16/6/2014, [*] M K Bhadrakumar, Asia Times Online
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
O que se desdobra
hoje no Iraque é a culminação do que Paul Bremer, pau-mandado escolhido a dedo
pelo presidente George W Bush (Paul Bremer presidiu o Governo Provisório de
Coalizão em Bagdá, de 2003-2004), perpetrou contra o povo iraquiano, quando
desenvolveu com chicana e implementou com deliberação a atual Constituição, que
é baseada num sistema político que representa confissões religiosas, com o
objetivo de matar o nacionalismo iraquiano.
Dia
28/6/2008, Bremer disse em seu discurso de despedida, quando transferiu
formalmente ao governo provisório iraquiano a soberania já limitada do Iraque:
“Uma parte do meu coração permanecerá para sempre aqui, nessa bela terra entre
dois rios”. De fato, estava dizendo: uma parte dos EUA.
Paul Bremer (de terno) no Iraque |
Ao final de
uma semana de críticas ferozes contra suas políticas para o Oriente Médio, o
presidente dos EUA Barack Obama rompeu o silêncio, na 6ª-feira passada
(13/6/2014), com declaração formal na Casa Branca em Washington, DC, sobre os
desenvolvimentos dramáticos no norte do Iraque que resultaram na queda de Mosul
e outras cidades em mãos do Estado Islâmico do Iraque e Levante (ing. ISIL), no início daquela semana.
A melhor
parte da declaração foi que Obama não repetiu seu refrão preferido, “todas as
opções estão sobre a mesa”, no caso da situação de crise no Iraque.
Uma opção
pelo menos está excluída, pelo menos agora: “coturnos em solo”. Obama disse
categoricamente que não mandará tropas de combate ao Iraque. Disse claramente
que essa não é guerra dos EUA. Por outro lado, reconheceu que as forças armadas
do Iraque precisam de apoio e disse que os EUA planejam oferecer assistência.
Mas é pouca
coisa e pouco consola. A declaração de Obama veio carregada de ambiguidades,
que obrigam a acrescentar um ponto de interrogação nas intenções dos EUA...
Obama falou
de “ações seletivas por nossos militares”, que andariam mãos-nas-mãos com um
“desafiador esforço internacional para tentar reconstruir” o Iraque. Em suma,
uma estratégia de engajamento de longo prazo dos militares dos EUA, sim, pode estar
escrita nas estrelas...
Quando
começará a intervenção? Obama esclareceu: “Demorará vários dias” – depois de
afirmar que “mantemos bons olhos na situação lá... [e] reunimos toda a
inteligência necessária”, de tal modo que as operações serão “focadas, de
precisão e terão efeito”.
Washington
estaria em consultas com outros países e, essa semana, Obama esperava ter
“melhor noção” de como eles poderiam “apoiar um esforço [internacional]”. E
disse também que “esse é problema regional e será problema de longo prazo.” Em
outras palavras, um princípio cardinal da chamada Doutrina Obama continua ativo
aí: os EUA não intervirão como atirador-solitário; é indispensável uma coalizão
de vontades.
Barack Obama em discurso sobre o Iraque |
A Primavera
Iraquiana
Obama isolou
o ISIL como único ator que ameaça o Iraque e
“eventualmente” também ameaça interesses norte-americanos. Mas é difícil crer
que, com toda a estrutura de inteligência que tem sob seu comando, Obama não
saiba o que praticamente todo o planeta já sabe hoje, quero dizer: que há
muitos peixes no aquário de Mosul, e que o ISIL é apenas um daqueles peixes.
O ponto é
que antigas facções Ba'athistas, oficiais de exército que serviram sob Saddam
Hussein, grupos sunitas tribais sectários insatisfeitos e outros estão
convergindo politicamente já há algum tempo, e estão sendo ajudados por grupos Takfiri como o ISIL e o Ansar al-Sunna, que contam com
combatentes bem treinados.
Testemunhas
oculares em Mosul falaram de “combatentes estrangeiros” que teriam comandado o
assalto inicial, logo substituídos por milícias iraquianas. Bastaria que Obama
corresse os olhos pela mídia impressa, para ter visão melhor do que realmente
aconteceu. O primeiro-ministro Nouri al-Maliki não estava muito longe da
verdade quando disse que houve “dissimulação, engodo”.
O
ex-vice-presidente do Iraque, Tariq al-Hashimi, que vive exilado na Turquia e
no Qatar, chegou a saudar a queda de Mosul como a “Primavera Iraquiana”. Bem
evidentemente, o golpe em Mosul contou também com poderosos apoiadores
estrangeiros; é perfeitamente possível que sejam os mesmos países que
financiaram, ajudaram e apostaram também no conflito sírio.
Tariq al-Hashimi |
Será a
ironia mãe de todas as ironias, se Obama convidar agora esses mesmos estados
regionais para se unirem no “desafiador esforço internacional” para estabilizar
o Iraque e tentar reconstruir o país.
O item mais
intrigante de toda a declaração é que Obama só vê o ISIL em suas lamentações. É muito, muito
intrigante. Porque, caso alguma intervenção no Iraque comece nos próximos dias,
seja como for, o “item” ISIL pode
vir a ser o álibi perfeito para, a qualquer momento, estender a operação para
dentro da Síria.
Uma operação
militar dos EUA em território sunita no norte do Iraque quase com certeza
implicará interromper todos os elos de comunicação do Irã com a Síria.
Significativamente,
Obama disse em sua declaração, que o ISIL “pode representar eventualmente uma ameaça
também a interesses norte-americanos”; que houve um respingo sobre o Iraque,
vindo da Síria; e que o ISIL é “parte da razão” pela qual os EUA
permanecem engajados com a oposição síria.
Em segundo,
Obama referiu-se insistentemente a um fracasso da liderança em Bagdá, chamando
a atenção para o crescimento do sectarismo no Iraque como fator subjacente de
instabilidade. Não há dúvidas de que acerta ao dizer que “na ausência de
acomodação entre as várias facções dentro do Iraque, nenhuma ação militar pelos
EUA ou por qualquer nação de fora, jamais resolverá esses problemas no longo
prazo, e não nos dará o tipo de estabilidade de que precisamos”.
Tudo isso
posto, só ficou faltando dizer que a besta de mil cabeças do sectarismo no
Iraque foi criada exclusivamente pelos EUA – como o Império Britânico promoveu
as animosidades indu-muçulmanos no subcontinente indiano, numa estratégia de
dividir-e-governar – e como antítese do
pluralismo e da diversidade da sociedade iraquiana. E os EUA fizeram o que
fizeram, com o objetivo de erradicar o nacionalismo iraquiano da era Saddam,
muito temido pelas forças de ocupação.
Claro, o
melhor seria que houvesse modo para uma genuína reconciliação no Iraque, se se
pudesse libertar o país dos grilhões da atual Constituição que repousa sobre
bases confessionais (e, sim, é mais uma herança da ocupação norte-americana) e
declarar o país um verdadeiro estado secular.
Mas,
infelizmente, é baixíssima a probabilidade de isso acontecer, porque o processo
político sectário hoje está muito aprofundado e a polarização sectária e étnica
está muito exacerbada – não só em termos da oposição sunitas-xiitas, mas também
em termos da identidade curda. E tudo isso é
resultado das políticas dos EUA, desde a Guerra do Iraque, em 1991.
Os
iraquianos podem talvez encontrar eventualmente algum grau de equilíbrio
político na sua política confessional – como aconteceu no Líbano – mas o perigo
hoje mora noutro lugar. A dura realidade é que o golpe em Mosul escancara as
portas para a intervenção externa – não só em termos de projeção de poder pelas
potências regionais, mas também em termos de interferência pelos EUA, por
potências ocidentais e até mesmo Israel.
Presença operacional da ISIS/ISIL no Iraque (clique na imagem para aumentar) |
Interesses
Permanentes
Mosul é
quebra-cabeça extremamente difícil de montar, que a história deixou como
herança, naquela região. Para a Turquia, Mosul é portão de entrada para
Diyarbakir, e perder Mosul implica os “negócios inacabados” da desintegração do
Império Otamano e a complicada questão curda.
Não é por
acaso que dúzias de turcos tenham sido tomados como reféns, inclusive o
cônsul-geral turco, depois dos levantes da semana passada em Mosul.
Curiosamente,
tirando vantagem da queda de Mosul em mãos do
ISIL, a guerrilha curda Peshmerga,
sob liderança de Massoud Barzani, ocupou Kirkuk (onde estão os maiores campos
de petróleo do norte do Iraque.) É absolutamente fora de questão que a Peshmerga venha a desocupar Kirkuk por livre e
espontânea vontade.
Tampouco é
provável que, em curto prazo, alguma força militar iraquiana seja capaz de
desalojar de Kirkuk a Peshmerga – os seus não menos de 250 mil
combatentes muito, muito experientes.
Em resumo, o
Curdistão, que é a região politicamente mais coesa do Iraque, acaba de pôr a
mão num fantástico butim, que promete fazê-lo muito, muito rico. E,
convenhamos, não há como negar que o Curdistão também é área de brincar para
muitas potências exteriores, a começar por EUA e Turquia. É onde entra a
geopolítica.
Dito em
termos simples, Obama deixou de lado consciente e atentamente as questões reais
que surgiram dos eventos da semana passada no Iraque. A verdade amarga é que o
Iraque é nação que se está inexoravelmente desintegrando em miniestados
sectários e étnicos.
O que se
desdobra hoje no Iraque é a culminação do que Paul Bremer, pau-mandado
escolhido a dedo pelo presidente George W Bush (Paul Bremer presidiu o Governo
Provisório de Coalizão em Bagdá, de 2003-2004), perpetrou contra o povo
iraquiano, desenvolvendo com chicana e implementando com deliberação a atual
Constituição, que é baseada num sistema político que representa confissões
religiosas, com o objetivo de matar o nacionalismo iraquiano.
Dia
28/6/2008, Bremer disse em seu discurso de despedida, quando transferiu
formalmente ao governo provisório iraquiano a soberania já limitada do país:
“Uma parte do meu coração permanecerá para sempre aqui, nessa bela terra entre
dois rios”. De fato, estava dizendo: uma parte dos EUA!.
A democracia
disfuncional do Iraque virtualmente garante o retorno dos EUA ao país. Com
certeza os EUA já estão em rota de retorno, apenas cinco anos depois de o povo
iraquiano ter conseguido expulsar as forças norte-americanas de ocupação. Mas
há os “não sabidos sabidos” na situação em curso, o que explica as ressalvas na
declaração de Obama.
Principalmente,
a queda de Mosul torna-se mais um ponto de ruptura na rivalidade
sauditas-iranianos. E Obama avança sinuosamente, dadas as recentes dificuldades
nas relações EUA-Sauditas, e o estado delicado do engajamento Washington-Teerã
sobre a questão nuclear.
Mais uma
vez, é inimaginável que a Turquia se mantenha inativa num fluxo geopolítico no
qual o futuro de Mosul – e a questão curda– estão sendo coreografados outra
vez. No século passado, os britânicos foram os árbitros, que os EUA até podem
ter substituído hoje; mas os interesses turcos permanecem constantes.
Segundo se
lê na imprensa turca, quando o primeiro-ministro Recep Erdogan procurou Obama
para falar sobre a situação no Iraque, quem respondeu o telefonema foi o
vice-presidente Joe Biden.
___________________
[*] MK Bhadrakumar foi diplomata de carreira
do Serviço Exterior da Índia. Prestou serviços na União Soviética, Coreia do
Sul, Sri Lanka, Alemanha, Afeganistão, Paquistão, Uzbequistão e Turquia. É
especialista em questões do Afeganistão e Paquistão e escreve sobre temas de
energia e segurança para várias publicações, dentre as quais The Hindu e Ásia Times Online, Al
Jazeera, Counterpunch, Information Clearing House, e muita outras. É o filho
mais velho de MK Kumaran (1915–1994), famoso escritor, jornalista, tradutor e
militante de Kerala.
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