistura incendiária a percepção de que a União Europeia, aquele bastião dos ideais liberais democráticos e do livre mercado, tem muito pouca vontade, nem tem, sequer, qualquer interesse, em se opor à Rússia.

Esse sentimento não apenas espalhará movimentos progressistas benignos como os “Verdes” e os “Occupy”, que combinam (i) compromisso com a democracia e com direitos humanos e individuais, com (ii) bem merecida reputação por falta de coerência interna, grupelhismo, muitas divisões internas, impotência política e falta de disposição para o confronto.

Para muita gente, o ressentimento inevitavelmente tomará o rumo do nacionalismo e da percepção de que a oposição fascista, de desafio militante, sem programa ou compromisso, e irracional, racialista, des-democrática e antidemocrática exclusionária e brutal, é o melhor instrumento para alcançar alguma (qualquer) identidade local e agenciar poder – e em grandeza continental: maior, mais perigosa, menos aberta ao diálogo civilizado.

Temo que o fascismo não seja apenas parte do passado da Europa: é parte também do futuro da Europa.



[*] Peter Lee é jornalista norte americano de origem chinesa que escreve sobre assuntos dos países do sul e leste da Ásia e a intersecção de negócios entre essa região e os EUA. Além de articulista de várias publicações anima o blog China Matters.

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