quarta-feira, 4 de junho de 2014

Pepe Escobar: “A volta dos mortos (neoconservadores) vivos”

3/6/2014, [*] Pepe Escobar, Asia Times Online − The Roving Eye
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Barack Obama em West Point (29/5/2014)
Recebida com muita histeria, logo se divulgou a noção de que a “nova” doutrina de política exterior dos EUA que o presidente Obama anunciou semana passada em West Point rejeitaria neoconservadores e neoliberais e seria, essencialmente, pós-imperialista e demonstração de realpolitik.

Muita calma nessa hora. Embora se afastando dos excessos do regime Cheney – tipo bombardear nações inteiras para “democratizá-las” – o “desejo de mandar” ainda lá está; poder é direito.

Sobretudo, o “excepcionalismo” continua a ser regra. Agora, não tão acintoso, mas ainda implementado mediante uma caixa de ferramentas horrendas, das financeiras à ciberguerra, da promoção da “democracia” à moda do National Endowment for Democracy ao contraterrorismo à moda do Comando Conjunto das Operações Especiais dos EUA, guerra de drones e guerras clandestinas ilegais de todos tons.

No início dos anos 2000s, o modelo era a destruição física e a ocupação do Iraque. Nos anos 2010s, o modelo é a destruição em câmera lenta, à distância, por procuração, da Síria.

E, além do mais, os que “conceitualizaram” a destruição do Iraque continuam a cultivar aquela mesma cabeça estreita-monstruosa, de Alien. O ícone deles é, é claro, Robert Kagan – um dos fundadores do apocalíptico funéreo Project for a New American Century (PNAC) [Projeto do Novo Século Americano] e marido da cripto-detonadora de ucranianos e que-venha-o-inferno, Victoria “Foda-se a União Europeia” Nuland (daí o sonho do casal, de uma Ucrânia convertida no Khaganato dos Nulands ou, simplesmente, Nulandistão)

Victoria “Foda-se a União Europeia” Nuland
Kagan erra devastadoramente em tudo, como no best-seller de sua autoria, de 2003, Of Paradise and Power: America and Europe in the New World Order [De paraíso e poder: EUA e a Nova Ordem Mundial], um elogio dos EUA “benignos” sempre de guarda contra as “ameaças” (do fundamentalismo muçulmano) que emanam de um mundo Hobbesiano, em tudo muito distante do lar Kantiano acolhedor em que vive(ria) a Europa.

Depois, no livro de 2008, The Return of History and the End of Dreams [A volta da história e o fim dos sonhos], o “mal” já não era o fundamentalismo muçulmano (esfarrapado demais), mas a emergência de vastas autocracias, Rússia e China, antíteses das democracias ocidentais. Mas com The World America Made [O mundo que os EUA fizeram] (2012), a cidade paradisíaca que brilha luminescente no alto da colina novamente triunfará, mais que perfeitamente capaz de detonar aquelas autocracias; e a única garantia confiável da paz global é o excepcionalismo norte-americano.

Kagan ainda atrai a atenção até do em geral indiferente Comandante-em-chefe, que leu avidamente O mundo que os EUA fizeram, antes de sua fala sobre “o Estado da União” de 2012, no qual proclamou que “os EUA voltaram” [orig. “America is back”].

É esclarecedor voltar ao que Kagan escreveu no Weekly Standard em março de 2011, soando como menino de escola que, deslumbrado, elogia o presidente:

Ele rejeitou completamente a chamada abordagem realista, exaltou o excepcionalismo norte-americano, falou de valores universais e insistiu que o poder dos EUA seja usado, quando adequado, em nome daqueles valores.

Qualquer semelhança com a “nova” doutrina da política externa de Obama é, de fato, proposital.

O "protégé" da Brookings Institution, Robert Kagan
Arranca-rabo em Cingapura [1]

Agora aparece a opus mais recente de Kagan, Superpowers Don't Get to Retire: What our tired country still owes the world [Superpotências não conseguem aposentar-se: o que nosso fatigado país ainda deve ao mundo], uma lastimável confusão que já aparece no título (o sujeito, afinal, nunca leu Paul Kennedy). A história ensina que superpotências, sim, se aposentam, por causa da super-extensão – não só militar, mas mais, quase sempre, econômica e fiscal, como quando está diante da falência.

É perda de tempo esperar de Kagan e da nebulosa neoconservadora algo além de cegueira total às lições da história – com menção especial, trágica, à [operação] Choque e Pavor, à detonação das Convenções de Genebra e à tortura institucionalizada. Mais uma vez, trabalham sobre sua velha dicotomia paroquial: ou eterna hegemonia global norte-americana... ou caos total.

Progressistas nos EUA ainda tentam salvar o dia, clamando, frenéticos, por uma “restauração” básica da economia e da saúde democrática dos EUA; missão bem impossível, se o capitalismo de cassino reina, e os EUA são agora, para todos os objetivos práticos, uma oligarquia. Esses sonhadores realmente creem que a tal “restauração” seria o que Obama tentou ou ainda tenta fazer; a qual projetaria os EUA mais uma vez como modelo global – o que “encorajaria” a democracia por todos os cantos do mundo.

Lamento ter de dar-lhes a notícia, mas para a vastíssima maioria da “comunidade internacional” (a verdadeira, a que existe, a que considera os fatos em campo), a ideia de que os EUA promovam alguma democracia já foi declarada MaD (“Morta ao Desembarcar”).

Xi Jinping e Vladimir Putin brindam o nascimento do século eurasiano (21/5/21014)
Assim, sob o rótulo do excepcionalismo – versus o nascimento de um século eurasiano – é exercício fascinante assistir ao arranca-rabo no Diálogo em Cingapura-Xangrilá, que já descrevi ano passado como os Spielbergs e Clooneys da esfera militar, todos trancados num salão de Guerras das Estrelas (de fato, o salão de bailes, candelabros incluídos, do Hotel Xangrilá).

Tudo começou com Shinzo Abe, primeiro-ministro militarista daquele protetorado norte-americano, o Japão, a denunciar “esforços unilaterais” para alterar o status quo estratégico na Ásia. O general Martin Dempsey, comandante do Estado-Maior dos EUA, logo se associou à ideia, dizendo que o Pacífico Asiático ficara menos estável por causa da “coerção e provocação” da China. E o Supremo-do-Pentágono, Chuck Hagel, também se pôs a culpar Pequim, acusando-a de cometer “ações unilaterais de desestabilização” no Mar do Sul da China.

Foi quando o tenente-general, Wang Guanzhong, vice-comandante do Exército do Povo Chinês, reagiu com estilo; disse que a fala de Hagel soava “cheia de hegemonismo, cheia de palavras de ameaça e intimidação” e como “desafio de provocação contra a China”.

O major-general Zhu Chenghu permitiu-se alguma condescendência (oh, aqueles bárbaros...); disse que:

Dessa vez os norte-americanos estão cometendo erros estratégicos bastante importantes. Se se posicionarem como inimigos da China, a China se posicionará como inimiga absoluta dos EUA.

E denunciou a hipocrisia de Hagel:

Tudo que a China faz seria ilegal, e tudo que os EUA fazem seria certo...

Zhu também registrou a ameaça que Hagel deixava no ar:

(...) os EUA não farão como se não vissem, se princípios fundamentais da ordem internacional forem violados.

Tradução: não se metam com os excepcionais excepcionalistas. NÓS somos a ordem internacional.

Xadrez geopolítico do Pacífico Ocidental
Foi como se todos estivessem operando pelo livro de instruções de Kagan. Diferente, só, que Pequim não é Bagdá, e não responderá a ameaças baixando a cabeça. Em vez disso, a China está distribuindo movimentos táticos seletos, espertos, por todo o tabuleiro de xadrez do Pacífico Ocidental. A rede de vassalos/ clientes/ protetorados asiáticos de Washington está e continuará a ser lenta mas consistentemente minada.

Cereja do bolo: Pequim já viu com perfeita clareza que os dois, Hagel e Kerry – que absolutamente nada ou quase nada sabem das complexidades da Ásia – estão bem visivelmente entrando em pânico.

Longe vão os dias das frases de Deng Xiaoping – de “atravessar o rio sentindo as pedras” até “manter perfil discreto”. Agora já se fala sobre a iminente potência econômica n. 1 do mundo, a nação que já é principal agente de comércio e maior credor dos EUA.

Estrada para o inferno, digo: Highway to Hillary [2]

A Rússia – não os EUA – é hoje parceiro-chave ou negociador-chave na negociação de todos os conflitos internacionais barra-pesadíssima. Os recentes vários grandes contratos de energia e comércio sino-russos, parte essencial daquela parceria; a integração progressiva e a estratégia econômica/financeira concertada dos países BRICS; e até o lento processo em andamento de integração latino-americana, tudo isso aponta na direção de um mundo multipolar.

O que nos leva de volta à “nova” doutrina Obama de política exterior. Examinemos rapidamente o que temos até aqui.

Obama só não persistiu naquela tola, temerária, autoimposta linha-vermelha e só não bombardeou a Síria, porque foi salvo (dele mesmo), na undécima hora, pela diplomacia russa.

O dossiê iraniano ainda permanece vulnerável à incansável pressão pelos lobby/ setores neocons/ israelenses da indústria de armas, com o governo Obama introduzindo fatores estranhos para fazer gorar a negociação.

As sanções que Obama impôs à Rússia por causa da Ucrânia não são apenas ilegais: são também periféricas, como empresários espertos na União Europeia logo perceberam.

No Afeganistão, prossegue aquele simulacro de retirada – a ser substituído por guerra total clandestina [orig. all-out shadow war].

E o governo Obama – clandestinamente e também nada clandestinamente – está apoiando neonazistas na Ucrânia e jihadistas na Síria.

Tudo isso, e ainda não basta para a gangue dos Kagan – arquitetos “conceituais” das guerras do 11/9, que sempre quiseram que Obama bombardeasse a Síria; bombardeasse o Irã; iniciasse uma guerra contra a Rússia por causa da Crimeia; e até que, quanto antes melhor, bombardeasse a China para impedi-la de chegar ao lugar nº 1.

Hobbesianos ensandecidos – tomados pela convicção psicótica de direito perene a tudo, só para eles – não se deixarão deter ante coisa alguma para impedir o surgimento de um mundo multipolar. É o Império Excepcionalista, com a OTAN como Robocop global... ou o inferno!

Moscou e Pequim, para dizer o mínimo, não estão lá muito exatamente impressionadíssimas. E, sim, já detectaram o medo e o desespero “ocidentais”. Mas, sim, as coisas podem ficar – e provavelmente ficarão – muito mais feias, furiosas, terríveis, mesmo que os Khaganatos nada consigam: esperem até ver a doutrina Hillary.




Notas dos tradutores

[1] Orig. “Catfight at the Singapore corral”. São tantas conotações que a expressão é quase intraduzível. Dentre outras, há uma referência a Gunfight at O.K Curral, western de 1957, dir. John Sturges (“Sem lei e sem alma” em português. Trailer a seguir:


[2] Impossível não lembrar de Highway to Hell [Estrada para o Inferno], AC/DC. Assiste--se a seguir:



[*] Pepe Escobar (1954) é jornalista, brasileiro, vive em São Paulo, Hong Kong e Paris, mas publica exclusivamente em inglês. Mantém coluna (The Roving Eye) no Asia Times Online; é também analista de política de blogs e sites como: Tom Dispatch, Information Clearing House, Red Voltaire e outros; é correspondente/ articulista das redes Russia Today, The Real News Network Televison e Al-Jazeera. Seus artigos podem ser lidos, traduzidos para o português pelo Coletivo de Tradutores da Vila Vudu e João Aroldo, no blog redecastorphoto.
Livros:
 Obama Does Globalistan, Nimble Books, 2009. 

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