terça-feira, 3 de junho de 2014

Ucrânia & Europa: Crise encontra seu centro e seu significado

2/6/2014, [*] Philippe Grasset, Blog DeDefensa, Bélgica
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Bilhetinho do tradutor deixado no quiosque do Plisnou (veio junto com a tradução): Traduzi, sim, embora só tenha entendido DEPOIS de ler três vezes. Não sei por que as pessoas supõem que as coisas escritas e faladas “deveriam” ser fáceis – e estúpidas – como “análises” da Loprete ou do Celso “no shoes” Lafer [risos, risos]. É nóiz! Vai Curíntião! Dá-le Timão!

Eleições na Europa - 2014
Jamais na história da “Europa dos Pais Fundadores” deu-se à questão da nomeação do novo presidente da Comissão Europeia (CE) tanta importância política, que ultrapassa até a importância da própria política interna europeia (ver 31/5/2014). O caso assumiu ao mesmo tempo peso político fundamental e peso simbólico, diretamente ligados ao significado profundo da eleição europeia do dia 25 de maio de 2014 – ele também, o escrutínio, de importância política e simbólica sem precedentes, em relação ao habitual desinteresse do eleitor, e dos políticos dirigentes em relação ao eleitor.

Em resumo, avaliamos que esse conjunto crísico é, ele próprio, indiretamente, mas poderosamente, ligado por elo psicológico muito forte à crise ucraniana, dado o papel de detonador de um dos principais atores que disputavam a Europa, e especificamente a Comissão Europeia, para a qual se busca novo presidente nessa atmosfera de afrontamento político.

À luz desses fatos entendemos que a situação apresenta traço original e inédito, com esse laço firmemente estabelecido entre duas crises, as quais se pode ser tentado, de um ponto de vista padrão e eventualmente Sistema-padrão (pelas normas do Sistema), a analisar separadamente.

Jean-Claude Junker
O lugar central é ocupado no affaire europeu em curso, por Jean-Claude Juncker, principal candidato à presidência da Comissão Europeia, e candidato particularmente confiante nas próprias chances, o que obriga a fazer um debate de fundo. Esse debate é não só ampliado de modo dramático, mas diretamente produzido pelos resultados das eleições europeias, que põem vários governantes europeus em posições muito difíceis.

O “pouco-me-importa” de Juncker, quando lhe perguntaram sobre a avançada dos eurocéticos nas eleições de 25 de maio de 20145, ilustra bem a polarização das posições antagonistas no seio dessa fase crísica. Ao contrário de Juncker, bem ao contrário, essa avançada eurocética diz respeito a domínios europeus fundamentais para vários dirigentes europeus, que se encontram em posições ambíguas, não raro desconfortáveis, com frequência, pois determinadas contra seus engajamentos habituais pela pressão dos respectivos eleitores. Há inúmeros sinais pois, que dão corpo ao mal-estar e indicam que a Europa oficial, institucionalizada tanto em Bruxelas como nas capitais dos estados-membros, entrou novamente na zona ontológica da própria crise – já explorada quando dos debates pós-referendos de 2005, e depois empurrada de lado pelas crises financeira e econômica, a partir de 2009-2010.

(Aquela crise desde 2009-2010 foi evidentemente crise muito potente e suscitou vários episódios dramáticos além de consequências particularmente dolorosas que afetam hoje a maioria dos países europeus, mas, num certo sentido, não dizia respeito à questão ontológica da Europa, porque se tratava essencialmente do efeito europeu de uma crise setorial mundial que afetava os setores financeiro e bancário. Ao contrário, com certeza, aquela crise preparou o episódio atual, pois pôs às claras a forma de reação da Europa àquela crise setorial mundial; e pôs em evidência o modo como a direção institucional da Europa reagiu em relação aos interesses e ao bem-estar das populações de vários de seus estados-membros).

• Um dos sinais mais tangíveis, mais concretos, dessa crise que se cristaliza atualmente em torno da candidatura de Juncker à presidência da Comissão Europeia, vem essencialmente do Reino Unido e, em menor medida, da França, os dois países mais tocados pelos votos dos eurocéticos do 25 de maio 2014 (28% para o Partido Independente do Reino Unido, [ing. UKIP]; 25% para a Frente Nacional na França, com os dois partidos eurocéticos em primeiro lugar em seus respectivos países).

O The Guardian de 1/6/2014 explica, sobre a posição de Cameron versus Juncker, que se trata, nada menos, segundo o primeiro-ministro britânico, que da saída do Reino Unido da União Europeia:

David Cameron
Em artigo publicado ainda em versão não confirmada, [a revista alemã] Spiegel noticia que o primeiro-ministro [Cameron] explicara, nos bastidores de uma reunião da União Europeia em Bruxelas na 3ª-feira (27/5/2014), que se Juncker vier a ser presidente da Comissão Europeia, Cameron não poderá assegurar que a Grã-Bretanha permanecerá como estado-membro. A revista disse que participantes entenderam que os comentários de Cameron significavam que uma maioria de votos para Juncker desestabilizaria o governo de Cameron a tal ponto que teria de ser feito um referendo sobre se o país “fica-ou-sai”. E que desse referendo, por sua vez, como entenderam os interlocutores de Cameron, o mais provável seria que o povo britânico prefira separar-se da União Europeia – como dizia a revista.

Le Monde, por sua vez, foi à caça de informações sobre a França na imprensa alemã, que parece ser a via preferencial para notícias sobre os outros países europeus (de 1/6/2014):

François Hollande
Sábado, 31 de maio de 2014, vários jornais alemães publicam críticas que estão subindo de tom. Segundo o Bild, o presidente francês François Hollande também teria dado a conhecer suas reservas à promoção de Jean-Claude Juncker ao posto de presidente da Comissão Europeia. François Hollande teria informado essa semana à chanceler alemã Angela Merkel que ele tinha de dar “um sinal” aos seus eleitores, depois do sucesso do Front National nas eleições do domingo passado. “[Hollande] pressionou na direção de um programa de investimentos de grande envergadura e pôs na mesa o nome de seu ex-ministro das Finanças, Pierre Moscovici” – escreveu o Bild, sem citar fontes.

Ah, sim, não há dúvidas... Será interessante ver o que resultará dessas duas pressões, britânica e francesa, aplicadas na direção da suprema juíza-árbitra europeia, Angela Merkel – cujo embaraço já é evidente. O efeito será boa indicação das tendências europeias em curso, com futuras peripécias, seja qual for a via escolhida. Enquanto se espera, essa ocorrência resume a situação europeia, em total contraste com os anos 1990, quando a França era o polo unificador da Europa, fosse com a Alemanha, para as matérias institucionais (o euro), fosse com o Reino Unido, para matérias de segurança (o tratado de Saint-Malo).

Nicolas Sarkozy
Para a Alemanha, o problema é que a situação é menos o resultado de seu próprio aumento de poderio, que do enfraquecimento dos seus dois parceiros, que já se aproxima da quase-dissolução, no caso da França, que perdeu toda a autonomia soberana depois de 2008-2009, com os presidentes Sarkozy e Hollande violentando a legitimidade soberana da função, impotentes para dela extrair a essência.

A verdadeira conclusão dessa evolução não está tanto na emergência da Alemanha, mas, mais, no nível da própria Europa institucional, que efetivamente ganhou em potência em relação aos estados-membros e pelo abandono de diversas soberanias dos estados-membros. Em termos de resultado geral: de um lado, uma extrema confusão da ação europeia (da qual a crise ucraniana é boa ilustração); de outro lado, uma crise fundamental da própria ideia europeia (da qual a votação de 25 de maio é boa ilustração).

• Essa crise da ideia europeia ou do “sonho europeu” está exposta e comentada por colaborador do The Observer, William Keegan, dia 31/5/2014:

O sonho da União Europeia ameaçado pela austeridade e pela desarmonia: problemas estruturais com a eurozona e dificuldades econômicas afundaram o projeto do pós-guerra numa fase crítica...

Keegan só faz confirmar a profundidade da crise europeia que tem, claro, sua especificidade e não pode continuar a ser apresentada como consequência de crises exteriores. A Europa já é produtora de crises.

Giscard d'Estaing
Um dos destacados sucessores, décadas depois, de Monnet e Schuman, foi Valéry Giscard d'Estaing o qual, como presidente da França na segunda metade dos anos 1970s, foi participante destacado na formação do sistema monetário europeu e do mecanismo da taxa de câmbio, precursos da união monetária e do euro. Chama a atenção que, em recente entrevista ao Financial Times, Giscard observava: “Dizem que as pessoas estão votando contra a Europa – mas não é verdade. Estão votando contra o que a Europa está fazendo mal feito”. Para Giscard, o problema é o mau gerenciamento, não a estrutura básica, da eurozona. Se lesse o oportuno novo livro de Philippe Legrain, European Spring – Why Our Economies and Politics are in a Mess [Primavera europeia – Por que nossa economia e política estão nessa confusão], se sentiria mais inclinado a aceitar que a estrutura fundamental da eurozona também leva boa parte da culpa.

Legrain, ex-conselheiro econômico do presidente da Comissão Europeia, oferece relato vivo, de quem conhece por dentro o quanto a elite política e econômica europeia reagiu mal à crise financeira. Como no Reino Unido, o diagnóstico errado aconteceu quando puseram praticamente toda a culpa no suposto ‘'excesso'’ de gastos públicos – uma análise que talvez se aplicasse à Grécia, mas não se aplicava aos demais países – como oposto ao arrocho no crédito.

• A analista russa Natalia Meden, de Strategic-Culture.org teve a feliz ideia, dia 31/5/2014, de desenvolver uma reflexão na qual aproxima firmemente a crise ucraniana e a crise europeia na fase em que está. Meden assume, sem dizê-lo explicitamente e sequer sem se dar conta necessariamente, a ideia de que a Europa já é produtora de crises; e acrescenta a ideia de que “a Europa produtora de crises” está ela mesma tão debilitada por suas próprias crises, que não consegue levar a termo, eventualmente com vantagem para ela, as crises exteriores que suscita.

Poroshenko
Meden observa com razão, no título e nos termos que utiliza, que a Europa já não tem, depois de 25 de maio, “a intenção de assumir como seu encargo a faxina das Cavalariças de Augias de Porochenko”.

Observa bem que, de repente, a Ucrânia caiu para as páginas internas e na sequência, para a última página da imprensa-Sistema, com as páginas principais ocupadas com notícias da crise europeia, na sequência do 25 de maio de 2014. Parece, sim, que Meden toca justamente o ponto essencial nessa circunstância: saber que a Europa, repentinamente confrontada à sua crise ontológica, não tem mais qualquer intenção, nem de dedicar muita atenção, nem muitos esforços, nem muitos recursos, para resolver uma crise ucraniana, que passa ao segundo plano, que se torna quase sem sentido, posta de lado, quase obscena na sua prentensão de fazer-se ver como se fosse importante problema europeu... (O que não impede, é claro, que permaneça como tal, porque as forças superiores produtoras dos eventos em curso não têm controle sobre as “intenções” dos figurantes-Sistemas daqueles mesmos eventos).

“Como por efeito de uma varinha mágica, a imprensa-empresa-Sistema europeia parou de intimidar as pessoas com a ‘a ameaça vinda do leste’, que as eleições presidenciais na Ucrânia consolidariam. A ameaça pareceu especialmente terrível num momento em que a Europa marca o 100º aniversário do início da Iª Guerra Mundial. Faz lembrar como os “Longos Tiros de Sarajevo” levaram o caldeirão ao ponto de ebulição, com o assassinato do Arquiduque Franz Ferdinand.

Angela Merkel
“A chanceler Angela Merkel inaugurou grande exibição que marca o centenário da Iª. Guerra Mundial, em Berlim, dia 28 de maio. Em seu discurso, evitou qualquer menção ao crescimento da tensão no coração da Europa. A elite europeia tem outras dores de cabeça, além da Ucrânia pós-Maidan. É hora de redesenhar a paisagem política de Bruxelas, o que é muito mais importante que limpar as Cavalariças de Augias de Poroshenko...

“Quem será o próximo presidente da Comissão Europeia, eis a questão! Será Jean-Claude Juncker ou o candidato dos socialistas, Martin Schultz? Günther Oettinger, Comissário Europeu para Energia, permanecerá como membro da Comissão Europeia e, nesse caso, em que cargo? Em resumo, os resultados da eleição europeia e os eventos posteriores fizeram empalidecer a importância da crise ucraniana, que já se vai convertendo em problema endêmico. O golpe de Maidan faz lembrar a “Primavera Árabe” e, em especial, o Egito. Não há meio pelo qual a Ucrânia consiga dar jeito naquela confusão e ultrapassar a crise, não, com certeza, em pouco tempo. Alé do mais, por quanto tempo Poroshenko manterá a própria posição, com o país balançando à beira de despencar num abismo político e econômico?”

Sente-se que esses diferentes aspectos exigem ser reunidos e integrados numa mesma lógica, numa mesma dinâmica. O que se passa nesse momento para a Europa é uma integração completa e total na crise geral de civilização que conhecemos, ou “crise do naufrágio do Sistema”.

De ilha de estabilidade e aparente perenidade ao mesmo tempo poderosa e gigante – coisa rara, em matéria de ilha –, de artefato miraculoso que parecia conhecer a receita para o futuro (fórmula de uma governança virtuosa), que vez ou outra exportava alguns itens daquela receita (imediatamente transcritos em desordens suplementares por aquele que foram e são os felizes recipiendários), a Europa transformou-se num centro de crise, ao mesmo tempo produtor de crises no próprio seio e em volta dela. Depois de ter parecido que se desenvolvia com suficiência indubitável e autoconfiança, sem a mínima hesitação, superpotência sem risco excessivo (de conflitos, sobretudo), a Europa bruscamente se transformou. Passou a ser ela própria a crise e produtora de crises, as quais produzem autodestruição.

A Europa pois está perfeitamente integrada como ator ativo e ardente na dinâmica superpotência-autodestruição, da crise do afundamento do Sistema.

Nessa fase, o episódio ucraniano é evento fundamental, evento fundador – e não se pode compreender essa crise, nesse caso, conforme o modo específico de ver que adotemos para essa análise; para compreendê-la é preciso pô-la em conjunção com a crise europeia, como detonadora daquela crise europeia, etc. Por isso nos aplicamos aqui ao exercício de ligar absolutamente os eventos das duas crises, avançando a ideia de que, sem a crise ucraniana, as eleições europeias de 25 de maio 2014 não teriam sido o que foram, essencialmente no efeito que deslancharam e que doravante vão desenvolver com alacridade sem freios: como um choque psicológico de uma muito grande potência...

Não é o fim da Europa – conceito que não tem sentido algum pela configuração geral atual na qual o conjunto do Sistema deve naufragar, em plena solidariedade de todos os seus elementos. É a transformação da Europa em fator de divisão, de desordem, de desestruturação e de dissolução: a Europa tornada, afinal, equivalente aos EUA, provavelmente até já ultrapassando os EUA em matéria de criar efeitos negativos no seio do Bloco Atlanticista Ocidentalista, BAO.

Não é o fim da Europa, porque precisamos muito dela para garantir elã suplementar, pode-se dizer decisivo, na maquinaria superpotência-autodestruição do Sistema e na sequência fundamental do processo de afundamento do Sistema ao qual a Europa pertence integralmente.

Euromaidan, é uma revolta? – Não, Sire, é uma revolução”

Aqui queremos, pois, desenvolver uma interpretação do que entendemos como uma interconexão entre as duas crises, a crise europeia específica e a crise ucraniana...

Trata-se de duas crises que têm suas especificidades e prolongamentos muito potentes, não há dúvidas, e que os conservam, mas que também nos aparecem conectadas entre elas, de modo fundamental, de tal modo que uma faz desenvolver e dinamiza a outra; de fato, se se preferir, elas representam a mesma crise inscrevendo-se como um dos aspectos da dinâmica geral que designamos, em conjunto como a infraestrutura crísica da situação da civilização, ou como a crise de afundamento do Sistema, segundo o ponto de vista escolhido.

Essas duas crises interessam efetivamente por causa da interação entre elas, que permite interpretação muito mais alta da sequência e, eventualmente, até uma interpretação meta-histórica. Nesse caso, deve-se raciocinar de um ponto de vista essencialmente psicológico, quer dizer, do ponto de vista da percepção dos eventos, que muitas vezes permite descobrir a essência profunda desses eventos; e obtém-se então interpretação muito interessante.

Viktor Yanukovich
É claro que entram em jogo muitos fatores conjunturais, “táticos” se se preferir, como o ativismo constante para desestruturar o sistema nos países da Europa do Leste e até na Rússia, que tem por objetivo final a desestruturação da Rússia, segundo as técnicas de “agressão suave” (“revoluções coloridas”, corrupção, manipulação por Organizações Não Governamentais, pressão pela imprensa-empresa-Sistema na dita “comunicação”, etc.). Mas nenhum desses fatores conjunturais é decisivo no caso que aqui examinamos. Importa pois observar os eventos da sequência, segundo o ponto de vista que propomos.

• Não há dúvidas de que a crise ucraniana em sua atual fase ativa começa em meados de novembro de 2013, com a ruptura das negociações entre a Ucrânia e a União Europeia. Já assinalamos a considerável pressão, quase imperialista, que a Comissão Europeia exerceu sobre o governo de Yanukovich, e isso seguindo uma dinâmica-Sistema da burocracia, sem projeto político confesso, sem atribuição pelo centro (da direção da Comissão), mas, simplesmente, seguindo a dinâmica burocrática. (Pode-se citar nosso artigo de 31/5/2014:

É preciso ouvir de dentro, quer dizer, de certos funcionários dessa governadoria que foram diretamente implicados, a narrativa da circunstância inicial, de novembro de 2013, que deslanchou a crise ucraniana, da extraordinária intransigência do Comissário para a Ampliação da Comissão, de nacionalidade tcheca, que conduziu as negociações e recusou absolutamente toda e qualquer concessão a Yanukovich, não lhe deixando outra saída além de recusar o acordo, – para que, assim, se possa melhor compreender aquela crise).

Arnold Toynbee
Tratou-se, sem dúvida alguma, de avançada “imperialista” do tipo “bloco BAO”, na melhor forma contemporânea dessa época de destruição massiva, com a intransigência e a arrogância que marcam essa forma pós-modernista de imperialismo, inaugurada pelos anglo-saxões, e da qual Arnold Toynbee é um dos primeiros pesquisadores esclarecidos. (Ver comentário de 4/11/2013 sobre essa interpretação de Toynbee, sobre a “ocidentalização” do mundo a partir de 1945, dita a anglossaxonização/norte-americanização do mundo, dita a transmutação-Sistema do mundo – segundo o avanço do programa).

• Ao mesmo tempo começava um ciclo de protestos e de manifestações em Kiev, movimento depois conhecido como “o Maidan” (do nome da praça em Kiev onde houve os comícios), mas chamado durante algum tempo de Euromaidan, porque o fundamento da “comunicação”, o argumento central, a narrativa sublime do movimento resumia-se à aspiração dos manifestantes de que a Ucrânia passasse a fazer parte da União Europeia, exatamente como se, por essa via se ascendesse ao paraíso terrestre.

Donald Rumsfeld
Deve-se, nesse ponto, introduzir a hipótese, confirmada por inúmeras “cenas vistas” pelos corredores e nas cafeterias dos centros europeus de Bruxelas, que uma espécie de “vertigem civilizatória” tomou os operadores desse “imperialismo”-soft (ou “-light”), efetivamente ativado – Oh, milagre das origens – por um Comissário vindo daqueles países da New Europe (como Rumsfeld dixit, in illo tempore), o tcheco Stefan Füle.

A apresentação dos eventos, a mise en scène quase inconsciente, a percepção ávida de deformação virtuosa dos agentes de “comunicação” do lado do bloco Atlanticista Ocidentalista e da Europa (da União Europeia), implicaram de fato uma verdadeira representação da União Europeia como ideal de governança e de prosperidade – quase como se a UE tivesse recebido alguma espécie de legitimação popular – porque tudo foi pintado para fazer-crer que era “o povo” que proclamava seu desejo extasiado-extasiante por “Europa”.

(Mais uma vez, por favor, por piedade, deixemos de lado a conversa fiada de Nuland & Cia. ao Setor Direita, passando pela gangue de oligarcas ucranianos que mudam de lado como de conta bancária. Aqui se trata da percepção dos eventos).

É preciso compreender que o que tudo isso representa para os dirigentes europeus, os altos burocratas, etc., e tudo isso segundo a percepção e as avaliações mais virtuosas do planeta: a Europa seria exatamente o que eles mesmos repetiam sem parar há anos, para se autoconvencerem; e sobretudo há uns poucos anos (2005, as votações negativas na França e na Holanda, 2009-2010, a enorme crise do euro, a austeridade imposta pelos bancos e a devastação da sociedade que veio com ela), quando a crença-convicção deles receberam tantos e tais golpes inesperados e furibundos, tantas denúncias, tantos ferimentos cruéis... Para esses todos, Euromaidan foi divina surpresa, literalmente divina: “o povo” nos ama! “O povo” nos quer! (“Euromaidan, é uma revolta? – Não, Sire, é uma revolução”, com certeza repetiam, deliciados, em seus sonhos e delírios, dirigentes e burocratas europeus em geral).

Joe Biden
• As coisas sérias começaram dias 21-22 de fevereiro de 2014, quando, por algumas horas, alguns ministros nacionais delegados ao Parlamento Europeu sentiram o frisson da tragédia – a verdadeira, a sangrenta – a correr-lhe pela espinha na noite profunda e furiosa de Kiev, durante as negociações entre Yanukovich e a oposição (Ver 22/2/2014). A partir dali, tudo pareceu desfazer-se, como os acordos assinados sob a supervisão e a responsabilidade da União Europeia e também transformados em papel picado, entre as viradas do Setor Direita, as escapadas até Kiev de um Brennan-da-CIA ou de um Biden à procura de emprego para o filho no Conselho de Administração da Burisma Holding, entre os surtos de autopromoção da gangue de Kiev, as querelas dos oligarcas corrompidos até a medula, em clima de doçura soberba da Crimeia e a desordem como um rastilho de pólvora na parte russófona do país. Recreação infinita! Assim também o aparato e a representação dissiparam-se como o véu vaporoso de foto de David Hamilton, pondo a nu e em carne viva todas as tensões desestruturantes da situação.

A mais importante dessas tensões é, com certeza, a situação nova criada pela Rússia, que passa de hostilidade rampante do bloco BAO, tipo agressão suave, que não permitia qualquer revide da Rússia, a uma atitude declamatória e provocativa, mais ou menos assumida, à qual a Rússia pode razoavelmente responder sem perder status junto a aliados mais ou menos destacados. A Rússia pode assim tomar medidas radicais (“aliança”, de fato estratégica, com a China, e também com o Irã), ainda sem arriscar qualquer perda de status. Do mesmo modo, esse aberto antagonismo com a Rússia contribuiu para desconsiderar um pouco mais os aspectos abertamente desestruturantes e insensatos da política exterior dos EUA, ao mesmo tempo em que alimentou e alimenta algumas divisões graves dentro do bloco BAO – notadamente entre alguns países europeus e os EUA. A situação de confrontação é mais aberta, mais ostensiva, e as tensões potenciais entre aliados do bloco BAO estão aí ativadas. A volta à verdade da situação faz-se mediante inúmeros avatares e pressões diversas, das quais o bloco BAO não carecia.

É perfeitamente razoável antecipar que essa nova situação terá efeitos consideráveis, nas quais o bloco BAO (UE + EUA) perde sua postura habitual de construir sobre um simulacro de comunicação de produtor de estabilidade, de exemplo de governança, de modelo, etc. Compreende-se evidentemente que, nessas diversas condições, a percepção e, por consequência, a psicologia, desempenharam papel considerável.

• No fundo, a fase entre novembro de 2013 e fevereiro de 2014 foi como a saída do episódio hipomaníaco da patologia do maníaco-depressivo, da qual se sabe que entendemos que ela caracteriza a psicologia dos dirigentes do Sistema na sequência histórica e meta-histórica que vivemos depois do 11/9/2001 e sobretudo depois do outono de 2008, e, dessa vez, especificamente os dirigentes europeus. (Sobre a psicologia da maníaco-depressão e a “terrorização” da psicologia dos dirigentes-Sistema, ver artigos datados de 19/1/201216/4/2012 18/6/2013, etc.). A partir de 21-22 de fevereiro de 2014 apressa-se a descida na direção da depressão, também característica do caso; e o subsolo da depressão foi atingido, de vez, completamente, dia 25 de maio de 2014...

Argumentamos, é claro, bem entendido, nessa mesma análise do humor maníaco-depressivo (vide os artigos referidos), que a descida rumo à depressão e na depressão é também a volta à verdade da situação.

Foi o que se viu para a Europa, nas eleições do dia 25 de maio de 2014, se se consegue ver o papel fundamental que a crise ucraniana teve nessa sequência de eventos, ao permitir que a queda depressiva do 25 de maio de 2014 fosse mais catastrófica e, também, tanto mais significativa, com efeitos mais catastróficos ainda por vir, sem dúvida alguma, – e tudo isso ao perceber uma psicologia efetivamente caracterizada por esse afamado estado de bipolarismo.

Hipomaníaco Bush
Assim se pode oferecer a interpretação que a crise ucraniana é uma réplica, por premonição e antecipação, e um modelo no espírito da coisa, do terremoto que foram as eleições europeias do dia 25 de maio de 2014, que eclipsaram completamente a eleição de Porochenko que não interessa a muita gente (a farsa de Euromaidan está encerrada), para clamar alto e forte que a crise europeia que surgiu brutalmente da crise ucraniana reocupa o terreno que ela prefere. O êxtase febril sem amanhã de Euromaidan, – ou o episódio hipomaníaco – apareceu então pelo que foi: uma verdadeira inversão dessas com as quais o Sistema nos habituou em sua superpotência, deixando lugar em seguida para a fúria desencadeada por essa sucessão de crises dos eleitores europeus do famoso 25 de maio de 2014 como a vimos, com o que o Sistema também nos acostumou em sua autodestruição.

O conjunto da sequência oferece exemplo extraordinário de dissolução e de desagregação final de uma posição de força no domínio da comunicação, do conjunto do bloco BAO. A cronologia parece ter sido calculada por uma intuição alta, notadamente pela fixação dessa data do 25 de maio de 2014 e suas duas eleições que permitem apreciação ruptural paralela das crises europeia e ucraniana, e de onde se obtém a interação das duas, graças à percepção que se obtém, do conjunto.

Assim, o conjunto crísico Euromaidan-eurocético (novembro de 2013−25/5/2014) aparecesse como uma curva louca que passa de um píncaro de êxtase imperialista hipomaníaco a uma queda depressiva extraordinariamente brutal, a primeira tornando a segunda particularmente devastadora – “a queda foi mais dura”, percurso clássico que é, ele mesmo, uma crise, cuja “dureza” transforma efetivamente a profundeza e a força da crise, até que lhe dá outra natureza... Com certeza, o 25 de maio não seria o que é, sem novembro de 2013.



[*] Philippe Grasset é argelino emigrado para a França em 1962. Bacharel em  Filosofia, três anos como publicitário e ao final de 1967 mudou-se para Liège (Bélgica), casou-se pela primeira vez (2 filhos 1970/71) e iniciou-se no jornalismo no diário La Meuse - La Lanterne, como cronista de política internacional e de segurança e também como crítico literário; Entre 1978/80 colaborou com publicações internacionais com crônicas sobre assuntos militares e de literatura. Tornou-se jornalista independente em 1985 lançando diversas publicações (Lettre d’Analyse); a editora Euredit SPRL (1987); Context (1994); e o sítio dedefensa.org (1999). Quatro livros editados (3 ensaios; La drôle de détente em 1978, Le monde malade de l’Amérique em 1999, Chronique de l’ébranlement em 2003; e um romance histórico: Le regard de Iéjov em 1989) além de centenas de artigos.

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