terça-feira, 17 de junho de 2014

Obama tergiversa sobre a odisseia iraquiana

16/6/2014, [*] M K Bhadrakumar, Asia Times Online
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

O que se desdobra hoje no Iraque é a culminação do que Paul Bremer, pau-mandado escolhido a dedo pelo presidente George W Bush (Paul Bremer presidiu o Governo Provisório de Coalizão em Bagdá, de 2003-2004), perpetrou contra o povo iraquiano, quando desenvolveu com chicana e implementou com deliberação a atual Constituição, que é baseada num sistema político que representa confissões religiosas, com o objetivo de matar o nacionalismo iraquiano.

Dia 28/6/2008, Bremer disse em seu discurso de despedida, quando transferiu formalmente ao governo provisório iraquiano a soberania já limitada do Iraque: “Uma parte do meu coração permanecerá para sempre aqui, nessa bela terra entre dois rios”. De fato, estava dizendo: uma parte dos EUA.


Paul Bremer (de terno) no Iraque
Ao final de uma semana de críticas ferozes contra suas políticas para o Oriente Médio, o presidente dos EUA Barack Obama rompeu o silêncio, na 6ª-feira passada (13/6/2014), com declaração formal na Casa Branca em Washington, DC, sobre os desenvolvimentos dramáticos no norte do Iraque que resultaram na queda de Mosul e outras cidades em mãos do Estado Islâmico do Iraque e Levante (ing. ISIL), no início daquela semana.

A melhor parte da declaração foi que Obama não repetiu seu refrão preferido, “todas as opções estão sobre a mesa”, no caso da situação de crise no Iraque.

Uma opção pelo menos está excluída, pelo menos agora: “coturnos em solo”. Obama disse categoricamente que não mandará tropas de combate ao Iraque. Disse claramente que essa não é guerra dos EUA. Por outro lado, reconheceu que as forças armadas do Iraque precisam de apoio e disse que os EUA planejam oferecer assistência.

Mas é pouca coisa e pouco consola. A declaração de Obama veio carregada de ambiguidades, que obrigam a acrescentar um ponto de interrogação nas intenções dos EUA...

Obama falou de “ações seletivas por nossos militares”, que andariam mãos-nas-mãos com um “desafiador esforço internacional para tentar reconstruir” o Iraque. Em suma, uma estratégia de engajamento de longo prazo dos militares dos EUA, sim, pode estar escrita nas estrelas...

Quando começará a intervenção? Obama esclareceu: “Demorará vários dias” – depois de afirmar que “mantemos bons olhos na situação lá... [e] reunimos toda a inteligência necessária”, de tal modo que as operações serão “focadas, de precisão e terão efeito”.

Washington estaria em consultas com outros países e, essa semana, Obama esperava ter “melhor noção” de como eles poderiam “apoiar um esforço [internacional]”. E disse também que “esse é problema regional e será problema de longo prazo.” Em outras palavras, um princípio cardinal da chamada Doutrina Obama continua ativo aí: os EUA não intervirão como atirador-solitário; é indispensável uma coalizão de vontades.

Barack Obama em discurso sobre o Iraque
A Primavera Iraquiana

Obama isolou o ISIL como único ator que ameaça o Iraque e “eventualmente” também ameaça interesses norte-americanos. Mas é difícil crer que, com toda a estrutura de inteligência que tem sob seu comando, Obama não saiba o que praticamente todo o planeta já sabe hoje, quero dizer: que há muitos peixes no aquário de Mosul, e que o ISIL é apenas um daqueles peixes.

O ponto é que antigas facções Ba'athistas, oficiais de exército que serviram sob Saddam Hussein, grupos sunitas tribais sectários insatisfeitos e outros estão convergindo politicamente já há algum tempo, e estão sendo ajudados por grupos Takfiri como o ISIL e o Ansar al-Sunna, que contam com combatentes bem treinados.

Testemunhas oculares em Mosul falaram de “combatentes estrangeiros” que teriam comandado o assalto inicial, logo substituídos por milícias iraquianas. Bastaria que Obama corresse os olhos pela mídia impressa, para ter visão melhor do que realmente aconteceu. O primeiro-ministro Nouri al-Maliki não estava muito longe da verdade quando disse que houve “dissimulação, engodo”.

O ex-vice-presidente do Iraque, Tariq al-Hashimi, que vive exilado na Turquia e no Qatar, chegou a saudar a queda de Mosul como a “Primavera Iraquiana”. Bem evidentemente, o golpe em Mosul contou também com poderosos apoiadores estrangeiros; é perfeitamente possível que sejam os mesmos países que financiaram, ajudaram e apostaram também no conflito sírio.

Tariq al-Hashimi
Será a ironia mãe de todas as ironias, se Obama convidar agora esses mesmos estados regionais para se unirem no “desafiador esforço internacional” para estabilizar o Iraque e tentar reconstruir o país.

O item mais intrigante de toda a declaração é que Obama só vê o ISIL em suas lamentações. É muito, muito intrigante. Porque, caso alguma intervenção no Iraque comece nos próximos dias, seja como for, o “item” ISIL pode vir a ser o álibi perfeito para, a qualquer momento, estender a operação para dentro da Síria.

Uma operação militar dos EUA em território sunita no norte do Iraque quase com certeza implicará interromper todos os elos de comunicação do Irã com a Síria.

Significativamente, Obama disse em sua declaração, que o ISIL “pode representar eventualmente uma ameaça também a interesses norte-americanos”; que houve um respingo sobre o Iraque, vindo da Síria; e que o ISIL é “parte da razão” pela qual os EUA permanecem engajados com a oposição síria.

Em segundo, Obama referiu-se insistentemente a um fracasso da liderança em Bagdá, chamando a atenção para o crescimento do sectarismo no Iraque como fator subjacente de instabilidade. Não há dúvidas de que acerta ao dizer que “na ausência de acomodação entre as várias facções dentro do Iraque, nenhuma ação militar pelos EUA ou por qualquer nação de fora, jamais resolverá esses problemas no longo prazo, e não nos dará o tipo de estabilidade de que precisamos”.

Tudo isso posto, só ficou faltando dizer que a besta de mil cabeças do sectarismo no Iraque foi criada exclusivamente pelos EUA – como o Império Britânico promoveu as animosidades indu-muçulmanos no subcontinente indiano, numa estratégia de dividir-e-governar –  e como antítese do pluralismo e da diversidade da sociedade iraquiana. E os EUA fizeram o que fizeram, com o objetivo de erradicar o nacionalismo iraquiano da era Saddam, muito temido pelas forças de ocupação.

Claro, o melhor seria que houvesse modo para uma genuína reconciliação no Iraque, se se pudesse libertar o país dos grilhões da atual Constituição que repousa sobre bases confessionais (e, sim, é mais uma herança da ocupação norte-americana) e declarar o país um verdadeiro estado secular.

Mas, infelizmente, é baixíssima a probabilidade de isso acontecer, porque o processo político sectário hoje está muito aprofundado e a polarização sectária e étnica está muito exacerbada – não só em termos da oposição sunitas-xiitas, mas também em termos da identidade curda. E tudo isso é resultado das políticas dos EUA, desde a Guerra do Iraque, em 1991.

Os iraquianos podem talvez encontrar eventualmente algum grau de equilíbrio político na sua política confessional – como aconteceu no Líbano – mas o perigo hoje mora noutro lugar. A dura realidade é que o golpe em Mosul escancara as portas para a intervenção externa – não só em termos de projeção de poder pelas potências regionais, mas também em termos de interferência pelos EUA, por potências ocidentais e até mesmo Israel.

Presença operacional da ISIS/ISIL no Iraque
(clique na imagem para aumentar)
Interesses Permanentes

Mosul é quebra-cabeça extremamente difícil de montar, que a história deixou como herança, naquela região. Para a Turquia, Mosul é portão de entrada para Diyarbakir, e perder Mosul implica os “negócios inacabados” da desintegração do Império Otamano e a complicada questão curda.

Não é por acaso que dúzias de turcos tenham sido tomados como reféns, inclusive o cônsul-geral turco, depois dos levantes da semana passada em Mosul.

Curiosamente, tirando vantagem da queda de Mosul em mãos do ISIL, a guerrilha curda Peshmerga, sob liderança de Massoud Barzani, ocupou Kirkuk (onde estão os maiores campos de petróleo do norte do Iraque.) É absolutamente fora de questão que a Peshmerga venha a desocupar Kirkuk por livre e espontânea vontade.

Tampouco é provável que, em curto prazo, alguma força militar iraquiana seja capaz de desalojar de Kirkuk a Peshmerga – os seus não menos de 250 mil combatentes muito, muito experientes.

Em resumo, o Curdistão, que é a região politicamente mais coesa do Iraque, acaba de pôr a mão num fantástico butim, que promete fazê-lo muito, muito rico. E, convenhamos, não há como negar que o Curdistão também é área de brincar para muitas potências exteriores, a começar por EUA e Turquia. É onde entra a geopolítica.

Dito em termos simples, Obama deixou de lado consciente e atentamente as questões reais que surgiram dos eventos da semana passada no Iraque. A verdade amarga é que o Iraque é nação que se está inexoravelmente desintegrando em miniestados sectários e étnicos.

O que se desdobra hoje no Iraque é a culminação do que Paul Bremer, pau-mandado escolhido a dedo pelo presidente George W Bush (Paul Bremer presidiu o Governo Provisório de Coalizão em Bagdá, de 2003-2004), perpetrou contra o povo iraquiano, desenvolvendo com chicana e implementando com deliberação a atual Constituição, que é baseada num sistema político que representa confissões religiosas, com o objetivo de matar o nacionalismo iraquiano.

Dia 28/6/2008, Bremer disse em seu discurso de despedida, quando transferiu formalmente ao governo provisório iraquiano a soberania já limitada do país: “Uma parte do meu coração permanecerá para sempre aqui, nessa bela terra entre dois rios”. De fato, estava dizendo: uma parte dos EUA!.

A democracia disfuncional do Iraque virtualmente garante o retorno dos EUA ao país. Com certeza os EUA já estão em rota de retorno, apenas cinco anos depois de o povo iraquiano ter conseguido expulsar as forças norte-americanas de ocupação. Mas há os “não sabidos sabidos” na situação em curso, o que explica as ressalvas na declaração de Obama.

Principalmente, a queda de Mosul torna-se mais um ponto de ruptura na rivalidade sauditas-iranianos. E Obama avança sinuosamente, dadas as recentes dificuldades nas relações EUA-Sauditas, e o estado delicado do engajamento Washington-Teerã sobre a questão nuclear.

Mais uma vez, é inimaginável que a Turquia se mantenha inativa num fluxo geopolítico no qual o futuro de Mosul – e a questão curda– estão sendo coreografados outra vez. No século passado, os britânicos foram os árbitros, que os EUA até podem ter substituído hoje; mas os interesses turcos permanecem constantes.

Segundo se lê na imprensa turca, quando o primeiro-ministro Recep Erdogan procurou Obama para falar sobre a situação no Iraque, quem respondeu o telefonema foi o vice-presidente Joe Biden.
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[*] MK Bhadrakumar foi diplomata de carreira do Serviço Exterior da Índia. Prestou serviços na União Soviética, Coreia do Sul, Sri Lanka, Alemanha, Afeganistão, Paquistão, Uzbequistão e Turquia. É especialista em questões do Afeganistão e Paquistão e escreve sobre temas de energia e segurança para várias publicações, dentre as quais The Hindu e Ásia Times Online, Al Jazeera, Counterpunch, Information Clearing House, e muita outras. É o filho mais velho de MK Kumaran (1915–1994), famoso escritor, jornalista, tradutor e militante de Kerala.

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