Fernando Soares Campos |
O senador assinou
a carta de despedida, pegou o revólver na gaveta da escrivaninha, engatilhou a
arma e apontou para o próprio peito. Aguardou um instante. Lembrou-se da sua
última posse, do discurso na tribuna, das promessas de que trabalharia em defesa
do povo, da democracia, do seu Estado, do país...
Entretanto, como
pano de fundo de suas memórias, apareciam centenas de cadáveres humanos, pessoas
mortas devido à falta de assistência médica, inanição ou cirrose hepática
provocada pelo consumo de uma péssima aguardente de cana.
Eram imagens de um
pesadelo que já passará a atormentá-lo mesmo em estado de vigília. À medida que
sua conta bancária crescia, a multidão de fantasmas aumentava. O senador até já
havia observado que a proporcionalidade estava se aproximando da razão de um por
mil: a cada um milhão de reais depositados em sua conta, mil novos espectros
somavam-se à fantasmagórica multidão que o obsedava.
O telefone chamou.
No sexto toque, resolveu atender:
- Alô!
- Excelência!
- Sim.
- Aqui é o Santiago.
- Santiago?!
- Santiago Arruda.
- Do Planalto Diário?
- Ele mesmo, excelência.
- Em que posso servi-lo?
- Gostaria de marcar uma entrevista com vossa excelência.
- Entrevista?
- Sim, excelência.
- Pra quando?
- Amanhã à tarde está bom para o senhor?
- Impossível.
- Então, na sexta pela manhã.
- Não vai dar.
- Nesse caso, o senhor mesmo pode marcar dia e hora mais adequados à sua agenda.
- Hoje.
- Hoje?!
- Agora.
- Agora?!
- Sim, agora! Já! Onde você está?
- Na redação.
- Então, não leva mais que quinze minutos pra chegar aqui - desligou.
- Excelência!
- Sim.
- Aqui é o Santiago.
- Santiago?!
- Santiago Arruda.
- Do Planalto Diário?
- Ele mesmo, excelência.
- Em que posso servi-lo?
- Gostaria de marcar uma entrevista com vossa excelência.
- Entrevista?
- Sim, excelência.
- Pra quando?
- Amanhã à tarde está bom para o senhor?
- Impossível.
- Então, na sexta pela manhã.
- Não vai dar.
- Nesse caso, o senhor mesmo pode marcar dia e hora mais adequados à sua agenda.
- Hoje.
- Hoje?!
- Agora.
- Agora?!
- Sim, agora! Já! Onde você está?
- Na redação.
- Então, não leva mais que quinze minutos pra chegar aqui - desligou.
O senador notou
que, todo o tempo em que falou ao telefone, mantivera a arma apontando contra o
peito. Guardou o revólver na gaveta. Resolveu reler a carta de despedida.
Deteve-se num trecho:
“É comum que,
devido aos seus fracassados empreendimentos, muita gente ponha fim à própria
vida; no meu caso, porém, decidi encerrar a minha bem-sucedida existência em
razão do fracasso alheio”.
Alguma coisa
parecia errada. Releu o período, mas continuou em dúvida. Deixou a folha sobre a
mesa, foi até o computador, abriu o documento “carta de despedida” e continuou
relendo o primeiro período. Trocou “É comum que” por “É natural que”, em seguida
por “É normal que”.
Nada, nenhuma das
modificações pareceu alterar o sentido da frase. Experimentou “Via de regra”.
Achou que assim ficaria melhor. Antes de imprimir, corrigiu o verbo “pôr”, agora
flexionado no presente do indicativo: “põe”. Imprimiu a página e voltou para a
mesa de trabalho. Releu mais uma vez:
“Via de regra,
devido aos seus fracassados empreendimentos, muita gente põe fim à própria vida;
no meu caso, porém, decidi encerrar a minha bem-sucedida existência em razão do
fracasso alheio”.
Ainda não estava
convencido de que as modificações expressariam com maior clareza o motivo que o
levaria a cometer o suicídio.
Bateram na
porta...
- Entre!
Era a governanta
conduzindo Santiago Arruda. Guardou a carta de despedida na gaveta, cumprimentou
o jornalista e lhe indicou uma poltrona. Depois do cafezinho, Santiago iniciou a
entrevista.
- Excelência,
estamos fazendo uma matéria para o nosso caderno semanal de literatura,
gostaríamos de saber o que os senadores lêem. No momento, o que o senhor está
lendo?
O senador teve uma
idéia: aproveitaria a ocasião para esclarecer sua dúvida sobre a frase de
abertura da carta de despedida. Mentiu:
- Estou lendo “As
razões”, um romance de Carlos Miguel...
- Não conheço.
- Nem poderia, trata-se de um autor desconhecido, lá de minha terra, um jovem escritor que me mandou sua primeira obra. Eu contribuí para a publicação.
- Posso ver? Se o senhor quiser, podemos divulgar no caderno literário do Planalto Diário.
- Não está aqui, está no meu gabinete, no Senado. Mas, já que estamos falando do romance “As razões”, eu queria consultá-lo sobre uma passagem dessa obra.
- Se eu puder ajudar...
- Bom, é a respeito da carta de um suicida. Um banqueiro resolve suicidar-se e escreve uma carta de despedida.
- É comum os suicidas escreverem cartas de despedida. Mas o que há de errado na carta do banqueiro?
- Não sei se há alguma coisa errada. Mas eu me lembro bem da frase, anote aí.
- Pode ditar.
-“Via de regra, devido aos seus fracassados empreendimentos, muita gente põe fim à própria vida; no meu caso, porém, decidi encerrar a minha bem-sucedida existência em razão do fracasso alheio”.
- Não conheço.
- Nem poderia, trata-se de um autor desconhecido, lá de minha terra, um jovem escritor que me mandou sua primeira obra. Eu contribuí para a publicação.
- Posso ver? Se o senhor quiser, podemos divulgar no caderno literário do Planalto Diário.
- Não está aqui, está no meu gabinete, no Senado. Mas, já que estamos falando do romance “As razões”, eu queria consultá-lo sobre uma passagem dessa obra.
- Se eu puder ajudar...
- Bom, é a respeito da carta de um suicida. Um banqueiro resolve suicidar-se e escreve uma carta de despedida.
- É comum os suicidas escreverem cartas de despedida. Mas o que há de errado na carta do banqueiro?
- Não sei se há alguma coisa errada. Mas eu me lembro bem da frase, anote aí.
- Pode ditar.
-“Via de regra, devido aos seus fracassados empreendimentos, muita gente põe fim à própria vida; no meu caso, porém, decidi encerrar a minha bem-sucedida existência em razão do fracasso alheio”.
Santiago anotou e
leu a frase em voz alta. Concluiu:
- Aparentemente,
não há nada errado. Um paradoxo, alguém se suicidar devido ao fracasso alheio,
mas não seria nem tão contraditório se o fracassado fosse alguém de sua família
ou mesmo do seu relacionamento afetivo.
- Nem do ponto de
vista sintático?
- Deixe-me ver - Santiago releu todo o período. - Não, não estou identificando qualquer erro sintático.
- Deixe-me ver - Santiago releu todo o período. - Não, não estou identificando qualquer erro sintático.
- Tudo bem,
esqueça, nem sei por que cismei com isso...
Ao final da
entrevista, o senador acompanhou Santiago até a saída e prometeu lhe mandar o
livro do seu afilhado escritor.
No carro, Santiago
abriu o bloco de anotações e releu a frase:
“Via de regra,
devido aos seus fracassados empreendimentos, muita gente põe fim à própria vida;
no meu caso, porém, decidi encerrar a minha bem-sucedida existência em razão do
fracasso alheio”.
Pensou: “... Bem
sucedida existência em razão do fracasso alheio”. Não, não falta nenhuma
vírgula. Pelo visto, o rapaz conhece bem os banqueiros.
Deu partida no
carro. Nem escutou o tiro que estourou o coração do senador bem-sucedido... Em
razão do fracasso alheio.
Ilustração: AIPC - Atrocious
International Piracy of Cartoons
Enviado por Fernando Soares
Campos
Parabens , no começo achei que era uma notícia sobre um senador suicida ( se bem que temos muitos que a dona morte insiste em não levar ), porém a medida que ia lendo o texto descobri que era ficção , fiquei ansioso por descobrir o desfecho .
ResponderExcluirMinha ansiosidade não foi em vão , gostei , não me estenderei mais , pois não sou crítco literário , apenas leio pelo gosto de apreciar uma boa leitura .