quinta-feira, 26 de junho de 2014

Tomgram: Michael Schwartz, A NOVA GUERRA DO PETRÓLEO NO IRAQUE

24/6/2014, [*] Michael SchwartzTomDispatch blog
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu


Apresentação de Tom Engelhardt



Obama falando sobre o Iraque em 19/6/2014
Imaginem o presidente Obama, falando sobre o Iraque diretamente da Sala de Imprensa da Casa Branca, dia 19/6/2014, 5ª-feira passada, com ar de cervo surpreendido de cara para os faróis do caminhão – e não é difícil adivinhar de que caminhão e de que faróis se tratava. Pode-se dizer que se tratava e trata-se de Benghazi super-inchada de esteroides. Se o assassinato de um embaixador dos EUA, de um oficial do Serviço Diplomático e de dois empregados de empresas de segurança contratadas pela CIA geraram quase dois anos de continuadas críticas enfurecidas vindas dos Republicanos e potencial dano ao “legado” do presidente... imaginem o que farão um Iraque em cacos e um estado terrorista que se estende por todo o Levante. Nem chega a surpreender, então, que um presidente regularmente descrito como “relutante” tenha mesmo assim marchado resolutamente ante a imprensa, e ali se pôs em marcha, em câmera lenta, bem lenta, de volta para dentro do Iraque e rumo ao desastre.

Foi momento de contradições impressionantes. Obama deu jeito, por exemplo, de alertar contra o perigo de “superampliação da missão” [or.mission creep [1]], apesar de tudo o que ele tem feito e dito não passar, precisamente, de “superampliação da missão”.

No início da semana, Obama comunicou ao Congresso que 275 soldados seriam mandados para o Iraque, a maioria para defender a embaixada-gigante dos EUA em Bagdá, que já foi o símbolo de quase ¾ de bilhão de dólares de húbris imperial e hoje não passa de elefante-branco exemplar. Mais 100 soldados vão também para lá, para apoio.

E na 5ª-feira (19/6/2014) o presidente acrescentou mais 300 “conselheiros militares” escolhidos nas forças de Operações Especiais e evidentemente com a missão de preencher os corredores de “novos centros de operação em Bagdá e no norte do Iraque, para partilhar inteligência e coordenar o planejamento para dar combate à ameaça terrorista”. (Se você já alcançou certa idade, a expressão “conselheiros militares” faz soar sinos de alerta que falam vietnamês. De fato, já se pode pressentir a fuzilaria). Obama também falou vagamente sobre posicionar “ativos militares adicionais dos EUA na região” – dentre os quais o porta-aviões USS George H.W. Bush, acompanhado de um cruzador e um destróier armados com mísseis teleguiados, que já partiram. E vejam bem: essa é só a parte pública, da qual todos podemos ser informados, de seja lá qual for a “estratégia” já em andamento. Ao mesmo tempo em que o presidente falava de estar “preparado para empreender ação militar focada e precisa” no Iraque, pelo menos um “alto funcionário do governo”, cujo nome não se conhece, já está inaugurando a possibilidade de ataques aéreos também contra a Síria. A frase sórdida com a qual o tal alto funcionário fez o que fez foi: “Não restringiremos a potencial ação dos EUA a um específico espaço geográfico”.

Em outras palavras, exceto pelo item “milhares e milhares de soldados & coturnos em solo”, a tal mesa sobre a qual sempre se mantêm “todas as opções” já foi visivelmente arrastada para a Sala de Guerra no Levante, em Washington.

Obama e a tal mesa...
É desenvolvimento importante para presidente que tanto se vangloria de ter-nos arrancado do Iraque (mesmo que a saída de ‘lá’ tenha sido arquitetada pelo governo Bush; quando funcionários de Obama tentaram negociar a possibilidade de deixar soldados “lá”, foram impedidos pelo governo do Iraque). Paralelamente aos movimentos militares, o presidente e sua equipe de segurança nacional, refletindo através de algum espelho escuro a “agenda democrática” da era Bush, também já parecem ter pintado os dedinhos com tinta roxa. Foram vistos pressionando políticos iranianos para derrubarem o primeiro-ministro Maliki e indicarem um governo de unidade – que guerreará a guerra que os EUA desejam. (Para aumentar o conteúdo farsesco do momento, um dos nomes lembrados para a posição de Maliki, caso Maliki venha a ser “regime-mudado”, é Ahmed Chalabi, queridinho dos funcionários de Bush e preferido DELES, para o mesmo posto).

Mas não há como a intervenção dos EUA não ser vista como movimento de apoio aos xiitas num conjunto incipiente de guerras civis, como até o general aposentado e ex-diretor da CIA, David Petraeus alertou semana passada. De fato, nas pesquisas de opinião, os norte-americanos rejeitam decididamente qualquer tipo de intervenção militar, tanto quanto qualquer movimento na era pós-11/9 só deve fazer lembrar lição única e simples: Não façam!

Dick Cheney
(por Pancho)
Mas Obama e seus principais funcionários evidentemente não conseguem não fazer. A maré montante de críticas já deve estar pré-ecoando, desde já, na cabeça deles – já antecipadas pelas vezes sem conta em que a imprensa-empresa dedica-se a entrevistar o senador John McCain e publica coorte sem fim de colunas com “pareceres” de comentaristas, do ex-vice-presidente Dick Cheney a L. Paul Bremmer III (cujo último emprego conhecido foi “pró-cônsul”), e outros da multidão de “especialistas” que inventaram o desastre chamado Iraque e para quem errar sobre o Iraque é feito que merece(ria) condecoração.

Estamos claramente nos estágios iniciais das apostas na intervenção. Os movimentos iniciais podem ser até ser saudados como auspiciosos, mas todo o cuidado é pouco quanto aos efeitos desestabilizantes de longo prazo, em região já caótica. Washington delira que pode(ria) controlar situações assim tão altamente combustíveis. De fato, jamais as controlou no passado e tampouco controlará dessa vez, o que significa que há à frente horrores ainda não vistos. (E esperem só até que, num desses centros de operações conjuntas, ou onde for, o primeiro soldado iraquiano, como fizeram os soldados afegãos, saque a arma e atire contra um daqueles “conselheiros” ocupantes). 

Só falta, agora, o toque final da versão Obama dessa “superampliação da missão”. Falo do gesto−assinatura do governo Obama em seus conflitos pelo Oriente Médio Expandido (e, cada dia mais, também pela África). Se prestar atenção, você já consegue ouvir a música−tema da era−Obama, surgindo ao fundo: “Que entrem os drones!”.

Importante é que, diga o que disser ou diga, o presidente Obama jamais pronuncia a palavra “petróleo”. Ninguém jamais, nunca, fala de petróleo. Bush também não falou, quando invadiu e ocupou o Iraque. Se só se considera a “informação” distribuída pelos veículos da imprensa−empresa, ninguém jamais sequer suspeitará que o Iraque flutua sobre o maior e mais acessível manancial de combustível fóssil que há no planeta! Não “dá no jornal” nem “dá na TV” – mas “petróleo” é o assunto que jamais, nem por um instante, sai da cabeça “deles”.

Hoje, felizmente, o sociólogo Michael Schwartz, há muito tempo colaborador regular de TomDispatch, volta, depois de longa ausência, para nos fazer lembrar o único fato absolutamente inapagável, da “questão iraquiana do qual ninguém fala, mas que ninguém pode esquecer ou perder de vista, nem por um segundo.

Tom

É o petróleo, estúpido!

Insurgência e guerra, num mar de petróleo

24/6/2014, [*] Michael Schwartz, TomDispatch

Os eventos no Iraque estão nas manchetes por toda parte e, mais uma vez, não se ouve nenhuma referência à questão que subjaz a praticamente toda a violência: o controle sobre o petróleo iraquiano. Em vez disso, a imprensa− empresa está inundada pelo debate sobre o horror dos horrores e longas análises de uma “ameaça terrorista” que de nova nada tem, o Estado Islâmico do Iraque e Síria (ISIS). Há também elaboradas discussões sobre a possibilidade de uma guerra civil que ameaça seja uma nova rodada de limpeza étnica seja o colapso do depauperado governo do primeiro−ministro Nouri al-Maliki.


O que há é “uma série de revoltas urbanas contra o governo”, como o especialista em Oriente Médio, Juan Cole, as classificou. Atualmente concentram-se em áreas sunitas do país e têm caráter marcadamente sectário, motivo pelo qual grupos como o ISIS prosperam e até ascendem à liderança em vários locais. Mas essas revoltas nem foram criadas nem são controladas pelo ISIS e seus vários milhares de combatentes. Envolvem também ex-colaboradores militares de Saddam Hussein e membros do Partido Baathista, milícias tribais e outros grupamentos. E pelo menos de forma incipiente não podem, de fato, ser restritos às áreas sunitas. Como o New York Times noticiou semana passada, a indústria do petróleo está preocupada “com o risco de os tumultos se alastrarem” para a cidade de Basra, ao sul, dominada pelos sunitas, onde “se concentram os principais campos de petróleo e instalações para exportação”.

Sob o ruidoso oceano de descontentamento sunita jaz um fator que continua a ser ignorado. Os insurgentes não são os únicos numa luta contra o que veem como opressão por um governo de maioria xiita em Bagdá e suas forças de segurança, mas luta em que se disputa também quem controlará e quem se beneficiará do que Maliki – falando por muitos de seus eleitores, em 2013 – disse ao Wall Street Journal que é o patrimônio nacional do Iraque.

A desconstrução do Iraque de Saddam Hussein

Alguém ainda lembra o que foi o Iraque há 12 anos, quando Saddam Hussein governava e os EUA estavam às vésperas de invadir o país? Por um lado, iraquianos, especialmente xiitas e curdos, sofreram sob a mão de ferro de um ditador feroz que pode ter matado 250 mil ou mais de seu próprio povo, em 25 anos de governo. Também lutavam contra as privações geradas pelas sanções econômicas impostas pelos EUA – e há especialistas que estimam que, naquele momento, haviam morrido 500 mil crianças iraquianas por doenças que se consideram efeitos das sanções.

Por outro lado, o país tinha várias indústrias bem sucedidas, orientadas para a exportação, como artigos de couro e produtos agrícolas (tâmaras), que davam empregos a centenas de milhares de parentes dos relativamente bem remunerados trabalhadores e empreendedores. Havia também operante uma infraestrutura para energia elétrica e água, e de administração e operação de estradas (todas em decadência, também por efeito das sanções impostas pelos EUA). O Iraque tinha então, sobretudo, um sistema de educação primária e superior considerado o melhor de toda a Região e o melhor sistema (universal e gratuito) de assistência à saúde de todo o Oriente Médio. Numa nação de 27 milhões de habitantes, também tinha – em comparação com outros países na área – uma grande classe média de 3 milhões de cidadãos, grande parte dos quais empregados no serviço público.

O dinheiro para manter todos esses serviços fluía de uma única fonte: os 2,5 milhões de barris de petróleo que o Iraque produzia diariamente. A renda diária da venda do “patrimônio nacional” mantinha a superestrutura econômica do país. O orçamento iraquiano baseado no petróleo era tão abundante, que mantinha Hussein com vários palácios, enriqueceu a família e os aliados dele e financiou várias guerras em outros países e contra curdos e xiitas iraquianos.

Essa mistura de opressão e prosperidade acabou na invasão norte-americana. Apesar de negar que tocaria no “patrimônio” do Iraque, o governo Bush saltou diretamente sobre os ganhos do petróleo, desviando-os da economia para um “pagamento da dívida” e na sequência, imediatamente depois, para uma campanha de pacificação. Apesar das promessas de Washington de que, sob a ocupação dos EUA, a produção logo subiria para 6 milhões de barris/dia, a luta para tirar dos iraquianos o controle sobre a produção de energia acabou por atingir a indústria e reduzir a produção em 40%.

De fato, o governo ocupante foi um vendaval de destruição econômica. 

Campos de petróleo, refinarias e oleodutos no Iraque
(clique na imagem para aumentar)
Imediatamente começou a desmantelar todas as unidades de produção controladas pelo estado (e mantidas pelo dinheiro do petróleo), o que levou à falência as indústrias privadas que dependiam delas. Destroçou em seguida a agricultura comercial, tanto por interromper os subsídios que o petróleo gerava e o governo Saddam distribuía, como, também, nos ataques aéreos contra insurgentes em áreas rurais. O governo dos EUA como governo de ocupação no Iraque impôs medidas de “austeridade” e um programa de “des-Baathificação” dos sistemas públicos de educação e de assistência à saúde no Iraque – que os destruiu completamente.

Dado que muitos iraquianos em posição de destaque não tinham alternativa além de alistar-se no Partido Baath de Saddam, a ocupação norte-americana foi desastre de proporções gigantescas para profissionais liberais de classe média, que se viram desempregados ou no exílio em países vizinhos. Sob administração do governo dos EUA ocupantes, quase sempre sob condições terríveis, o efeito da má administração da infraestrutura elétrica, do fornecimento de água e de estradas foi devastador. Acrescente a isso os efeitos das campanhas de bombardeio e a privatização dos serviços de manutenção e aí está a fórmula para um desastre duradouro.

Quando, em 2009, o governo Obama começou a retirar tropas de combate norte-americanas do Iraque, os iraquianos em todo o país – mas especialmente nas áreas de maioria sunita – enfrentaram desemprego de 60% da população, fornecimento de energia elétrica reduzido a poucas horas por dia, sistemas de distribuição de água destruídos ou contaminados, aulas suspensas ou inexistentes, sistema de assistência médica completamente destruído e ausência quase total de transporte de massa, fosse público ou privado.

Nouri al-Maliki
Poucos lembram, no ocidente, mas em 2010 Maliki baseou sua campanha eleitoral numa promessa de que remediaria todas essas dificuldades, porque – e lá voltava a reaparecer o mesmo número! – aumentaria a produção de petróleo para 6 milhões de barris/dia. Dado que a produção existente era mais que suficiente para fazer operar o governo, praticamente todos os novos rendimentos poderiam ser usados para reconstruir a infraestrutura do país, fazer reviver o setor público e reabilitar os devastados serviços públicos e os setores da indústria e da agricultura nacionais.

O legado de corrupção da ocupação pelos EUA

Apesar de seu sectarismo xiita óbvio, os sunitas deram a Maliki tempo para cumprir as promessas eleitorais. Para alguns, as esperanças aumentaram quando foram leiloados contratos de serviços para empresas internacionais de petróleo, com o objetivo de aumentar a produção para os tais seis milhões de barris fixados como meta a ser alcançada até 2020. (Outros, é verdade, só viram aí mais e mais sucateamento, mau uso e desperdício do tal “patrimônio nacional”). Muitos iraquianos sentiram-se mais confiantes inicialmente, quando a produção de petróleo começou a subir: em 2011, a marca dos tempos de Saddam, de 2,5 milhões de barris/dia foi novamente alcançada; e em 2013 a produção finalmente ultrapassou os 3 milhões de barris/dia.

Variação do preço do petróleo 6/2013 até 6/2014
Esses aumentos inflaram as esperanças de que, afinal, começaria a reconstrução depois dos tempos de invasão e ocupação norte-americana. Com os preços do petróleo sempre próximos de US$ 100,ºº o barril, a renda governamental mais que dobrou, de cerca de US$ 50 bilhões em 2010 para mais de US$ 100 bilhões em 2013. Esse aumento, se fosse simplesmente distribuído diretamente à população, teria constituído um subsídio de dez mil dólares para cada uma das 5 milhões de famílias do Iraque. Seria também utilíssimo “sinal” pago como adiantamento para restaurar a economia iraquiana e os serviços sociais. (O sistema elétrico, só esse, exige dezenas de bilhões de dólares de novos investimentos só para repô-lo nos níveis inadequados de antes da invasão−ocupação norte-americana).

Mas nada dessa riqueza do petróleo reverteu como remédio para as dificuldades de base, sobretudo nas áreas sunitas do país, onde praticamente não se veem sinais de reconstrução, desenvolvimento econômico, serviços restaurados ou novos empregos. Em vez disso, a fortuna gigantesca gerada nos novos ganhos do petróleo desapareceu nos meandros de um governo que a ONG Transparência Internacional classifica como o sétimo mais corrupto do planeta.

Reivindicar uma fatia do “Patrimônio Nacional”

É onde o petróleo do Iraque, ou o sumiço do dinheiro que o petróleo gera, entra em cena. Comunidades por todo o Iraque, sobretudo nas sofredoras áreas sunitas, começaram a exigir dinheiro para a reconstrução, quase sempre apoiadas pelos governos locais e provinciais. Em resposta, o governo Maliki passou a negar-se insistentemente a prover fundos do petróleo para aqueles projetos, e passou a denunciar aquelas demandas como esforços para negar fundos a imperativos orçamentários mais importantes. Dentre esses imperativos “mais importantes” estavam dezenas de bilhões de dólares necessários para comprar equipamentos militares, que incluíam, em 2011, 18 jatos F-16, a serem comprados dos EUA por US$ 4 bilhões.

F-16 da Força Aérea do Iraque
Num raro momento de inteligência irônica, a revista Time concluiu a cobertura da venda dos F-16 com o seguinte comentário: “A boa notícia é que o negócio provavelmente manterá funcionando pelo menos por mais um ano a fábrica de F-16s da Lockheed em Fort Worth. A má notícia é que só 70% dos iraquianos têm acesso a água limpa, e só 25% conhecem esgotos”.

Deve-se fazer justiça a Maliki: seu governo realmente usou uma parte das novas rendas do petróleo para começar a reequipar as destruídas agências do estado e postos de atendimento das instituições de serviço social, mas virtualmente todos os novos empregos foram dados a xiitas em áreas sunitas, com os sunitas continuando a ser demitidos dos serviços públicos. Esse desemprego assustador – que implica, é claro, falta de dinheiro (do petróleo) em áreas sunitas – foi o principal detonador do levante dos sunitas. Como escreveu Patrick Cockburn, do Independent britânico:

Patrick Cockburn
“Homens sunitas estavam sendo alienados por não ter emprego, porque os fundos do estado estavam sendo consumidos noutros pontos; até serem demitidos, sem aposentadoria ou pensão, depois de décadas de contribuição obrigatória para o Partido Ba’ath. Um professor sunita, com 30 anos de serviço, recebeu em casa um bilhete, passado por baixo da porta, que lhe dizia que não fosse trabalhar no dia seguinte, porque havia sido demitido. ‘O que vou fazer?’ Como vou alimentar minha família?’perguntou ele.

Com as condições sempre piorando, as comunidades sunitas foram-se tornando mais insistentes, complementando as reivindicações com comícios e manifestações às portas de prédios do governo, bloqueios de estradas e ocupação como a da Praça Tahrir, em espaços públicos. Maliki também escalou as respostas, mandando prender mensageiros políticos, dispersando manifestações e, num momento chave, em 2013, matando dúzias de manifestantes, quando “forças de segurança abriram fogo contra um acampamento de sunitas que protestavam”. Essa repressão e a continuada frustração local ante demandas jamais atendidas, ajudaram a regenerar a espinha dorsal da resistência sunita muito ativa durante a ocupação norte-americana. Quando as forças do governo começaram a aplicar violência letal, começaram também os ataques de guerrilheiros frequentes nas áreas norte e oeste de Bagdá – que as forças norte-americanas de ocupação conheciam como “o triângulo sunita”.

Muitas dessas ações de guerrilha visavam a assassinar funcionários do governo, polícia e – à medida que aumentava a presença deles – soldados que Maliki enviava para reprimir os protestos. O que chama a atenção, porém, é as mais determinadas, mais bem planejadas, mais perigosas dessas respostas armadas visavam sempre instalações da indústria do petróleo. Embora as áreas sunitas do Iraque não sejam grandes centros de extração – mais de 90% do petróleo iraquiano é extraído em áreas xiitas no sul e na região de Kirkuk controlada pelos curdos – há ali importantes alvos. Além de vários pequenos campos, o “triângulo sunita” abriga quase toda a extensão do único grande oleoduto que há no país (leva petróleo para a Turquia); uma importante refinaria em Haditha; e o complexo petroleiro de Baiji, que inclui uma usina de eletricidade que atende as províncias do norte e uma refinaria que produz 310 mil barris/dia, um terço do total de petróleo refinado que o país produz.

Petróleo  e oleogasodutas nas regiões de Kirkuk e Curdistão iraquiano
Nada há de novidade em ataques de guerrilheiros locais a instalações do petróleo. No final de 2003, logo depois que a ocupação norte-americana cortou o fluxo de rendas do petróleo para as áreas sunitas, moradores locais recorreram a várias estratégias para parar a produção ou a exportação, até receberem o que entendiam que era sua justa parte daquela fortuna. O vulnerável oleoduto para a Turquia foi totalmente paralisado, alvo de nada menos de 600 ataques. As instalações em Baiji e Haditha conseguiram proteger-se de ataques dos insurgentes, porque permitiram que líderes de tribos locais desviassem para oleodutos das próprias tribos uma parte (muitas vezes, 20%) do petróleo que passava por suas terras. Depois que os militares norte-americanos passaram a administrar essas instalações, no início de 2007, e puseram fim aos acordos locais, as duas refinarias passaram a ser alvos regulares de ataques cada dia mais graves e mais incapacitantes.

O oleoduto e as refinarias só voltaram a operar com continuidade depois que os EUA deixaram a Província Anbar, e Maliki, outra vez, prometeu aos líderes tribais locais e insurgentes (frequentemente, as mesmas pessoas) uma quota de petróleo, em troca de “proteção” que os locais dariam às instalações, contra assaltos e roubos. Esse acordo perdurou por quase dois anos, mas quando o governo começou a atacar com violência as manifestações de sunitas, a “proteção” foi suspensa.

Considerando esses desenvolvimentos de um ponto de vista da indústria do petróleo, o jornal Iraq Oil Report, publicação online que oferece a mais detalhada cobertura dos desenvolvimentos do petróleo no Iraque, marcou aquele momento como momento crucial da “deterioração da segurança”, lembrando que “as forças que protegem as instalações de petróleo (...) sempre, historicamente, dependeram de alianças firmadas com locais, para assegurar proteção duradoura e confiável”. 

Lutar pelo petróleo

Iraq Oil Report  obriu conscienciosamente as consequências dessa situação de “segurança deteriorada”. “Desde o ano passado, quando começaram a aumentar os ataques contra o oleoduto (turco)”, a North Oil Company, encarregada da produção em áreas sunitas, registraram queda de 50% na produção. O gasoduto foi definitivamente cortado dia 2 de março e desde então equipes de conserto e manutenção têm sido “impedidas de acessar o local” onde houve o rompimento. O oleoduto que alimenta o complexo de Baiji foi bombardeado dia 16/4/2014, provocando gigantesco vazamento que tornou as águas do Rio Tigre impróprias para consumo humano durante vários dias.

Depois de “numerosos” ataques no final de 2013, a empresa Sonangol Oil Company, empresa estatal angolana de petróleo, invocou a cláusula de “força maior” no seu contrato com o governo iraquiano e abandonou quatro anos de trabalho de desenvolvimento nos campos de Qaiyarah e Najmah, na província Nineveh. Em abril desse ano, insurgentes sequestraram o presidente da refinaria de Haditha. Em junho, tomaram possessão de uma fábrica deserta, depois que forças militares do governo abandonaram o prédio no início do colapso do exército iraquiano na segunda maior cidade do país, Mosul.

Potencial petrolífero e as províncias petrolíferas de Qaiyarah e Najmah ano norte do Iraque abandonadas pela Sonangol Oil Co. de Angola (clique na imagem para aumentar)
Em resposta a essa maré crescente de ataques da guerrilha, o governo Maliki escalou a repressão contra as comunidades sunitas, punindo-as por “abrigar” os insurgentes. Mais e mais soldados foram enviados para cidades consideradas centros de “terrorismo”, com ordens para suprimir quaisquer modalidades de protesto. Em dezembro de 2013, quando tropas governamentais começaram a usar força letal para esvaziar os acampamentos de protestos que estavam bloqueando estradas e o comércio em inúmeras cidades, o número de ataques de guerrilheiros contra os militares cresceram muito rapidamente. Em janeiro, soldados e oficiais abandonaram partes de Ramadi e toda a cidade de Fallujah, duas cidades chaves no triângulo sunita.

Esse mês, enfrentando o que Patrick Cockburn chamou de um levante geral, 50 mil soldados abandonaram suas armas em mãos dos guerrilheiros e fugiram de Mosul e de várias outras cidades menores. Esse desenvolvimento aconteceu repentinamente, e foi tratado como inesperado e surpreendente pela imprensa−empresa norte-americana, mas, para Cockburn e vários observadores bem informados, o colapso do exército em áreas sunitas “não foi surpresa”. Como Cockburn e outros disseram, os soldados dessa força super-super corrompida “não estavam interessados em lutar e morrer nos respectivos postos (...) porque a coisa, para eles, não passava de meio para alimentar e dar teto às suas famílias”. 

A fuga dos militares dessas cidades imediatamente levou à retirada, pelo menos parcial, dos prédios nos complexos do petróleo. Dia 13/6/2014, dois dias antes da queda de Mosul, o Iraq Oil Report observou que a usina elétrica e outros prédios do complexo em Baiji já estavam “sob controle de tribos locais”. Depois de um contra-ataque de reforços governamentais, o complexo começou a ser referido como área em disputa.

Iraq Oil Report caracterizou o ataque dos insurgentes contra Baiji como “o que poderia ter sido tentativa para confiscar parte do fluxo do dinheiro do petróleo iraquiano”. Se a ocupação de Baiji consolida-se, a “zona de controle” poderá incluir também a refinaria Haditha, os campos de petróleo de Qaiyarah e Hamrah, e “corredores chaves de infraestrutura, como o Oleoduto Iraque−Turquia e al-Fatha, onde vários oleodutos e outras fontes entregam petróleo, gás e gasolina para o centro e norte do país”.

Outras provas da intenção dos insurgentes de controlar “uma porção do fluxo de dinheiro do petróleo” pode ser encontrada nas primeiras ações empreendidas por guerrilheiros tribais, depois que capturaram a usina elétrica de Baiji: “Os militantes não causaram qualquer dano e instruíram os trabalhadores para que mantivessem a usina ligada”, todos prontos para reiniciar a operação o mais rapidamente possível. Políticas semelhantes foram aplicadas em campos de petróleo capturados e na refinaria de Haditha. Embora a atual situação seja muito incerta para permitir operação real e efetiva nessas unidades, o objetivo geral dos militantes é bem claro. Estão tentando conseguir pela força o que ninguém pode conseguir pelo processo político e pelos protestos: tomar posse de porção significativa do produto das exportações de petróleo.

E os insurgentes parecem determinados a começar o processo de reconstrução pelo qual Maliki não quis pagar. Apenas alguns dias depois dessas vitórias, a Associated Press noticiou que guerrilheiros estavam prometendo “gasolina e comida barata” aos cidadãos de Mosul e a refugiados que começavam a voltar. E que logo reiniciariam o fornecimento de energia elétrica e de água, e removeriam as barricadas que impediam o tráfego nas ruas e estradas. Assumidamente, o projeto seria financiado pelos mais de US$ 450 milhões (dinheiro do petróleo), e pela grande quantidade de ouro, que teria sido saqueada de um dos prédios do Banco Central do Iraque e de outros bancos na área de Mosul.

Ouro roubado de Mosul
O regime opressor de Saddam Hussein foi minado pela insurgência; e quando a repressão viciosa falhou, Saddam teve de entregar ao povo uma parte dos fartos ganhos do petróleo, sob a forma de empregos públicos, serviços sociais e indústrias e agriculturas subsidiadas. A ocupação opressora que os EUA impuseram ao Iraque foi minada pela insurgência precisamente porque os EUA tentaram atrelar a enorme riqueza que é o petróleo iraniano aos desígnios imperiais dos próprios EUA no Oriente Médio. O regime opressor de Maliki está agora sendo minado pela insurgência, porque o primeiro-ministro recusou-se a partilhar a sempre mesma vasta riqueza do petróleo com o eleitorado sunita. É o petróleo, que está em disputa.

É o petróleo, estúpido!
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Nota dos tradutores
[1] Creep − Literalmente “superampliar a operação militar [muito além do previsto, recomendável, seguro ou possível]”. É expressão que começou a ser usada na Somália em 1993 e passou a integrar o Field Manual 3-07, Stability Operations and Support Operations (fevereiro 2003) dos EUA, onde se registram dois tipos dessa superampliação:
(1) a “unidade militar recebe novas ordens, para as quais a unidade não tem os recursos necessários ou não está adequadamente configurada”; e
(2) “a unidade militar tenta fazer mais do que está autorizada a fazer na missão em andamento”.
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[*] Michael Schwartz é distinguido como Professor Emérito de Sociologia na Stony Brook State University. Escreve regularmente e há muito tempo no Blog TomDispatch. Também autor de inúmeros livros e artigos sobre protestos e insurgência populares e dinâmicas corporativas. Seu livro mais recente é: War Without End: The Iraq War in Context. 
Recebe e-mails em: Michael.Schwartz@stonybrook.edu.

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