O desdém
para o desdenhável
O desprezo
para o desprezível
6-8/6/2014, [*] Andrew Levine,
Counterpunch
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Governos
mentem – uns aos outros e aos próprios cidadãos. Não é novidade; sempre foi
assim. Não é novidade tampouco que governos tratam com desdém/desprezo os seus
próprios cidadãos.
Tampouco é
novidade que as “democracias” do mundo real têm pouca semelhança com as
democracias que os filósofos políticos imaginam e defendem. Esqueçam a conversa
de governo do, pelo e para o demos, o povo (o que se opõe às elites);
esqueçam cidadãos a deliberar coletivamente sobre o que é melhor para a
entidade política que eles encarnam; esqueçam até sobre procedimentos para
harmonizar preferências populares em escolhas coletivas.
Atualmente,
basta um país realizar eleições competitivas, para ser dito “democrático”.
Sequer se exige que o tal país garanta direitos iguais para todos os seus
cidadãos.
E pode
acontecer de nem eleições competitivas bastarem. Ultimamente, vem sendo
necessário satisfazer mais outra exigência: além de eleições, é indispensável também,
para que um país seja dito “democrático”, que o resultado das eleições seja o
que o “ocidente” – mais precisamente: os EUA – deseja que seja.
Por exemplo:
Israel é contada como democracia – a única no Oriente Médio, como nos dizem – embora Israel negue direitos iguais aos cidadãos israelenses árabes. É uma
democracia Herrenvolk, “democracia para o povo dos senhores” [2],
mas é considerada democracia de bom tamanho. Entrementes, parte da Palestina
ocupada, Gaza, é condenada ao estado de pária, porque ali o Hamás venceu
eleições livres, justas e competitivas.
Israel é estado sem fronteiras |
Onde haja
eleições competitivas, os candidatos fazem a corte aos que votam. Quando a
fazem, tentam não deixar ver o desprezo que sentem pelos eleitores. Mas
campanhas eleitorais não duram para sempre, elas acabam. E, então, tudo volta a
ser como era, e o desprezo/desdém come solto.
Personalidades
no topo, e um pouco abaixo do topo, podem mudar. Mas as políticas em geral
permanecem as mesmas. O desapontamento – de fato, a lástima, o arrependimento –
do eleitor é pois inevitável, produto resultante do que hoje chamamos
“governança democrática”.
Em regimes
“autoritários”, não democráticos, os líderes mudam menos frequentemente.
Paradoxalmente porém, é mais fácil para eles que para seus contrapartes
“democráticos” modificar fundamentalmente suas políticas. Não acontece muito
frequentemente, mas acontece. E vez ou outra acontece muito dramaticamente.
Claro que
nada é congelado no tempo; inevitavelmente, as circunstâncias mudam, e as
políticas acomodam-se. Políticos morrem ou perdem votos ou a simpatia popular e
o poder; e, eventualmente, há derivas generacionais.
Hoje, quando
o capitalismo atormenta todo o planeta, o ritmo das mudanças está mais rápido.
Marx disse, em frase que ganhou fama, que “tudo que é sólido desmancha-se no
ar”. Na sequência, e por gerações de ideólogos pró-capitalismo, tornou-se
obsessão refutar Marx; essa obsessão, aliás, é um dos vários modos pelos quais
aqueles ideólogos sempre fazem papel de bobos. Pois nem esses ideólogos são
suficientemente bobos a ponto de declarar que Marx estivesse errado.
Mas é fato
que cada item do tudo que é sólido e desmancha no ar desmancha-se em ritmo
próprio: tudo que é sólido não se desmancha à mesma taxa. O reino da política,
sobretudo nas modernas democracias, é caso a analisar. Não é imóvel e indesmanchável.
Mas às vezes, parece.
É sempre o mesmo imperialismo |
É
especialmente verdade nos EUA; observem as vastíssimas continuidades,
obscurecidas só por diferenças estilísticas, entre o governo de George W. Bush
e o governo do presidente da “esperança” e da “mudança” que o substituiu na
Casa Branca.
Seria muito
diferente se o povo, realmente, mandasse. Mas a democracia real está
enfraquecida por toda parte. O neoliberalismo é grave inimigo da democracia –
efeito, mas também causa, do declínio da democracia.
O presidente
Obama declarou recentemente em West Point
que acredita no “excepcionalismo dos EUA” com “cada fibra” do ser dele. Sabe-se
lá em que Obama estaria pensando, se é que pensava em alguma coisa, ao dizer
tal frase. Só uma coisa é certa: no que tenha a ver com o declínio da
democracia, a “Terra dos Livres” não é exceção e nada tem de excepcional e/ou
de excepcionalismo.
Exceto
talvez, em matéria de excepcionalismo, só o desprezo/desdém, extremo,
extremista, que o governo dos EUA – o governo Obama – manifesta pelos cidadãos
norte-americanos. Esse, sim, é excepcionalíssimo!
O peso maior
desse desprezo/desdém recai sobre eleitores que os Democratas têm como votos
garantidos, porque supõem que esses eleitores não teriam, mesmo, para onde
fugir.
O trabalho
organizado aparece no topo da lista dos desprezados/desdenhados pelo governo
Obama. Para manter os Republicanos longe dos eleitores, eles dão aos Democratas
serviço de servo da gleba. Dão dinheiro e meios só aos próprios servos e
desperdiçam completamente os próprios recursos em campanhas eleitorais
partidárias. Nada pedem em troca e, claro, nada recebem em troca. A política de
Obama para o trabalho foi completamente esquecida, desprezada, desdenhada.
O
desdém/desprezo que afro-norte-americanos e pessoas de outras cores de pele
sofreram aparece quase sempre sob a variedade benigna celebrada pelo falecido
senador Daniel Patrick Moynihan. A principal exceção é a paixão que o governo
Obama tem manifestado pela deportação de trabalhadores “sem documentos”, ponto
que voltarei a comentar.
EUA- Estado de Indiana - 1930 |
Só eleitores
cujos votos não possam ser considerados completamente garantidos são alvo de
desdém-desprezo um pouco menor. E se têm dinheiro e o dinheiro deles está em
jogo, nesse caso, tanto melhor – para eles mesmos.
Assim se
explica o fim, afinal, do comportamento de “não pergunte, não conte” e o apoio,
do jeito que se viu, que o governo Obama deu ao casamento entre pessoas de
mesmo sexo.
Nesses dois
casos, também foi importante que as pesquisas mostrassem grande apoio àquelas
duas medidas. Quando uma maioria razoavelmente grande quer que Obama faça a
coisa certa, às vezes acontece de ele fazer.
Obama não é o
primeiro presidente Democrata a tratar os eleitores Democratas com
desdém-desprezo. O desdém-desprezo também foi norma na era Clinton. Mas é sem
precedentes o muito que o governo Obama insulta a inteligência do povo dos EUA.
Bom exemplo é
o post mortem das negociações entre Israel e a Autoridade Palestina, que
Obama e seu secretário de estado, John Kerry lançaram e supervisionaram. A
palavra de fontes oficiais e também de fontes “não identificadas” que sabem das
coisas – Martin Indyk é um dos primeiros suspeitos – é que todos estão
chocados, chocados, chocados, de ver o quanto os israelenses sabotaram o
negócio todo.
Claro que
nada é dito nesses termos – não seria diplomático, além de não ser boa “política”.
E exigiria coragem moral e política, item que falta, falta, falta muito, na
Casa Branca de Obama. Mas a mensagem é clara. Claro que se não estiverem
mentindo e estiverem realmente chocados, seriam os únicos chocados no planeta.
Kerry não é
estúpido, nem é excepcionalmente mal informado; Obama tampouco. Fossem quais
fossem as razões dos dois para reiniciar negociações entre um lado que tem
todas as cartas e apoio irrestrito dos EUA, e outro lado que não tem carta
alguma e que o ocidente trata como se fosse o lixo do mundo, a possibilidade de
as negociações serem bem-sucedidas não estava entre aquelas razões.
Não,
principalmente, se o lado que tem todas as cartas não tem qualquer interesse em
paz nem, caso se chegue a falar disso, em assinar qualquer tipo de acordo.
Para que as
negociações fossem bem-sucedidas, Obama e Kerry teriam de apresentar a Israel
alguma vantagem irrecusável. Mas isso nunca, em tempo algum, chegou sequer a
ser considerado como possibilidade!
Nesse caso,
por que o embuste daquelas “conversações”? A resposta mais provável é que
iniciar mais um “processo de paz” pareceu ser bom meio para manter a bordo os
liberais “bondosos”. A equipe-Obama queria que aqueles eleitores “bons” e “éticos”
acreditassem que o governo-Obama realmente está(ria) do lado do bem!
Mas por que
insultar a inteligência dos próprios eleitores, montando uma situação feita
para fracassar, e depois tratar logo de se autoabsolver de qualquer responsabilidade,
fingindo surpresa, “porque” Benyamin Netanyahu, o “amigo-de-infância de todos
os políticos norte-americanos”, deixou Obama-Kerry na mão?!
A eugenia de Israel é igual a dos nazismo da Alemanha |
A menos que
sejam ainda mais idiotas do que se suspeita ou a menos que sejam absurdamente
incompetentes e obcecados por ostentar a própria incompetência, só há uma
explicação: é que Obama-Kerry desprezam/desdenham tanto, a tal ponto, os
próprios apoiadores neoliberais deles, que nem ligam para o que dizem a eles ou
para a espécie de imbecilidade que vomitam sobre eles.
E há também o
Deportador-em-Chefe, a clamar que ninguém deseja mais do que ele a reforma da
imigração, mas que “não vai dar”, porque os malditos Republicanos não fazem a
parte deles. E assim, diz-nos Obama, ele tem de acalmá-los (assim como tem de
acalmar anti-imigrantes de seu próprio partido) e não tornar vigentes as novas
leis, como seus apoiadores acreditaram que ele fosse fazer, de modo a obter o
apoio dos dois partidos para a grande lei de reforma que ele sonha com assinar.
Tal argumento
não merece sequer um “mas... como assim?!”, que fosse. Qualquer pessoa suporia
que, com as eleições de aproximando, os Democratas estariam fazendo horas
extras de trabalho para conquistar os votos dos hispânicos. Mas Obama, claro,
despreza/desdenha demais os hispânicos, para considerá-los votos a conquistar.
E há também a
perigosa manobra geopolítica que o governo Obama parece decidido a manter,
agora que as guerras Bush-Obama e as quase-secretas guerras no Iêmen, Paquistão
e leste da África que Obama expandiu e reembalou, já não estão bastando para
manter próspera a máquina de guerra perpétua dos EUA.
A nova
estratégia é pôr-se a provocar a Rússia e a China, fomentando a instabilidade
em torno desses países – exacerbando tensões linguísticas, étnicas e
religiosas, onde os EUA ainda possam exacerbá-las. Grande parte desse serviço
sujo é executado por Organizações Não Governamentais (ONGs); o pretexto, claro,
é sempre promover a “democracia”. Aí está serviço sujo no qual os EUA são muito
bons (além de terem longa prática acumulada em todo o mundo).
ONGs que corroem as democracias são sustentadas pelo imperialismo anglo-sionista (clique na imagem para aumentar) |
É claro que
Obama está brincando com fogo; e dado que os grandes estrategistas
norte-americanos são absolutamente sem-noção, o perigo é multiplicado por mil,
várias vezes.
O que eles
nos dizem, e que a imprensa-empresa deles só faz repetir, é que é tudo culpa ou
de Putin ou da China – quando, é claro, a verdade é o exato contrário disso.
Eles nem dão
bola. Que seja! Dirão qualquer coisa, em qualquer caso, desde que seja o que
desejam que fosse, considerado só e sempre o objetivo deles, plenamente
confiantes de que a imprensa-empresa nada investigará, nada desmentirá, nada
desmascarará e tudo confirmará da mensagem DELES. Quanto a isso, verdade seja
dita, eles não erram: no que tenha a ver com insultar a inteligência dos
cidadãos e dos eleitores, Obama e sua imprensa-empresa obram sempre juntos!
E depois há
também a conversa-enrolêixon de Obama sobre como os direitos de privacidade dos
norte-americanos estariam protegidos sete dias por semana, 24 horas/dia, no seu
governo de vigilância-total que ele – Ele, ELE, professor-ás de Direito Constitucional!
– supervisiona. O mais impressionante é que Obama diz essas coisas sem beber ou
cheirar NADA.
Mas, cúmulo
dos cúmulos do escândalo, pièce de résistance, só a resposta que o
governo Obama deu ao que disse Edward Snowden (que tentou divulgar pela
imprensa-empresa as informações que tinha sobre a vigilância-total; e que a
Agência de Segurança Nacional dos EUA tem registro de todas as suas
tentativas).
Dado que
Snowden disse o que disse em entrevista a Brian Williams da NBC, as penas dos
agentes do governo Obama arrepiaram-se de medo. John Kerry, como se sabe,
reagiu como brucutu: disse que Snowden que voltasse para os EUA, como macho,
para encarar as consequências.
Claro. Kerry
entende que macho-que-é-macho rende-se à injustiça e aos próprios bandidos aos
quais criou problemas ao revelar a verdade. É o mesmo John Kerry que entende
que muito-macho é ser viver mandado por aí, de um lado e para outro, feito
perfeito idiota, objeto das piadinhas de outro doido, o de apelido Bibi.
Na sequência,
a Agência de Segurança Nacional dos EUA declarou que efetuara busca exaustiva e
só encontrara um e-mail de Snowden, o qual, nessa mensagem, só comentava
algumas preocupações vagas... Que aquilo absolutamente não configurava nenhum
sinal de alerta ou aviso; que Snowden, se alertava, alertava para nada.
Edward Snowden |
Será que
Obama mandou-os fazer o que fizeram, ou será que fizeram por sua própria conta
e risco? De fato, nem faz diferença, exceto para que se determine quem, aí,
despreza/desdenha mais o povo dos EUA. Como podem supor seriamente que
alguém no pleno gozo das próprias faculdades mentais acreditaria neles?!
Claro: sempre
souberam, todos eles, que sempre poderiam contar com a imprensa-empresa para
repetir tantas vezes a história deles, tantas, tantas, que a converteriam em
saber convencional. Mas no final, a verdade sobreviverá. A verdade sempre
sobrevive. Mas na maioria dos casos, a verdade aparece, sim, só que tarde
demais. Essa vez, com Snowden, parece ser exceção.
Apesar do
muito que Obama e Kerry e Hillary Clinton e o resto desejem que as pessoas
pensem que Snowden seria alma desencaminhada pedindo para ser apanhada numa
mentira, não conseguirão. Está acontecendo, isso sim, bem o contrário do que
esse pessoal aí deseja.
Por mais que
consigam enganar tanta gente quase todo o tempo sobre a Ucrânia, enganar todos
sobre Snowden está além do poder, até, da NPR (National Public Radio)
e das redes de televisão a cabo (da rede Fox nem se fala, porque ninguém leva a
sério aquele pessoal-lá) e dos três ou quatro jornais “de qualidade” que ainda
sobrevivem, embora capengas.
Ou Obama não
compreende isso ou, então, o seu desprezo/desdém por essa “gente!” [orig. folks
(palavra preferida de Obama)] que ele governa é tão profundo, que ele
simplesmente não dá bola alguma. Obama, à gangue dele: “insultem a inteligência
dessa gente – insultem sem parar, o mais que puderem. Acááááábem com essa
gente!”.
Talvez tenha
assumido muito profundamente, profundamente demais, a frase de H.L. Mencken –
“ninguém jamais foi à falência, por subestimar a inteligência do povo dos
EUA”...
Ou então,
vai-se ver, o desprezo/desdém que Obama sente por todos que não sejam ricos
& canalhas é tão poderoso, tão enraizado nele, que ele simplesmente não
consegue controlar-se.
Mas
desprezo/desdém é faca de dois gumes.
Num dos
versos dos “Provérbios do Inferno” de William Blake, lê-se que o
desprezo/desdém é ambiente invisível, imperceptível, para o
desprezível/desdenhável, como o mar para o peixe, e o ar para a ave. Obama acha
que se aplica(ria) ao povo que ele governa – sobretudo aos bobalhões, idiotas,
tolos, bons & éticos bem-intencionados que votaram nele e o elegeram.
Mais cedo ou
mais tarde, Obama aprenderá, para seu desconsolo e desilusão, que se aplica
também a ele mesmo.
Notas dos tradutores
[1] Orig. “Contempt to the
Contempible”. É fragmento de verso de William Blake
(1757-1827) em The
Marriage of Heaven and Hell (c. 1790), “Provérbios do Inferno”:
“Como o ar para o pássaro, ou o mar para o peixe, assim o desprezo para o
desprezível” (tradução de José Antônio Arantes. São Paulo: Iluminuras, 1987. Há
edição bilíngue recente disponível: William Blake. Poesia e prosa selecionadas.
S.P., Nova Alexandria, 1993).
[2] Sobre o conceito, ver LOSURDO, Domenico, A “democracia para o povo dos senhores”, no passado e no presente.
________________________
[*] Andrew Levine é
professor sênior do Institute for Policy
Studies, e autor de THE AMERICAN IDEOLOGY (Routledge)
e POLITICAL
KEY WORDS (Blackwell), bem como de muitos outros livros e artigos em
filosofia política. Seu livro mais recente é In Bad Faith: What’s Wrong With the Opium of the
People. Foi professor de
Filosofia) na University of Wisconsin-Madison e professor
pesquisador (filosofia) na University of Maryland-College Park. Foi também co-autor de Hopeless: Barack Obama and the Politics of Illusion (AK Press).
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