2/6/2014, [*] Philippe Grasset, Blog DeDefensa, Bélgica
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Bilhetinho do tradutor deixado no quiosque do Plisnou
(veio junto com a tradução): Traduzi, sim, embora só tenha entendido DEPOIS de ler três vezes. Não sei
por que as pessoas supõem que as coisas escritas e faladas “deveriam” ser
fáceis – e estúpidas – como “análises” da Loprete ou do Celso “no shoes” Lafer
[risos, risos]. É nóiz! Vai Curíntião! Dá-le Timão!
Eleições na Europa - 2014 |
Jamais na
história da “Europa dos Pais Fundadores” deu-se à questão da nomeação do novo
presidente da Comissão Europeia (CE) tanta importância política, que ultrapassa
até a importância da própria política interna europeia (ver
31/5/2014). O caso assumiu ao mesmo tempo peso
político fundamental e peso simbólico, diretamente ligados ao significado
profundo da eleição europeia do dia 25 de maio de 2014 – ele também, o
escrutínio, de importância política e simbólica sem precedentes, em relação ao
habitual desinteresse do eleitor, e dos políticos dirigentes em relação ao
eleitor.
Em resumo, avaliamos
que esse conjunto crísico
é, ele próprio, indiretamente, mas poderosamente, ligado por elo psicológico
muito forte à crise ucraniana, dado o papel de detonador de um dos principais
atores que disputavam a Europa, e especificamente a Comissão Europeia, para a
qual se busca novo presidente nessa atmosfera de afrontamento político.
À luz desses
fatos entendemos que a situação apresenta traço original e inédito, com esse
laço firmemente estabelecido entre duas crises, as quais se pode ser tentado,
de um ponto de vista padrão e eventualmente Sistema-padrão (pelas normas do
Sistema), a analisar separadamente.
Jean-Claude Junker |
O lugar
central é ocupado no affaire europeu em curso, por Jean-Claude
Juncker, principal candidato à presidência da Comissão Europeia, e
candidato particularmente confiante nas próprias chances, o que obriga a fazer
um debate de fundo. Esse debate é não só ampliado de modo dramático, mas
diretamente produzido pelos resultados das eleições europeias, que põem vários
governantes europeus em posições muito difíceis.
O
“pouco-me-importa” de Juncker, quando lhe perguntaram sobre a avançada dos
eurocéticos nas eleições de 25 de maio de 20145, ilustra bem a polarização das
posições antagonistas no seio dessa fase crísica. Ao contrário de Juncker, bem
ao contrário, essa avançada eurocética diz respeito a domínios europeus
fundamentais para vários dirigentes europeus, que se encontram em posições
ambíguas, não raro desconfortáveis, com frequência, pois determinadas contra
seus engajamentos habituais pela pressão dos respectivos eleitores. Há inúmeros
sinais pois, que dão corpo ao mal-estar e indicam que a Europa oficial,
institucionalizada tanto em Bruxelas como nas capitais dos estados-membros,
entrou novamente na zona ontológica da própria crise – já explorada quando dos
debates pós-referendos de 2005, e depois empurrada de lado pelas crises
financeira e econômica, a partir de 2009-2010.
(Aquela crise
desde 2009-2010 foi evidentemente crise muito potente e suscitou vários
episódios dramáticos além de consequências particularmente dolorosas que afetam
hoje a maioria dos países europeus, mas, num certo sentido, não dizia respeito
à questão ontológica da Europa, porque se tratava essencialmente do efeito
europeu de uma crise setorial mundial que afetava os setores financeiro e
bancário. Ao contrário, com certeza, aquela crise preparou o episódio atual,
pois pôs às claras a forma de reação da Europa àquela crise setorial mundial; e
pôs em evidência o modo como a direção institucional da Europa reagiu em
relação aos interesses e ao bem-estar das populações de vários de seus
estados-membros).
• Um dos
sinais mais tangíveis, mais concretos, dessa crise que se cristaliza atualmente
em torno da candidatura de Juncker à presidência da Comissão Europeia, vem
essencialmente do Reino Unido e, em menor medida, da França, os dois países
mais tocados pelos votos dos eurocéticos do 25 de maio 2014 (28% para o Partido
Independente do Reino Unido, [ing. UKIP]; 25% para a Frente Nacional na
França, com os dois partidos eurocéticos em primeiro lugar em seus respectivos
países).
O The
Guardian de 1/6/2014 explica, sobre a posição de Cameron versus
Juncker, que se trata, nada menos, segundo o primeiro-ministro britânico, que
da saída do Reino Unido da União Europeia:
David Cameron |
Em artigo publicado ainda em versão não
confirmada, [a revista alemã] Spiegel noticia que o
primeiro-ministro [Cameron]
explicara, nos bastidores de uma reunião da União Europeia em Bruxelas na 3ª-feira
(27/5/2014), que se Juncker vier a ser presidente da Comissão Europeia, Cameron
não poderá assegurar que a Grã-Bretanha permanecerá como estado-membro. A
revista disse que participantes entenderam que os comentários de Cameron
significavam que uma maioria de votos para Juncker desestabilizaria o governo
de Cameron a tal ponto que teria de ser feito um referendo sobre se o país
“fica-ou-sai”. E que desse referendo, por sua vez, como entenderam os
interlocutores de Cameron, o mais provável seria que o povo britânico prefira
separar-se da União Europeia – como dizia a revista.
Le Monde, por sua
vez, foi à caça de informações sobre a França na imprensa alemã, que parece ser
a via preferencial para notícias sobre os outros países europeus (de
1/6/2014):
François Hollande |
Sábado, 31 de maio de 2014, vários jornais
alemães publicam críticas que estão subindo de tom. Segundo o Bild, o
presidente francês François Hollande também teria dado a conhecer suas reservas
à promoção de Jean-Claude Juncker ao posto de presidente da Comissão Europeia.
François Hollande teria informado essa semana à chanceler alemã Angela Merkel que
ele tinha de dar “um sinal” aos seus eleitores, depois do sucesso do Front National nas eleições
do domingo passado. “[Hollande] pressionou na direção de um programa de
investimentos de grande envergadura e pôs na mesa o nome de seu ex-ministro das
Finanças, Pierre Moscovici” – escreveu o Bild, sem citar fontes.
Ah, sim, não
há dúvidas... Será interessante ver o que resultará dessas duas pressões,
britânica e francesa, aplicadas na direção da suprema juíza-árbitra europeia,
Angela Merkel – cujo embaraço já é evidente. O efeito será boa indicação das
tendências europeias em curso, com futuras peripécias, seja qual for a via
escolhida. Enquanto se espera, essa ocorrência resume a situação europeia, em
total contraste com os anos 1990, quando a França era o polo unificador da
Europa, fosse com a Alemanha, para as matérias institucionais (o euro), fosse
com o Reino Unido, para matérias de segurança (o tratado de Saint-Malo).
Nicolas Sarkozy |
Para a
Alemanha, o problema é que a situação é menos o resultado de seu próprio aumento
de poderio, que do enfraquecimento dos seus dois parceiros, que já se aproxima
da quase-dissolução, no caso da França, que perdeu toda a autonomia soberana
depois de 2008-2009, com os presidentes Sarkozy e Hollande violentando a
legitimidade soberana da função, impotentes para dela extrair a essência.
A verdadeira
conclusão dessa evolução não está tanto na emergência da Alemanha, mas, mais,
no nível da própria Europa institucional, que efetivamente ganhou em potência
em relação aos estados-membros e pelo abandono de diversas soberanias dos
estados-membros. Em termos de resultado geral: de um lado, uma extrema confusão
da ação europeia (da qual a crise ucraniana é boa ilustração); de outro lado,
uma crise fundamental da própria ideia europeia (da qual a votação de 25 de
maio é boa ilustração).
• Essa crise
da ideia europeia ou do “sonho europeu” está exposta e comentada por
colaborador do The Observer, William Keegan, dia
31/5/2014:
O sonho da União Europeia ameaçado pela
austeridade e pela desarmonia: problemas estruturais com a eurozona e
dificuldades econômicas afundaram o projeto do pós-guerra numa fase crítica...
Keegan só faz
confirmar a profundidade da crise europeia que tem, claro, sua especificidade e
não pode continuar a ser apresentada como consequência de crises exteriores. A
Europa já é produtora de crises.
Giscard d'Estaing |
Um dos destacados sucessores, décadas
depois, de Monnet e Schuman, foi Valéry Giscard d'Estaing o qual, como
presidente da França na segunda metade dos anos 1970s, foi participante
destacado na formação do sistema monetário europeu e do mecanismo da taxa de
câmbio, precursos da união monetária e do euro. Chama a atenção que, em recente
entrevista ao Financial Times,
Giscard observava: “Dizem que as pessoas estão votando contra a Europa – mas
não é verdade. Estão votando contra o que a Europa está fazendo mal feito”.
Para Giscard, o problema é o mau gerenciamento, não a estrutura básica, da
eurozona. Se lesse o oportuno novo livro de Philippe Legrain, European Spring – Why Our Economies and Politics are in a Mess [Primavera europeia – Por que nossa economia e
política estão nessa confusão], se sentiria mais inclinado a aceitar que a
estrutura fundamental da eurozona também leva boa parte da culpa.
Legrain, ex-conselheiro econômico do
presidente da Comissão Europeia, oferece relato vivo, de quem conhece por
dentro o quanto a elite política e econômica europeia reagiu mal à crise financeira.
Como no Reino Unido, o diagnóstico errado aconteceu quando puseram praticamente
toda a culpa no suposto ‘'excesso'’ de gastos públicos – uma análise que talvez
se aplicasse à Grécia, mas não se aplicava aos demais países – como oposto ao
arrocho no crédito.
• A analista
russa Natalia Meden, de Strategic-Culture.org teve a feliz ideia, dia
31/5/2014, de desenvolver uma
reflexão na qual aproxima firmemente a crise ucraniana e a crise europeia na
fase em que está. Meden assume, sem dizê-lo explicitamente e sequer sem se dar
conta necessariamente, a ideia de que a Europa já é produtora de crises; e
acrescenta a ideia de que “a Europa produtora de crises” está ela mesma tão
debilitada por suas próprias crises, que não consegue levar a termo,
eventualmente com vantagem para ela, as crises exteriores que suscita.
Poroshenko |
Meden observa
com razão, no título e nos termos que utiliza, que a Europa já não tem, depois
de 25 de maio, “a intenção de assumir como seu encargo a faxina das Cavalariças
de Augias de Porochenko”.
Observa bem
que, de repente, a Ucrânia caiu para as páginas internas e na sequência, para a
última página da imprensa-Sistema, com as páginas principais ocupadas com
notícias da crise europeia, na sequência do 25 de maio de 2014. Parece, sim,
que Meden toca justamente o ponto essencial nessa circunstância: saber que a
Europa, repentinamente confrontada à sua crise ontológica, não tem mais
qualquer intenção, nem de dedicar muita atenção, nem muitos esforços, nem
muitos recursos, para resolver uma crise ucraniana, que passa ao segundo plano,
que se torna quase sem sentido, posta de lado, quase obscena na sua prentensão
de fazer-se ver como se fosse importante problema europeu... (O que não impede,
é claro, que permaneça como tal, porque as forças superiores produtoras dos
eventos em curso não têm controle sobre as “intenções” dos figurantes-Sistemas
daqueles mesmos eventos).
“Como por efeito de uma varinha mágica, a
imprensa-empresa-Sistema europeia parou de intimidar as pessoas com a ‘a ameaça
vinda do leste’, que as eleições presidenciais na Ucrânia consolidariam. A
ameaça pareceu especialmente terrível num momento em que a Europa marca o 100º
aniversário do início da Iª Guerra Mundial. Faz lembrar como os “Longos Tiros
de Sarajevo” levaram o caldeirão ao ponto de ebulição, com o assassinato do
Arquiduque Franz Ferdinand.
Angela Merkel |
“A chanceler Angela Merkel inaugurou grande
exibição que marca o centenário da Iª. Guerra Mundial, em Berlim, dia 28 de
maio. Em seu discurso, evitou qualquer menção ao crescimento da tensão no
coração da Europa. A elite europeia tem outras dores de cabeça, além da Ucrânia
pós-Maidan. É hora de redesenhar a paisagem política de Bruxelas, o que é muito
mais importante que limpar as Cavalariças de Augias de Poroshenko...
“Quem será o próximo presidente da Comissão
Europeia, eis a questão! Será Jean-Claude Juncker ou o candidato dos
socialistas, Martin Schultz? Günther Oettinger, Comissário Europeu para
Energia, permanecerá como membro da Comissão Europeia e, nesse caso, em que
cargo? Em resumo, os resultados da eleição europeia e os eventos posteriores
fizeram empalidecer a importância da crise ucraniana, que já se vai convertendo
em problema endêmico. O golpe de Maidan faz lembrar a “Primavera Árabe” e, em
especial, o Egito. Não há meio pelo qual a Ucrânia consiga dar jeito naquela
confusão e ultrapassar a crise, não, com certeza, em pouco tempo. Alé do mais,
por quanto tempo Poroshenko manterá a própria posição, com o país balançando à
beira de despencar num abismo político e econômico?”
Sente-se que
esses diferentes aspectos exigem ser reunidos e integrados numa mesma lógica,
numa mesma dinâmica. O que se passa nesse momento para a Europa é uma
integração completa e total na crise geral de civilização que conhecemos, ou
“crise do naufrágio do Sistema”.
De ilha de
estabilidade e aparente perenidade ao mesmo tempo poderosa e gigante – coisa
rara, em matéria de ilha –, de artefato miraculoso que parecia conhecer a
receita para o futuro (fórmula de uma governança virtuosa), que vez ou outra
exportava alguns itens daquela receita (imediatamente transcritos em desordens
suplementares por aquele que foram e são os felizes recipiendários), a Europa
transformou-se num centro de crise, ao mesmo tempo produtor de crises no
próprio seio e em volta dela. Depois de ter parecido que se desenvolvia com
suficiência indubitável e autoconfiança, sem a mínima hesitação, superpotência
sem risco excessivo (de conflitos, sobretudo), a Europa bruscamente se
transformou. Passou a ser ela própria a crise e produtora de crises, as quais
produzem autodestruição.
A Europa pois
está perfeitamente integrada como ator ativo e ardente na dinâmica
superpotência-autodestruição, da crise do afundamento do Sistema.
Nessa fase, o
episódio ucraniano é evento fundamental, evento fundador – e não se pode
compreender essa crise, nesse caso, conforme o modo específico de ver que
adotemos para essa análise; para compreendê-la é preciso pô-la em conjunção com
a crise europeia, como detonadora daquela crise europeia, etc. Por isso nos
aplicamos aqui ao exercício de ligar absolutamente os eventos das duas crises,
avançando a ideia de que, sem a crise ucraniana, as eleições europeias de 25 de
maio 2014 não teriam sido o que foram, essencialmente no efeito que
deslancharam e que doravante vão desenvolver com alacridade sem freios: como um
choque psicológico de uma muito grande potência...
Não é o fim
da Europa – conceito que não tem sentido algum pela configuração geral atual na
qual o conjunto do Sistema deve naufragar, em plena solidariedade de todos os
seus elementos. É a transformação da Europa em fator de divisão, de desordem,
de desestruturação e de dissolução: a Europa tornada, afinal, equivalente aos
EUA, provavelmente até já ultrapassando os EUA em matéria de criar efeitos
negativos no seio do Bloco Atlanticista Ocidentalista, BAO.
Não é o fim
da Europa, porque precisamos muito dela para garantir elã suplementar, pode-se
dizer decisivo, na maquinaria superpotência-autodestruição do Sistema e na
sequência fundamental do processo de afundamento do Sistema ao qual a Europa
pertence integralmente.
“Euromaidan, é uma revolta? – Não, Sire,
é uma revolução”
Aqui queremos,
pois, desenvolver uma interpretação do que entendemos como uma interconexão
entre as duas crises, a crise europeia específica e a crise ucraniana...
Trata-se de
duas crises que têm suas especificidades e prolongamentos muito potentes, não
há dúvidas, e que os conservam, mas que também nos aparecem conectadas entre
elas, de modo fundamental, de tal modo que uma faz desenvolver e dinamiza a
outra; de fato, se se preferir, elas representam a mesma crise inscrevendo-se
como um dos aspectos da dinâmica geral que designamos, em conjunto como a infraestrutura
crísica da situação da civilização, ou como a crise
de afundamento do Sistema, segundo o ponto de vista escolhido.
Essas duas
crises interessam efetivamente por causa da interação entre elas, que permite
interpretação muito mais alta da sequência e, eventualmente, até uma
interpretação meta-histórica. Nesse caso, deve-se raciocinar de um ponto de
vista essencialmente psicológico, quer dizer, do ponto de vista da percepção
dos eventos, que muitas vezes permite descobrir a essência profunda desses
eventos; e obtém-se então interpretação muito interessante.
Viktor Yanukovich |
É claro que
entram em jogo muitos fatores conjunturais, “táticos” se se preferir, como o
ativismo constante para desestruturar o sistema nos países da Europa do Leste e
até na Rússia, que tem por objetivo final a desestruturação da Rússia, segundo
as técnicas de “agressão suave” (“revoluções coloridas”, corrupção, manipulação
por Organizações Não Governamentais, pressão pela imprensa-empresa-Sistema na
dita “comunicação”, etc.). Mas nenhum desses fatores conjunturais é decisivo no
caso que aqui examinamos. Importa pois observar os eventos da sequência,
segundo o ponto de vista que propomos.
• Não há
dúvidas de que a crise ucraniana em sua atual fase ativa começa em meados de
novembro de 2013, com a ruptura das negociações entre a Ucrânia e a União
Europeia. Já assinalamos a considerável pressão, quase imperialista, que a
Comissão Europeia exerceu sobre o governo de Yanukovich, e isso seguindo uma
dinâmica-Sistema da burocracia, sem projeto político confesso, sem atribuição
pelo centro (da direção da Comissão), mas, simplesmente, seguindo a dinâmica
burocrática. (Pode-se citar nosso
artigo de 31/5/2014:
É preciso ouvir de dentro, quer dizer, de
certos funcionários dessa governadoria que foram diretamente implicados, a
narrativa da circunstância inicial, de novembro de 2013, que deslanchou a crise
ucraniana, da extraordinária intransigência do Comissário para a Ampliação da
Comissão, de nacionalidade tcheca, que conduziu as negociações e recusou
absolutamente toda e qualquer concessão a Yanukovich, não lhe deixando outra
saída além de recusar o acordo, – para que, assim, se possa melhor compreender aquela
crise).
Arnold Toynbee |
Tratou-se,
sem dúvida alguma, de avançada “imperialista” do tipo “bloco BAO”, na melhor
forma contemporânea dessa época de destruição massiva, com a intransigência e a
arrogância que marcam essa forma pós-modernista de imperialismo, inaugurada
pelos anglo-saxões, e da qual Arnold Toynbee é um dos primeiros pesquisadores
esclarecidos. (Ver comentário
de 4/11/2013 sobre essa interpretação de Toynbee, sobre a
“ocidentalização” do mundo a partir de 1945, dita a
anglossaxonização/norte-americanização do mundo, dita a transmutação-Sistema do
mundo – segundo o avanço do programa).
• Ao mesmo
tempo começava um ciclo de protestos e de manifestações em Kiev, movimento
depois conhecido como “o Maidan” (do nome da praça em Kiev onde houve os
comícios), mas chamado durante algum tempo de Euromaidan, porque o fundamento
da “comunicação”, o argumento central, a narrativa sublime do movimento
resumia-se à aspiração dos manifestantes de que a Ucrânia passasse a fazer
parte da União Europeia, exatamente como se, por essa via se ascendesse ao
paraíso terrestre.
Donald Rumsfeld |
Deve-se,
nesse ponto, introduzir a hipótese, confirmada por inúmeras “cenas vistas”
pelos corredores e nas cafeterias dos centros europeus de Bruxelas, que uma
espécie de “vertigem civilizatória” tomou os operadores desse “imperialismo”-soft
(ou “-light”), efetivamente ativado – Oh, milagre das origens – por um
Comissário vindo daqueles países da New Europe (como
Rumsfeld dixit, in illo tempore), o tcheco Stefan Füle.
A apresentação
dos eventos, a mise en scène quase inconsciente, a percepção ávida de
deformação virtuosa dos agentes de “comunicação” do lado do bloco Atlanticista
Ocidentalista e da Europa (da União Europeia), implicaram de fato uma
verdadeira representação da União Europeia como ideal de governança e de
prosperidade – quase como se a UE tivesse recebido alguma espécie de
legitimação popular – porque tudo foi pintado para fazer-crer que era “o povo”
que proclamava seu desejo extasiado-extasiante por “Europa”.
(Mais uma
vez, por favor, por piedade, deixemos de lado a conversa fiada de Nuland &
Cia. ao Setor Direita, passando pela gangue de oligarcas ucranianos que mudam
de lado como de conta bancária. Aqui se trata da percepção dos eventos).
É preciso
compreender que o que tudo isso representa para os dirigentes europeus, os
altos burocratas, etc., e tudo isso segundo a percepção e as avaliações mais
virtuosas do planeta: a Europa seria exatamente o que eles mesmos repetiam sem
parar há anos, para se autoconvencerem; e sobretudo há uns poucos anos (2005,
as votações negativas na França e na Holanda, 2009-2010, a enorme crise do
euro, a austeridade imposta pelos bancos e a devastação da sociedade que veio
com ela), quando a crença-convicção deles receberam tantos e tais golpes
inesperados e furibundos, tantas denúncias, tantos ferimentos cruéis... Para
esses todos, Euromaidan foi divina surpresa, literalmente divina: “o povo” nos
ama! “O povo” nos quer! (“Euromaidan, é uma revolta? – Não,
Sire, é uma revolução”, com
certeza repetiam, deliciados, em seus sonhos e delírios, dirigentes e
burocratas europeus em geral).
Joe Biden |
• As coisas
sérias começaram dias 21-22 de fevereiro de 2014, quando, por algumas horas,
alguns ministros nacionais delegados ao Parlamento Europeu sentiram o frisson
da tragédia – a verdadeira, a sangrenta – a correr-lhe pela espinha na noite
profunda e furiosa de Kiev, durante as negociações entre Yanukovich e a
oposição (Ver
22/2/2014). A partir dali, tudo pareceu desfazer-se, como os acordos
assinados sob a supervisão e a responsabilidade da União Europeia e também
transformados em papel picado, entre as viradas do Setor Direita, as escapadas
até Kiev de um Brennan-da-CIA ou de um Biden à procura de emprego
para o filho no Conselho de Administração da Burisma Holding, entre os surtos de autopromoção da
gangue de Kiev, as querelas dos oligarcas corrompidos até a medula, em clima de
doçura soberba da Crimeia e a desordem como um rastilho de pólvora na parte
russófona do país. Recreação infinita! Assim também o aparato e a representação
dissiparam-se como o véu vaporoso de foto de David Hamilton, pondo a nu e em
carne viva todas as tensões desestruturantes da situação.
A mais
importante dessas tensões é, com certeza, a situação nova criada pela Rússia,
que passa de hostilidade rampante do bloco BAO, tipo “agressão
suave”, que não permitia
qualquer revide da Rússia, a uma atitude declamatória e provocativa, mais ou menos
assumida, à qual a Rússia pode razoavelmente responder sem perder status
junto a aliados mais ou menos destacados. A Rússia pode assim tomar medidas
radicais (“aliança”, de fato estratégica, com a China, e também com o Irã),
ainda sem arriscar qualquer perda de status. Do mesmo modo, esse aberto
antagonismo com a Rússia contribuiu para desconsiderar um pouco mais os
aspectos abertamente desestruturantes e insensatos da política exterior dos
EUA, ao mesmo tempo em que alimentou e alimenta algumas divisões graves dentro
do bloco BAO – notadamente entre alguns países europeus e os EUA. A situação de
confrontação é mais aberta, mais ostensiva, e as tensões potenciais entre
aliados do bloco BAO estão aí ativadas. A volta à verdade da situação faz-se
mediante inúmeros avatares e pressões diversas, das quais o bloco BAO não
carecia.
É
perfeitamente razoável antecipar que essa nova situação terá efeitos
consideráveis, nas quais o bloco BAO (UE + EUA) perde sua postura habitual de
construir sobre um simulacro de comunicação de produtor de estabilidade, de
exemplo de governança, de modelo, etc. Compreende-se evidentemente que, nessas
diversas condições, a percepção e, por consequência, a psicologia,
desempenharam papel considerável.
• No fundo, a
fase entre novembro de 2013 e fevereiro de 2014 foi como a saída do episódio
hipomaníaco da patologia do maníaco-depressivo, da qual se sabe que entendemos
que ela caracteriza a psicologia dos dirigentes do Sistema na sequência
histórica e meta-histórica que vivemos depois do 11/9/2001 e sobretudo depois
do outono de 2008, e, dessa vez, especificamente os dirigentes europeus. (Sobre
a psicologia da maníaco-depressão e a “terrorização” da psicologia dos
dirigentes-Sistema, ver artigos datados de 19/1/2012
− 16/4/2012
− 18/6/2013, etc.). A partir de 21-22 de fevereiro de 2014 apressa-se a descida na
direção da depressão, também característica do caso; e o subsolo da depressão
foi atingido, de vez, completamente, dia 25 de maio de 2014...
Argumentamos,
é claro, bem entendido, nessa mesma análise do humor maníaco-depressivo (vide
os artigos referidos), que a descida rumo à depressão e na depressão é também a
volta à verdade da situação.
Foi o que se
viu para a Europa, nas eleições do dia 25 de maio de 2014, se se consegue ver o
papel fundamental que a crise ucraniana teve nessa sequência de eventos, ao
permitir que a queda depressiva do 25 de maio de 2014 fosse mais catastrófica
e, também, tanto mais significativa, com efeitos mais catastróficos ainda por
vir, sem dúvida alguma, – e tudo isso ao perceber uma psicologia efetivamente
caracterizada por esse afamado estado de bipolarismo.
Hipomaníaco Bush |
Assim se pode
oferecer a interpretação que a crise ucraniana é uma réplica, por premonição e
antecipação, e um modelo no espírito da coisa, do terremoto que foram as
eleições europeias do dia 25 de maio de 2014, que eclipsaram completamente a
eleição de Porochenko que não interessa a muita gente (a farsa de Euromaidan
está encerrada), para clamar alto e forte que a crise europeia que surgiu
brutalmente da crise ucraniana reocupa o terreno que ela prefere. O êxtase
febril sem amanhã de Euromaidan, – ou o episódio hipomaníaco – apareceu então pelo que foi: uma
verdadeira inversão dessas com as quais o Sistema nos habituou em sua
superpotência, deixando lugar em seguida para a fúria desencadeada por essa
sucessão de crises dos eleitores europeus do famoso 25 de maio de 2014 como a
vimos, com o que o Sistema também nos acostumou em sua autodestruição.
O conjunto da
sequência oferece exemplo extraordinário de dissolução e de desagregação final
de uma posição de força no domínio da comunicação, do conjunto do bloco BAO. A
cronologia parece ter sido calculada por uma intuição alta, notadamente pela
fixação dessa data do 25 de maio de 2014 e suas duas eleições que permitem
apreciação ruptural paralela das crises europeia e ucraniana, e de onde se
obtém a interação das duas, graças à percepção que se obtém, do conjunto.
Assim, o
conjunto crísico Euromaidan-eurocético (novembro de 2013−25/5/2014) aparecesse
como uma curva louca que passa de um píncaro de êxtase imperialista hipomaníaco
a uma queda depressiva extraordinariamente brutal, a primeira tornando a
segunda particularmente devastadora – “a queda foi mais dura”, percurso
clássico que é, ele mesmo, uma crise, cuja “dureza” transforma efetivamente a
profundeza e a força da crise, até que lhe dá outra natureza... Com certeza, o
25 de maio não seria o que é, sem novembro de 2013.
[*] Philippe Grasset é argelino emigrado
para a França em 1962. Bacharel em Filosofia, três anos como
publicitário e ao final de 1967 mudou-se para Liège (Bélgica), casou-se pela
primeira vez (2 filhos 1970/71) e iniciou-se no jornalismo no diário La Meuse -
La Lanterne, como cronista de política internacional e de segurança e também
como crítico literário; Entre 1978/80 colaborou com publicações internacionais
com crônicas sobre assuntos militares e de literatura. Tornou-se jornalista
independente em 1985 lançando diversas publicações (Lettre d’Analyse); a
editora Euredit SPRL (1987); Context (1994); e o sítio dedefensa.org (1999). Quatro
livros editados (3 ensaios; La drôle de détente em 1978, Le monde
malade de l’Amérique em 1999, Chronique de l’ébranlement em 2003; e
um romance histórico: Le regard de Iéjov em 1989) além de centenas de
artigos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Registre seus comentários com seu nome ou apelido. Não utilize o anonimato. Não serão permitidos comentários com "links" ou que contenham o símbolo @.