3/6/2014, [*] Pepe Escobar, Asia Times Online − The Roving Eye
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Barack Obama em West Point (29/5/2014) |
Recebida com
muita histeria, logo se divulgou a noção de que a “nova” doutrina de política
exterior dos EUA que o presidente Obama anunciou semana passada em West Point
rejeitaria neoconservadores e neoliberais e seria, essencialmente,
pós-imperialista e demonstração de realpolitik.
Muita calma
nessa hora. Embora se afastando dos excessos do regime Cheney – tipo bombardear
nações inteiras para “democratizá-las” – o “desejo de mandar” ainda lá está;
poder é direito.
Sobretudo, o
“excepcionalismo” continua a ser regra. Agora, não tão acintoso, mas ainda
implementado mediante uma caixa de ferramentas horrendas, das financeiras à
ciberguerra, da promoção da “democracia” à moda do National Endowment for Democracy ao contraterrorismo à moda do
Comando Conjunto das Operações Especiais dos EUA, guerra de drones e
guerras clandestinas ilegais de todos tons.
No início dos
anos 2000s, o modelo era a destruição física e a ocupação do Iraque. Nos anos
2010s, o modelo é a destruição em câmera lenta, à distância, por procuração, da
Síria.
E, além do
mais, os que “conceitualizaram” a destruição do Iraque continuam a cultivar
aquela mesma cabeça estreita-monstruosa, de Alien. O ícone deles é, é
claro, Robert Kagan – um dos fundadores do apocalíptico funéreo Project for
a New American Century (PNAC)
[Projeto do Novo Século Americano] e marido da cripto-detonadora de ucranianos
e que-venha-o-inferno, Victoria “Foda-se a União Europeia” Nuland (daí o sonho
do casal, de uma Ucrânia convertida no Khaganato dos Nulands ou, simplesmente,
Nulandistão)
Victoria “Foda-se a União Europeia” Nuland |
Kagan erra
devastadoramente em tudo, como no best-seller de sua autoria, de 2003, Of
Paradise and Power: America and Europe in the New World Order [De paraíso e
poder: EUA e a Nova Ordem Mundial], um elogio dos EUA “benignos” sempre de
guarda contra as “ameaças” (do fundamentalismo muçulmano) que emanam de um
mundo Hobbesiano, em tudo muito distante do lar Kantiano acolhedor em que
vive(ria) a Europa.
Depois, no
livro de 2008, The Return of History and the End of Dreams [A volta da
história e o fim dos sonhos], o “mal” já não era o fundamentalismo muçulmano
(esfarrapado demais), mas a emergência de vastas autocracias, Rússia e China,
antíteses das democracias ocidentais. Mas com The World America Made [O
mundo que os EUA fizeram] (2012), a cidade paradisíaca que brilha luminescente
no alto da colina novamente triunfará, mais que perfeitamente capaz de detonar
aquelas autocracias; e a única garantia confiável da paz global é o
excepcionalismo norte-americano.
Kagan ainda
atrai a atenção até do em geral indiferente Comandante-em-chefe, que leu
avidamente O mundo que os EUA fizeram, antes de sua fala sobre “o Estado
da União” de 2012, no qual proclamou que “os EUA voltaram” [orig. “America
is back”].
É
esclarecedor voltar ao que Kagan escreveu no Weekly Standard em março de
2011, soando como menino de escola que, deslumbrado, elogia o presidente:
Ele rejeitou completamente a chamada abordagem
realista, exaltou o excepcionalismo norte-americano, falou de valores
universais e insistiu que o poder dos EUA seja usado, quando adequado, em nome
daqueles valores.
Qualquer
semelhança com a “nova” doutrina da política externa de Obama é, de fato,
proposital.
O "protégé" da Brookings Institution, Robert Kagan |
Agora aparece
a opus mais recente de Kagan, “Superpowers
Don't Get to Retire: What our tired country still owes the world“ [Superpotências não conseguem
aposentar-se: o que nosso fatigado país ainda deve ao mundo], uma lastimável
confusão que já aparece no título (o sujeito, afinal, nunca leu Paul Kennedy).
A história ensina que superpotências, sim, se aposentam, por causa da
super-extensão – não só militar, mas mais, quase sempre, econômica e fiscal,
como quando está diante da falência.
É perda de
tempo esperar de Kagan e da nebulosa neoconservadora algo além de cegueira
total às lições da história – com menção especial, trágica, à [operação] Choque
e Pavor, à detonação das Convenções de Genebra e à tortura institucionalizada.
Mais uma vez, trabalham sobre sua velha dicotomia paroquial: ou eterna
hegemonia global norte-americana... ou caos total.
Progressistas
nos EUA ainda tentam salvar o dia, clamando, frenéticos, por uma “restauração”
básica da economia e da saúde democrática dos EUA; missão bem impossível, se o
capitalismo de cassino reina, e os EUA são agora, para todos os objetivos
práticos, uma oligarquia. Esses sonhadores realmente creem que a tal
“restauração” seria o que Obama tentou ou ainda tenta fazer; a qual projetaria
os EUA mais uma vez como modelo global – o que “encorajaria” a democracia por
todos os cantos do mundo.
Lamento ter
de dar-lhes a notícia, mas para a vastíssima maioria da “comunidade
internacional” (a verdadeira, a que existe, a que considera os fatos em campo),
a ideia de que os EUA promovam alguma democracia já foi declarada MaD (“Morta
ao Desembarcar”).
Xi Jinping e Vladimir Putin brindam o nascimento do século eurasiano (21/5/21014) |
Assim, sob o
rótulo do excepcionalismo – versus o nascimento
de um século eurasiano – é exercício fascinante assistir ao
arranca-rabo no Diálogo em Cingapura-Xangrilá, que já descrevi ano passado como
os Spielbergs e Clooneys da esfera militar, todos trancados num salão de
Guerras das Estrelas (de fato, o salão de bailes, candelabros incluídos, do
Hotel Xangrilá).
Tudo começou
com Shinzo Abe, primeiro-ministro militarista daquele protetorado
norte-americano, o Japão, a denunciar “esforços unilaterais” para alterar o status
quo estratégico na Ásia. O general Martin Dempsey, comandante do Estado-Maior
dos EUA, logo se associou à ideia, dizendo que o Pacífico Asiático ficara menos
estável por causa da “coerção e provocação” da China. E o Supremo-do-Pentágono,
Chuck Hagel, também se pôs a culpar Pequim, acusando-a de cometer “ações
unilaterais de desestabilização” no Mar do Sul da China.
Foi quando o
tenente-general, Wang Guanzhong, vice-comandante do Exército do Povo Chinês,
reagiu com estilo; disse que a fala de Hagel soava “cheia de hegemonismo, cheia
de palavras de ameaça e intimidação” e como “desafio de provocação contra a
China”.
O
major-general Zhu Chenghu permitiu-se alguma condescendência (oh, aqueles
bárbaros...); disse que:
Dessa vez os norte-americanos estão cometendo
erros estratégicos bastante importantes. Se se posicionarem como inimigos da
China, a China se posicionará como inimiga absoluta dos EUA.
E denunciou a
hipocrisia de Hagel:
Tudo que a China faz seria ilegal, e tudo que
os EUA fazem seria certo...
Zhu também
registrou a ameaça que Hagel deixava no ar:
(...) os EUA não farão como se não vissem, se
princípios fundamentais da ordem internacional forem violados.
Tradução: não
se metam com os excepcionais excepcionalistas. NÓS somos a ordem internacional.
Xadrez geopolítico do Pacífico Ocidental |
Foi como se
todos estivessem operando pelo livro de instruções de Kagan. Diferente, só, que
Pequim não é Bagdá, e não responderá a ameaças baixando a cabeça. Em vez disso,
a China está distribuindo movimentos táticos seletos, espertos, por todo o
tabuleiro de xadrez do Pacífico Ocidental. A rede de vassalos/ clientes/ protetorados
asiáticos de Washington está e continuará a ser lenta mas consistentemente
minada.
Cereja do
bolo: Pequim já viu com perfeita clareza que os dois, Hagel e Kerry – que
absolutamente nada ou quase nada sabem das complexidades da Ásia – estão bem
visivelmente entrando em pânico.
Longe vão os
dias das frases de Deng Xiaoping – de “atravessar o rio sentindo as pedras” até
“manter perfil discreto”. Agora já se fala sobre a iminente potência econômica
n. 1 do mundo, a nação que já é principal agente de comércio e maior credor dos
EUA.
A Rússia –
não os EUA – é hoje parceiro-chave ou negociador-chave na negociação de todos
os conflitos internacionais barra-pesadíssima. Os recentes vários grandes
contratos de energia e comércio sino-russos, parte essencial daquela parceria;
a integração progressiva e a estratégia econômica/financeira concertada dos
países BRICS; e até o lento processo em andamento de integração
latino-americana, tudo isso aponta na direção de um mundo multipolar.
O que nos
leva de volta à “nova” doutrina Obama de política exterior. Examinemos
rapidamente o que temos até aqui.
Obama só não
persistiu naquela tola, temerária, autoimposta linha-vermelha e só não
bombardeou a Síria, porque foi salvo (dele mesmo), na undécima hora, pela
diplomacia russa.
O dossiê
iraniano ainda permanece vulnerável à incansável pressão pelos lobby/ setores neocons/ israelenses da
indústria de armas, com o governo Obama introduzindo fatores estranhos para
fazer gorar a negociação.
As sanções
que Obama impôs à Rússia por causa da Ucrânia não são apenas ilegais: são
também periféricas, como empresários espertos na União Europeia logo
perceberam.
No
Afeganistão, prossegue aquele simulacro de retirada – a ser substituído por
guerra total clandestina [orig. all-out shadow war].
E o governo
Obama – clandestinamente e também nada clandestinamente – está apoiando
neonazistas na Ucrânia e jihadistas na Síria.
Tudo isso, e
ainda não basta para a gangue dos Kagan – arquitetos “conceituais” das guerras
do 11/9, que sempre quiseram que Obama bombardeasse a Síria; bombardeasse o
Irã; iniciasse uma guerra contra a Rússia por causa da Crimeia; e até que,
quanto antes melhor, bombardeasse a China para impedi-la de chegar ao lugar nº
1.
Hobbesianos
ensandecidos – tomados pela convicção psicótica de direito perene a tudo, só
para eles – não se deixarão deter ante coisa alguma para impedir o surgimento
de um mundo multipolar. É o Império Excepcionalista, com a OTAN como Robocop
global... ou o inferno!
Moscou e
Pequim, para dizer o mínimo, não estão lá muito exatamente impressionadíssimas.
E, sim, já detectaram o medo e o desespero “ocidentais”. Mas, sim, as coisas
podem ficar – e provavelmente ficarão – muito mais feias, furiosas, terríveis,
mesmo que os Khaganatos nada consigam: esperem até ver a doutrina Hillary.
Notas dos tradutores
[1] Orig. “Catfight at the
Singapore corral”. São tantas conotações que a expressão é
quase intraduzível. Dentre outras, há uma referência a Gunfight at O.K
Curral, western de 1957,
dir. John Sturges (“Sem lei
e sem alma” em português. Trailer a seguir:
[2] Impossível não lembrar de Highway to Hell
[Estrada para o Inferno], AC/DC. Assiste--se a seguir:
[*] Pepe Escobar (1954) é jornalista, brasileiro, vive em São Paulo, Hong Kong e Paris, mas publica exclusivamente em inglês. Mantém coluna (The Roving Eye) no Asia Times Online; é também analista de política de blogs e sites como: Tom Dispatch, Information Clearing House, Red Voltaire e outros; é correspondente/ articulista das redes Russia Today, The Real News Network Televison e Al-Jazeera. Seus artigos podem ser lidos, traduzidos para o português pelo Coletivo de Tradutores da Vila Vudu e João Aroldo, no blog redecastorphoto.
Livros:
− Globalistan: How the Globalized World is Dissolving into Liquid War, Nimble Books, 2007.
− Red Zone Blues: A Snapshot of Baghdad During the Surge, Nimble Books, 2007.
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