quarta-feira, 18 de junho de 2014

“A noite do Iraque é longa”

17/6/2014, [*] Vijay Prashad (de Beirute), Counterpunch [1]
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

“A noite do Iraque é longa
A aurora só raia para os assassinados,
rezando meia reza e sem terminar de dizer um bom-dia a alguém”
Mahmoud Darwish, Athar al-Farasha. [2]

A noite do Iraque - Bagdá
Norte do Iraque, entre a região dos curdos e Bagdá, convulsionado antes da blitzkrieg de três formações – o Estado Islâmico do Iraque e Síria Expandida (ISIS), o Exército Islâmico Iraquiano (comandado por ex-ba’athistas) e elementos do ex-Conselho Shura Mujahedin. Como os mongóis, o ISIS – a força principal – corre livremente pela paisagem. Não demorou muito para que soldados do exército iraquiano despissem os uniformes e se unissem às caravanas de iraquianos que fugiam do norte e do sul, deixando para trás cidades do rio Tigre, Mosul e Tikrit, e também outras, do oeste, como Tal Afar – pela estrada que liga o Iraque à Síria. Os soldados iraquianos capturados pelo ISIS e seus confederados passaram horas de horror.

Os soldados do ISIS os dividiram em grupos, por seitas. Ante suas próprias câmeras de vídeo, os soldados do ISIS massacraram os soldados xiitas – 1.700, conforme relato deles mesmos – e, na sequência, distribuíram os vídeos on-line. Soldados sunitas foram obrigados, sob ameaça de morte, a declarar fidelidade eterna ao Estado Islâmico. A comissária para Direitos Humanos da ONU, Navi Pillay, já disse que aquelas mortes são crimes de guerra.

O ISIS é a força que lidera essa nova aventura, mas não está só. Com ele está o Exército Islâmico Iraquiano, liderado pelo ex-vice-presidente de Saddam Hussein, Izzat al-Dori Ibrahim; e a Associação Ulema Muçulmana [orig. Muslim Ulema Association]. O que liga essas três forças – extremistas da al-Qaeda, ba’athistas e militares iraquianos que debandaram – é o desespero ante o sectarismo do primeiro-ministro iraquiano Nouri al-Maliki e os fracassos do estado iraquiano que não se conseguiu implantar nas cidades predominantemente sunitas do Rio Tigre.

Muqtada al-Sadr

O Iraque é governado por lobos, sedentos de sangue, almas sedentas só de riquezas, que deixam a nação afundada em sofrimento, em medo, em fossas, nas noites escuras iluminadas só pela lua ou por uma vela, num pântano de assassinatos causados por diferenças ou por qualquer ridículo desentendimento.

Partiu para o Irã, farto da política e da violência em sua terra. Esse desespero é que deu ao ISIS a oportunidade para construir suas bases no norte do Iraque.

O ex-primeiro-ministro britânico Tony Blair disse que o crescimento do ISIS nada teria a ver com a Guerra do Iraque de 2003; que seria resultado da inação do ocidente na Síria.

Mas o ISIS nasceu em 2004, primeiro como al-Qaeda-no-Iraque, liderado pelo jordaniano sanguinário Abu Musab al-Zarqawi; dois anos depois, foi recriado como Estado Islâmico do Iraque. O lento crescimento nas pequenas cidades do norte do Iraque, entre ex-militares iraquianos e experientes e duros combatentes ba’athistas ajudou o Estado Islâmico a crescer, apesar de os EUA terem destruído as cidades de Fallujah e Ramadi, e do Despertar Sunita, movimento de 2005. Com o interesse pelo Despertar Sunita já sumindo em Washington e Bagdá, seus militantes uniram-se ao Estado Islâmico. São os veteranos da insurgência contra a ocupação do Iraque por EUA e Grã-Bretanha. Absolutamente nada têm a ver com a Síria.

Abu Bakr al-Baghdadi
Quando a guerra começou na Síria em 2011, foi o Estado Islâmico no Iraque, sob a liderança dinâmica de Abu Bakr al-Baghdadi – como Radwan Mortada de al-Akhbar descobriu – que ajudou a montar a afiliada da al-Qaeda na Síria, Frente al-Nusra. Ao longo de 2012 e 2013, o ISIS e a Frente al-Nusra começaram a desentender-se, com a segunda entendendo que teria autoridade sobre a Síria e querendo que os sírios fizessem a parte principal dos combates naquele país. O Estado Islâmico expandiu o próprio nome para Estado Islâmico do Iraque e Síria Expandida [também dito “o Levante” (NTs)], aumentando seu contingente com combatentes importados de todo o mundo. No início de 2014, já havia cerca de 100 mil combatentes interessados em defender as cores do ISIS. Muitos não são jihadistas, como descobri, mas veteranos endurecidos do Despertar Sunita e seu tipo de gente. O ISIS ofereceu o veículo perfeito para suas frustrações.

Apesar dos desentendimentos com a Frente al-Nusra, o ISIS manteve o controle das cidades de Raqqa e Deir ex-Zor no norte da Síria, tomadas desde meados de 2013. Assaltos a campos de petróleo no leste da Síria e a venda de antiguidades ajudaram o ISIS a aumentar o fluxo de suas rendas, as quais, antes, dependiam de impostos cobrado no norte do Iraque e de doações privadas de xeiques árabes do Golfo. Até semana passada, havia cerca de 500 milhões de dólares nos cofres do ISIS. O saque de Mosul rendeu-lhes US$ 1,5 bilhões, como mostrou Martin Chulov, do The Guardian, e a tomada da refinaria de petróleo de Baiji oferece potencial para mais recursos.

Dado que as tropas do Iraque ofereceram pequena resistência, o ISIS e aliados capturaram equipamento militar em excelentes condições, grande parte do qual oferecido pelos EUA aos iraquianos, para combaterem contra... o ISIS. Essas armas serão agora usadas na Síria e no Iraque, para promover a agenda do ISIS (criar um estado islâmico). Umas das primeiras coisas que o grupo fez quando tomou Mosul foi destruir os postos de fronteira entre Síria e Iraque, como gesto de propaganda. Sua visão sonhada de um cinturão que ligue Trípoli (do Líbano) às fronteiras do Irã já é quase realidade.

Nos arredores de Mosul, um soldado do ISIS ri, sentado ante um muro em que se lê :
“O exército iraquiano é um garfo nos Olhos do Terrorismo”

O rápido avanço atraiu resposta combinada e coordenada das duas Forças Aéreas, síria e iraquiana. Helicópteros iraquianos atacaram o cemitério onde está sepultado Saddam Hussein em al-Auja, perto de Tikrit. Foi recado de Bagdá aos ba’athistas, e planejado para incendiar, muito mais do que para conter. É muito perigoso. O nacionalismo iraquiano morreu asfixiado nos cárceres do [partido] Ba’ath – e já não é alguma espécie de base à qual o governo de Nouri al-Maliki possa recorrer. Ele está confiando na moeda do sectarismo.

A coordenação entre os exércitos da Síria, Iraque e Iran – com a Turquia nas coxias – já está montada. Mas é coordenação que sempre cheirará a sectarismo, a menos que a Turquia tome parte nas operações, o que pode acontecer se vir que a fragmentação esteja levando à unidade entre os Curdistões sírio e iraquiano. Esse Curdistão unificado, terra dos curdos, seria desafio direto à Turquia. Melhor matar essas possibilidades quando ainda em botão.

Falah Alwan
Clamores dos sindicatos iraquianos, de que o povo combaterá contra o ISIS, numa plataforma nacionalista, como se ouviram, de Falah Alwan, da Federação dos Conselhos de Operários e Sindicatos do Iraque, não serão ouvidos. Poucos podem avaliar o que Alwan diz quando diz que “exigimos clara e diretamente o fim do sectarismo” – objetivo muito nobre, mas inaudível ante as barulhentas armas sectárias do ISIS. E entrega o povo curdo à guerrilha peshmerga curda e à Unidade de Defesa Popular (YPG) curda; e os xiitas a al-Maliki e aos milicianos seus preferidos.

Os arsenais-cofres de sectarismos, que a campanha “Choque e Pavor” dos EUA abriu em 2003, fornecem hoje a moeda que mais circula no Iraque e na Síria – uma tragédia de descomunais proporções.

O ISIS avançou pelo Tigre rumo a Bagdá, mas foi detido perto de Samarra. Não por militares iraquianos que fizessem um muro ali – em foto feita nos arredores de Mosul, um soldado do ISIS ri, sentado frente a um muro em que se lê “O exército iraquiano é um garfo nos Olhos do Terrorismo” – Aquele exército desapareceu. Dele, já não se vê nem traço.

Em lugar daquele exército, só se veem hoje milícias xiitas, como Asa’ib Ahl al-Haq (AAH), dissidência do Exército Mahdi, muito prestigiada por al-Maliki. Seu líder, Qayis Khazali, foi expulso do Exército por al-Sadr, por ser imprevisível e incontrolável. Seu grupo permaneceu ativo no Iraque, acusado de ludibriar as forças de segurança e de reunir os combatentes mais cruéis ativos na região do santuário de Sayida Zainab em Damasco, Síria. Os soldados do Hezbollah reclamam que os combatentes do AAH têm de receber treinamento à parte, para se acalmarem e aprenderem a se autocontrolar. O importante clérigo xiita aiatolá Ali Sistani emitiu uma fatwa conclamando “todos os iraquianos fisicamente capazes” a defender o Iraque contra o ISIS. Foi como acionar o detonador do AAH e seus ramos coligados. Ammar al-Hakim, líder do Supremo Conselho Islâmico do Iraque, despiu o traje de clérigo e meteu-se em uniforme de campanha, de soldado. Aquela luta é assim: sectária até o fundo, por dentro e por fora.

Nouri al-Maliki
Antes de partir para o Irã, al-Sadr criticou muito o sectarismo de al-Maliki e o crescimento do poder de grupos como o AAH. Disse que estavam alienando os iraquianos e preparando a mesa para grandes confusões. Agora, está conclamando para que se reforme seu Exército Mahdi, e para uma manifestação de força, marcada para o próximo dia 21 de junho. É pouco provável que seja ouvido em outros grupos, fora dos caixotes sectários para os quais os iraquianos provavelmente se encaminharão.

Não há qualquer base objetiva para o nacionalismo iraquiano, como tampouco há para o nacionalismo sírio. São países fraturados, quebrados pela guerra. Sírios e iraquianos são prisioneiros numa prisão em chamas. Não há saídas fáceis, sem barreiras.

As promessas dos EUA, de que bombardearão o ISIS, do céu, não ajudam nem aliviam em nada. No máximo conseguirão deter o avanço deles, mas não diminuirão o poder deles, que se alastra de partes de Aleppo na Síria, até os arredores de Bagdá no Iraque. E, aqui, quem mais tem a perder é o Irã.

O Irã já mandou grupos de seus Guardas Revolucionários para ajudar a formar uma linha de defesa na província de Diyala, cuja principal cidade Baquba, é o berço onde nasceu o Estado Islâmico do Iraque. É a parte do Iraque onde vivem xiitas e sunitas, e será bom teste para aferir a unidade de todos contra o ISIS e a favor de qualquer coisa que não seja o sectarismo de al-Maliki.

Guardas Revolucionários da República Islâmica do Irã
Al-Sadr, pelo que me disseram, está interessado em criar uma versão iraquiana do Hezbollah, com raízes na comunidade xiita do Líbano, mas com aspirações de ser uma força árabe nacionalista.

A criação dessa força contribuiria, sim, na direção de construir uma plataforma não sectária, a partir da qual combater o ISIS. É ação mais efetiva, que uma campanha de bombardeio.

[*] Vijay Prashad é professor de estudos internacionais no Trinity College. Dentre outros livros, é autor de The Darker Nations: A People's History of the Third World e Arab Spring, Libyan Winter. Publica regularmente em Asia Times Online, Frontline magazine e Counterpunch. É entrevistado regularmente pela TRNN - The Real News Network - sobre Geopolítica e Política internacional.


Notas dos tradutores

[1] Dica de Pepe Escobar, pelo Facebook. 
[2] Orig. “Iraq’s night is long / Dawn breaks only to the murdered, Praying half a prayer and never finishing a greeting to anyone”.[Trad. ao ing. Sinan Antoon. Trad. de trabalho, ao port., sem acesso ao original, só para ajudar a ler].

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