24/6/2014, [*] Michael Schwartz – TomDispatch blog
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Apresentação de Tom Engelhardt
Obama falando sobre o Iraque em 19/6/2014 |
Imaginem o presidente Obama, falando
sobre o Iraque diretamente da Sala de Imprensa da Casa
Branca, dia 19/6/2014, 5ª-feira passada, com ar de cervo surpreendido de cara
para os faróis do caminhão – e não é difícil adivinhar de que caminhão e de que
faróis se tratava. Pode-se dizer que se tratava e trata-se de Benghazi
super-inchada de esteroides. Se o assassinato de um embaixador dos EUA, de um
oficial do Serviço Diplomático e de dois empregados de empresas de segurança
contratadas pela CIA geraram quase dois anos de continuadas críticas
enfurecidas vindas dos Republicanos e potencial dano ao “legado” do
presidente... imaginem o que farão um Iraque em cacos e um estado terrorista
que se estende por todo “o
Levante”. Nem chega a surpreender, então, que um presidente
regularmente descrito como “relutante” tenha mesmo assim marchado resolutamente
ante a imprensa, e ali se pôs em marcha, em câmera lenta, bem lenta, de volta
para dentro do Iraque e rumo ao desastre.
Foi momento de contradições
impressionantes. Obama deu jeito, por exemplo, de alertar contra o perigo de
“superampliação da missão” [or.“mission
creep” [1]], apesar de tudo o que ele tem feito e dito não passar,
precisamente, de “superampliação da missão”.
No início da semana, Obama comunicou
ao Congresso que 275 soldados seriam mandados para o Iraque, a maioria
para defender a embaixada-gigante dos EUA em Bagdá, que já foi o símbolo de
quase ¾ de bilhão de dólares de húbris imperial e hoje não passa de
elefante-branco exemplar. Mais 100 soldados vão também para lá, para apoio.
E na 5ª-feira (19/6/2014) o presidente
acrescentou mais 300 “conselheiros militares” escolhidos nas forças de Operações
Especiais e evidentemente com a missão de preencher os corredores de “novos
centros de operação em Bagdá e no norte do Iraque, para partilhar inteligência
e coordenar o planejamento para dar combate à ameaça terrorista”. (Se você já
alcançou certa idade, a expressão “conselheiros militares” faz soar sinos de
alerta que falam vietnamês. De fato, já se pode pressentir a fuzilaria). Obama
também falou vagamente sobre posicionar “ativos militares adicionais dos EUA na
região” – dentre os quais o porta-aviões USS George H.W. Bush,
acompanhado de um cruzador e um destróier armados
com mísseis teleguiados, que já partiram. E vejam bem: essa
é só a parte pública, da qual
todos podemos ser informados, de seja lá qual for a “estratégia” já em
andamento. Ao mesmo tempo em que o presidente falava de estar “preparado para
empreender ação militar focada e precisa” no Iraque, pelo menos um “alto
funcionário do governo”, cujo nome não se conhece, já está inaugurando a
possibilidade de ataques
aéreos também contra a Síria. A frase sórdida com a qual o tal alto funcionário
fez o que fez foi: “Não restringiremos a potencial ação dos EUA a um específico
espaço geográfico”.
Em outras palavras, exceto pelo item
“milhares e milhares de soldados & coturnos em solo”, a
tal mesa sobre a qual sempre se mantêm “todas as
opções” já foi visivelmente arrastada para a Sala de Guerra no Levante, em
Washington.
Obama e a tal mesa... |
É desenvolvimento importante para
presidente que tanto se vangloria de ter-nos arrancado do Iraque (mesmo que a
saída de ‘lá’ tenha sido arquitetada
pelo governo Bush; quando
funcionários de Obama tentaram negociar a possibilidade de deixar soldados “lá”,
foram impedidos pelo governo do Iraque). Paralelamente aos movimentos
militares, o presidente e sua equipe de segurança nacional, refletindo através
de algum espelho escuro a “agenda democrática” da era Bush, também já parecem
ter pintado os dedinhos
com tinta roxa. Foram vistos pressionando políticos iranianos para
derrubarem o primeiro-ministro Maliki e indicarem um governo de unidade –
que guerreará a guerra que os EUA desejam. (Para aumentar o conteúdo farsesco
do momento, um dos nomes lembrados para a posição de Maliki, caso Maliki venha
a ser “regime-mudado”, é Ahmed
Chalabi, queridinho dos
funcionários de Bush e preferido DELES, para o mesmo posto).
Mas não há como a intervenção dos EUA
não ser vista como movimento de apoio aos xiitas num conjunto incipiente de
guerras civis, como até o general aposentado e ex-diretor da CIA, David
Petraeus alertou semana passada. De fato, nas pesquisas de opinião, os
norte-americanos rejeitam decididamente qualquer tipo de intervenção
militar, tanto quanto qualquer movimento na era pós-11/9 só deve fazer
lembrar lição única e simples: Não façam!
Dick Cheney (por Pancho) |
Mas Obama e seus principais
funcionários evidentemente não conseguem não fazer. A maré montante de críticas
já deve estar pré-ecoando, desde já, na cabeça deles – já antecipadas pelas
vezes sem conta em que a imprensa-empresa dedica-se a entrevistar o senador
John McCain e publica coorte sem fim de colunas com “pareceres”
de comentaristas, do
ex-vice-presidente Dick
Cheney a L. Paul
Bremmer III (cujo último emprego conhecido foi “pró-cônsul”), e outros
da multidão de “especialistas” que inventaram o desastre chamado Iraque e para
quem errar sobre o Iraque é feito que merece(ria) condecoração.
Estamos claramente nos estágios iniciais
das apostas na intervenção. Os movimentos iniciais podem ser até ser saudados
como auspiciosos, mas todo o
cuidado é pouco quanto aos efeitos desestabilizantes de longo prazo, em região
já caótica. Washington delira que pode(ria) controlar situações assim tão
altamente combustíveis. De fato, jamais as controlou no passado e tampouco
controlará dessa vez, o que significa que há à frente horrores ainda não
vistos. (E esperem só até que, num desses centros de operações conjuntas, ou
onde for, o primeiro soldado iraquiano, como
fizeram os soldados afegãos, saque
a arma e atire contra um daqueles “conselheiros” ocupantes).
Só falta, agora, o toque final da
versão Obama dessa “superampliação da missão”. Falo do gesto−assinatura do
governo Obama em seus conflitos pelo Oriente Médio Expandido (e, cada dia mais,
também pela África). Se prestar atenção, você já consegue ouvir a música−tema
da era−Obama, surgindo ao fundo: “Que entrem os drones!”.
Importante é que, diga o que disser ou
diga, o presidente Obama jamais pronuncia a palavra “petróleo”. Ninguém jamais,
nunca, fala de petróleo. Bush também não falou, quando invadiu e ocupou o
Iraque. Se só se considera a “informação” distribuída pelos veículos da
imprensa−empresa, ninguém jamais sequer suspeitará que o Iraque flutua sobre o
maior e mais acessível manancial de combustível fóssil que há no planeta! Não
“dá no jornal” nem “dá na TV” – mas “petróleo” é o assunto que jamais, nem por
um instante, sai da cabeça “deles”.
Hoje, felizmente, o sociólogo Michael
Schwartz, há muito tempo colaborador regular de TomDispatch, volta,
depois de longa ausência, para nos fazer lembrar o único fato absolutamente
inapagável, da “questão iraquiana do qual ninguém fala, mas que ninguém pode
esquecer ou perder de vista, nem por um segundo.
Tom
É o petróleo, estúpido!
Insurgência e guerra, num
mar de petróleo
24/6/2014, [*] Michael
Schwartz, TomDispatch
Os eventos no Iraque estão nas
manchetes por toda parte e, mais uma vez, não se ouve nenhuma referência à
questão que subjaz a praticamente toda a violência: o controle sobre o petróleo
iraquiano. Em vez disso, a imprensa−
empresa está inundada pelo debate sobre o horror dos horrores e
longas análises de uma “ameaça terrorista” que de nova nada tem, o Estado
Islâmico do Iraque e Síria (ISIS). Há também elaboradas discussões sobre
a possibilidade de uma guerra
civil que ameaça seja uma nova rodada de limpeza étnica seja
o colapso do depauperado governo do primeiro−ministro Nouri al-Maliki.
O que há é “uma série de revoltas
urbanas contra o governo”, como o especialista em Oriente Médio, Juan Cole, as
classificou. Atualmente concentram-se em áreas sunitas do país e têm
caráter marcadamente sectário, motivo pelo qual grupos como o ISIS prosperam
e até ascendem à liderança em vários locais. Mas essas revoltas nem foram
criadas nem são controladas pelo ISIS e seus vários milhares de
combatentes. Envolvem
também ex-colaboradores militares de Saddam
Hussein e membros do Partido Baathista, milícias tribais e outros grupamentos.
E pelo menos de forma incipiente não podem, de fato, ser restritos às áreas
sunitas. Como o New
York Times noticiou semana passada, a indústria do petróleo
está preocupada “com o risco de os tumultos se alastrarem” para a cidade de
Basra, ao sul, dominada pelos sunitas, onde “se concentram os principais campos
de petróleo e instalações para exportação”.
Sob o ruidoso oceano de
descontentamento sunita jaz um fator que continua a ser ignorado. Os
insurgentes não são os únicos numa luta contra o que veem como opressão por um
governo de maioria xiita em Bagdá e suas forças de segurança, mas luta em que
se disputa também quem controlará e quem se beneficiará do que Maliki – falando
por muitos de seus eleitores, em 2013 – disse ao Wall Street Journal que é “o
patrimônio nacional do Iraque”.
A desconstrução do Iraque de Saddam
Hussein
Alguém ainda lembra o que
foi o Iraque há 12 anos, quando Saddam Hussein governava e os EUA
estavam às vésperas de invadir o país? Por um lado, iraquianos, especialmente xiitas
e curdos, sofreram sob a mão de ferro de um ditador feroz que pode ter matado
250 mil ou mais de seu próprio povo, em 25 anos de governo. Também lutavam
contra as privações geradas pelas sanções econômicas impostas pelos EUA – e há
especialistas que estimam que, naquele momento, haviam morrido 500 mil crianças
iraquianas por doenças que se consideram efeitos das
sanções.
Por outro lado, o país tinha várias
indústrias bem sucedidas, orientadas para a exportação, como artigos de couro e
produtos agrícolas (tâmaras), que davam empregos a centenas de milhares de
parentes dos relativamente bem remunerados trabalhadores e empreendedores.
Havia também operante uma infraestrutura para energia elétrica e água, e de
administração e operação de estradas (todas em decadência, também por efeito
das sanções impostas pelos EUA). O Iraque tinha então, sobretudo, um sistema de
educação primária e superior considerado o melhor de toda a Região e o melhor
sistema (universal e gratuito) de assistência à saúde de todo o Oriente Médio.
Numa nação de 27 milhões de habitantes, também tinha – em comparação com outros
países na área – uma grande classe média de 3 milhões de cidadãos, grande parte
dos quais empregados no serviço público.
O dinheiro para manter todos esses
serviços fluía de uma única fonte: os 2,5 milhões de barris de petróleo que o Iraque produzia
diariamente. A renda diária da venda do “patrimônio nacional” mantinha a
superestrutura econômica do país. O orçamento iraquiano baseado no petróleo era
tão abundante, que mantinha Hussein com vários palácios, enriqueceu a família e
os aliados dele e financiou várias guerras em outros países e contra curdos e
xiitas iraquianos.
Essa mistura de opressão e
prosperidade acabou na invasão norte-americana. Apesar de negar que tocaria no
“patrimônio” do Iraque, o governo Bush saltou diretamente sobre os ganhos do
petróleo, desviando-os da economia para um “pagamento da dívida” e na
sequência, imediatamente depois, para uma campanha de pacificação. Apesar das promessas
de Washington de que, sob a ocupação dos EUA, a produção
logo subiria para 6 milhões de barris/dia, a luta para tirar dos iraquianos o
controle sobre a produção de energia acabou por atingir a indústria e reduzir a
produção em 40%.
De fato, o governo ocupante foi um
vendaval de destruição econômica.
Campos de petróleo, refinarias e oleodutos no Iraque (clique na imagem para aumentar) |
Imediatamente começou a desmantelar todas as
unidades de produção controladas pelo estado (e mantidas pelo dinheiro do
petróleo), o que levou à falência as indústrias privadas que dependiam delas.
Destroçou em seguida a agricultura comercial, tanto por interromper os
subsídios que o petróleo gerava e o governo Saddam distribuía, como, também,
nos ataques aéreos contra insurgentes em áreas rurais. O governo dos EUA como
governo de ocupação no Iraque impôs medidas de “austeridade” e um programa de
“des-Baathificação” dos sistemas públicos de educação e de assistência à saúde
no Iraque – que os destruiu completamente.
Dado que muitos iraquianos em posição
de destaque não tinham alternativa além de alistar-se no Partido Baath de
Saddam, a ocupação norte-americana foi desastre de proporções gigantescas para
profissionais liberais de classe média, que se viram desempregados ou no exílio
em países vizinhos. Sob administração do governo dos EUA ocupantes,
quase sempre sob condições terríveis, o efeito da má administração da
infraestrutura elétrica, do fornecimento de água e de estradas foi devastador.
Acrescente a isso os efeitos das campanhas de bombardeio e a privatização dos
serviços de manutenção e aí está a fórmula para um desastre duradouro.
Quando, em 2009, o governo Obama
começou a retirar tropas de combate norte-americanas do Iraque, os iraquianos
em todo o país – mas especialmente nas áreas de maioria sunita – enfrentaram
desemprego de 60% da população, fornecimento de energia elétrica reduzido a
poucas horas por dia, sistemas de distribuição de água destruídos ou
contaminados, aulas suspensas ou inexistentes, sistema de assistência médica
completamente destruído e ausência quase total de transporte de massa, fosse
público ou privado.
Nouri al-Maliki |
Poucos lembram, no ocidente, mas em
2010 Maliki baseou sua campanha eleitoral numa promessa de que remediaria todas
essas dificuldades, porque – e lá voltava a reaparecer o mesmo número! –
aumentaria a produção de petróleo para 6
milhões de barris/dia. Dado
que a produção existente era mais que suficiente para fazer operar o governo,
praticamente todos os novos rendimentos poderiam ser usados para reconstruir a
infraestrutura do país, fazer reviver o setor público e reabilitar os
devastados serviços públicos e os setores da indústria e da agricultura
nacionais.
O legado de corrupção da ocupação
pelos EUA
Apesar de seu sectarismo xiita óbvio,
os sunitas deram a Maliki tempo para cumprir as promessas eleitorais. Para
alguns, as esperanças aumentaram quando foram leiloados contratos de serviços
para empresas internacionais de petróleo, com o objetivo de aumentar a produção
para os tais seis milhões de barris fixados como meta a ser alcançada até 2020.
(Outros, é verdade, só viram aí mais e mais sucateamento, mau uso e desperdício
do tal “patrimônio nacional”). Muitos iraquianos sentiram-se mais confiantes
inicialmente, quando a produção
de petróleo começou a subir: em 2011, a marca dos tempos de
Saddam, de 2,5 milhões de barris/dia foi novamente alcançada; e em 2013 a produção finalmente
ultrapassou os 3 milhões de barris/dia.
Variação do preço do petróleo 6/2013 até 6/2014 |
Esses aumentos inflaram as esperanças
de que, afinal, começaria a reconstrução depois dos tempos de invasão e
ocupação norte-americana. Com os preços do petróleo sempre próximos
de US$ 100,ºº o barril, a
renda governamental mais
que dobrou, de cerca de US$ 50 bilhões em 2010 para mais de US$ 100
bilhões em 2013. Esse aumento, se fosse simplesmente distribuído diretamente à
população, teria constituído um subsídio de dez mil dólares para cada uma das 5
milhões de famílias do Iraque. Seria também utilíssimo “sinal” pago como
adiantamento para restaurar a economia iraquiana e os serviços sociais. (O
sistema elétrico, só esse, exige dezenas de bilhões de dólares de novos
investimentos só para repô-lo nos níveis inadequados de antes da invasão−ocupação
norte-americana).
Mas nada dessa riqueza do petróleo
reverteu como remédio para as dificuldades de base, sobretudo nas áreas sunitas
do país, onde praticamente não se veem sinais de reconstrução, desenvolvimento
econômico, serviços restaurados ou novos empregos. Em vez disso, a fortuna
gigantesca gerada nos novos ganhos do petróleo desapareceu nos meandros de um
governo que a ONG Transparência Internacional classifica como o sétimo mais
corrupto do planeta.
Reivindicar uma fatia do “Patrimônio
Nacional”
É onde o petróleo do Iraque, ou o
sumiço do dinheiro que o petróleo gera, entra em cena. Comunidades por todo o
Iraque, sobretudo nas sofredoras áreas sunitas, começaram
a exigir dinheiro para
a reconstrução, quase sempre apoiadas pelos governos locais e provinciais. Em
resposta, o governo Maliki passou a negar-se insistentemente a prover fundos do
petróleo para aqueles projetos, e passou a denunciar aquelas demandas como
esforços para negar fundos a imperativos orçamentários mais importantes. Dentre
esses imperativos “mais importantes” estavam dezenas de bilhões de dólares
necessários para comprar equipamentos
militares, que incluíam, em
2011, 18 jatos F-16, a
serem comprados dos EUA por US$ 4 bilhões.
F-16 da Força Aérea do Iraque |
Num raro momento de inteligência
irônica, a revista Time concluiu a cobertura da venda dos F-16 com
o
seguinte comentário: “A boa
notícia é que o negócio provavelmente manterá funcionando pelo menos por mais
um ano a fábrica de F-16s da Lockheed em Fort Worth. A má notícia é que só 70%
dos iraquianos têm acesso a água limpa, e só 25% conhecem esgotos”.
Deve-se fazer justiça a Maliki: seu
governo realmente usou uma parte das novas rendas do petróleo para começar a
reequipar as destruídas agências do estado e postos de atendimento das instituições
de serviço social, mas
virtualmente todos os novos empregos foram dados a xiitas em áreas sunitas, com
os sunitas continuando a ser demitidos dos serviços públicos. Esse desemprego
assustador – que implica, é claro, falta de dinheiro (do petróleo) em áreas
sunitas – foi o principal detonador do levante dos sunitas. Como escreveu
Patrick Cockburn, do Independent britânico:
Patrick Cockburn |
“Homens sunitas estavam sendo alienados por não ter emprego, porque os
fundos do estado estavam sendo consumidos noutros pontos; até serem demitidos,
sem aposentadoria ou pensão, depois de décadas de contribuição obrigatória para
o Partido Ba’ath. Um professor sunita, com 30 anos de serviço, recebeu em casa
um bilhete, passado por baixo da porta, que lhe dizia que não fosse trabalhar
no dia seguinte, porque havia sido demitido. ‘O que vou fazer?’ Como vou
alimentar minha família?’ – perguntou
ele”.
Com as condições sempre piorando, as
comunidades sunitas foram-se tornando mais insistentes, complementando as
reivindicações com comícios e manifestações às portas de prédios do governo,
bloqueios de estradas e ocupação como a da Praça Tahrir, em espaços públicos.
Maliki também escalou as respostas, mandando prender mensageiros políticos,
dispersando manifestações e, num momento chave, em 2013, “matando
dúzias” de manifestantes,
quando “forças de segurança abriram fogo contra um acampamento de sunitas que
protestavam”. Essa repressão e a continuada frustração local ante demandas
jamais atendidas, ajudaram a regenerar a espinha dorsal da resistência sunita
muito ativa durante a ocupação norte-americana. Quando as forças do governo
começaram a aplicar violência letal, começaram também os ataques de
guerrilheiros frequentes nas áreas norte e oeste de Bagdá – que as forças
norte-americanas de ocupação conheciam como “o triângulo sunita”.
Muitas dessas ações de guerrilha
visavam a assassinar funcionários do governo, polícia e – à medida que
aumentava a presença deles – soldados que Maliki enviava para reprimir os
protestos. O que chama a atenção, porém, é as mais determinadas, mais bem
planejadas, mais perigosas dessas respostas armadas visavam sempre instalações
da indústria do petróleo. Embora as áreas sunitas do Iraque não sejam grandes
centros de extração – mais de 90% do petróleo iraquiano é extraído em áreas
xiitas no sul e na região de Kirkuk controlada pelos curdos – há ali importantes
alvos. Além de vários pequenos campos, o “triângulo sunita” abriga
quase toda a extensão do único grande oleoduto que há no país (leva petróleo
para a Turquia); uma importante refinaria em Haditha; e o complexo petroleiro
de Baiji, que inclui uma usina de eletricidade que atende as províncias do
norte e uma refinaria que produz 310 mil barris/dia, um terço do total de
petróleo refinado que o país produz.
Petróleo e oleogasodutas nas regiões de Kirkuk e Curdistão iraquiano |
Nada há de novidade em ataques de
guerrilheiros locais a instalações do petróleo. No final de 2003, logo depois
que a ocupação norte-americana cortou o fluxo de rendas do petróleo para as
áreas sunitas, moradores locais recorreram a várias estratégias para parar a
produção ou a exportação, até receberem o que entendiam que era sua justa parte
daquela fortuna. O vulnerável oleoduto para a Turquia foi totalmente
paralisado, alvo de nada menos de 600 ataques. As instalações em Baiji e
Haditha conseguiram proteger-se de ataques dos insurgentes, porque permitiram
que líderes de tribos locais desviassem para oleodutos das próprias tribos uma
parte (muitas vezes, 20%) do petróleo que passava por suas terras. Depois que
os militares norte-americanos passaram a administrar essas instalações, no
início de 2007, e puseram fim aos acordos locais, as duas refinarias passaram a
ser alvos regulares de ataques cada dia mais graves e mais incapacitantes.
O oleoduto e as refinarias só voltaram
a operar com continuidade depois que os EUA deixaram a Província Anbar, e
Maliki, outra vez, prometeu aos líderes tribais locais e insurgentes
(frequentemente, as mesmas pessoas) uma quota de petróleo, em troca de “proteção”
que os locais dariam às instalações, contra assaltos e roubos. Esse acordo
perdurou por quase dois anos, mas quando o governo começou a atacar com
violência as manifestações de sunitas, a “proteção” foi suspensa.
Considerando esses desenvolvimentos de
um ponto de vista da indústria do petróleo, o jornal Iraq Oil Report,
publicação online que oferece a mais detalhada cobertura dos
desenvolvimentos do petróleo no Iraque, marcou aquele momento como momento
crucial da “deterioração da segurança”, lembrando que “as forças que protegem as instalações de petróleo (...) sempre,
historicamente, dependeram de alianças firmadas com locais, para assegurar
proteção duradoura e confiável”.
Lutar pelo petróleo
Iraq Oil Report obriu conscienciosamente as
consequências dessa situação de “segurança deteriorada”. “Desde o ano passado,
quando começaram a aumentar os ataques contra o oleoduto (turco)”, a North Oil Company, encarregada da
produção em áreas sunitas, registraram queda de 50% na produção. O gasoduto foi
definitivamente cortado dia 2 de março e desde então equipes de conserto e
manutenção têm sido “impedidas de acessar o local” onde houve o rompimento. O
oleoduto que alimenta o complexo de Baiji foi bombardeado dia 16/4/2014,
provocando gigantesco vazamento que tornou as águas do Rio Tigre impróprias
para consumo humano durante vários dias.
Depois de “numerosos” ataques no final
de 2013, a
empresa Sonangol Oil Company, empresa
estatal angolana de petróleo, invocou a cláusula de “força maior” no seu
contrato com o governo iraquiano e
abandonou quatro anos de trabalho de desenvolvimento
nos campos de Qaiyarah e Najmah, na província Nineveh. Em abril desse ano,
insurgentes sequestraram o presidente da refinaria de Haditha. Em junho,
tomaram possessão de uma fábrica deserta, depois que forças militares do
governo abandonaram o prédio no início do colapso do exército iraquiano na
segunda maior cidade do país, Mosul.
Potencial petrolífero e as províncias petrolíferas de Qaiyarah e Najmah ano norte do Iraque abandonadas pela Sonangol Oil Co. de Angola (clique na imagem para aumentar) |
Em resposta a essa maré crescente de
ataques da guerrilha, o governo Maliki escalou a repressão contra as
comunidades sunitas, punindo-as por “abrigar” os insurgentes. Mais e mais
soldados foram enviados para cidades consideradas centros de “terrorismo”, com
ordens para suprimir quaisquer modalidades de protesto. Em dezembro de 2013,
quando tropas governamentais começaram a usar força letal para esvaziar os
acampamentos de protestos que estavam bloqueando estradas e o comércio em
inúmeras cidades, o número de ataques de guerrilheiros contra os militares
cresceram muito rapidamente. Em janeiro, soldados
e oficiais abandonaram partes de Ramadi e toda a cidade de Fallujah,
duas cidades chaves no triângulo sunita.
Esse mês, enfrentando o que Patrick
Cockburn chamou de um “levante
geral”, 50 mil soldados
abandonaram suas armas em mãos dos guerrilheiros e fugiram de Mosul e de várias
outras cidades menores. Esse desenvolvimento aconteceu repentinamente, e foi
tratado como inesperado e surpreendente pela imprensa−empresa norte-americana,
mas, para Cockburn e vários observadores bem informados, o colapso do exército
em áreas sunitas “não foi surpresa”. Como Cockburn e outros disseram, os
soldados dessa força super-super corrompida “não estavam interessados em lutar
e morrer nos respectivos postos (...) porque a coisa, para eles, não passava de
meio para alimentar e dar teto às suas famílias”.
A fuga dos militares dessas cidades
imediatamente levou à retirada, pelo menos parcial, dos prédios nos complexos
do petróleo. Dia 13/6/2014, dois dias antes da queda de Mosul, o Iraq Oil
Report observou que a usina elétrica e outros prédios do complexo em Baiji
já estavam “sob controle de tribos locais”. Depois de um contra-ataque de
reforços governamentais, o complexo começou a ser referido como área
em disputa.
Iraq Oil Report caracterizou o ataque dos insurgentes
contra Baiji como “o que poderia ter sido tentativa para confiscar parte do
fluxo do dinheiro do petróleo iraquiano”. Se a ocupação de Baiji consolida-se,
a “zona de controle” poderá incluir também a refinaria Haditha, os campos de
petróleo de Qaiyarah e Hamrah, e “corredores chaves de infraestrutura, como o
Oleoduto Iraque−Turquia e al-Fatha, onde vários oleodutos e outras fontes
entregam petróleo, gás e gasolina para o centro e norte do país”.
Outras provas da intenção dos
insurgentes de controlar “uma porção do fluxo de dinheiro do petróleo” pode ser
encontrada nas primeiras ações empreendidas por guerrilheiros tribais, depois
que capturaram a usina elétrica de Baiji: “Os
militantes não causaram qualquer dano e instruíram os trabalhadores para que
mantivessem a usina ligada”, todos prontos para reiniciar a operação o mais
rapidamente possível. Políticas semelhantes foram aplicadas em campos de
petróleo capturados e na refinaria de Haditha. Embora a atual situação seja
muito incerta para permitir operação real e efetiva nessas unidades, o objetivo
geral dos militantes é bem claro. Estão tentando conseguir pela força o que
ninguém pode conseguir pelo processo político e pelos protestos: tomar posse de
porção significativa do produto das exportações de petróleo.
E os insurgentes parecem determinados
a começar o processo de reconstrução pelo qual Maliki não quis pagar. Apenas
alguns dias depois dessas vitórias, a Associated
Press noticiou que guerrilheiros estavam prometendo “gasolina e comida
barata” aos cidadãos de Mosul e a refugiados
que começavam a voltar. E que logo reiniciariam o fornecimento de
energia elétrica e de água, e removeriam as barricadas que impediam o tráfego
nas ruas e estradas. Assumidamente, o projeto seria financiado pelos mais de US$
450 milhões (dinheiro do petróleo), e pela grande
quantidade de ouro, que teria sido saqueada de um dos prédios do Banco Central do
Iraque e de outros bancos na área de Mosul.
Ouro roubado de Mosul |
O regime opressor de Saddam Hussein
foi minado pela insurgência; e quando a repressão viciosa falhou, Saddam teve
de entregar ao povo uma parte dos fartos ganhos do petróleo, sob a forma de
empregos públicos, serviços sociais e indústrias e agriculturas subsidiadas. A
ocupação opressora que os EUA impuseram ao Iraque foi minada pela insurgência
precisamente porque os EUA tentaram atrelar a enorme riqueza que é o petróleo
iraniano aos desígnios imperiais dos próprios EUA no Oriente Médio. O regime
opressor de Maliki está agora sendo minado pela insurgência, porque o
primeiro-ministro recusou-se a partilhar a sempre mesma vasta riqueza do
petróleo com o eleitorado sunita. É o petróleo, que está em disputa.
É o petróleo, estúpido!
_________________
Nota dos tradutores
[1] Creep − Literalmente
“superampliar a operação militar [muito além do previsto, recomendável, seguro
ou possível]”. É expressão que começou a ser usada na Somália em 1993 e passou
a integrar o Field Manual 3-07, Stability Operations and Support Operations
(fevereiro 2003) dos EUA, onde se registram dois tipos dessa superampliação:
(1) a “unidade militar recebe novas ordens, para as quais a
unidade não tem os recursos necessários ou não está adequadamente configurada”;
e
(2) “a unidade militar tenta fazer mais do que está autorizada
a fazer na missão em andamento”.
______________
[*] Michael Schwartz é distinguido como Professor Emérito de
Sociologia na Stony Brook State
University. Escreve regularmente e há muito tempo no Blog TomDispatch. Também
autor de inúmeros livros e artigos sobre protestos e insurgência populares e
dinâmicas corporativas. Seu livro mais recente é: War Without
End: The Iraq War in Context.
Recebe e-mails em: Michael.Schwartz@stonybrook.edu.
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