[Grupo
de Leitura] Conceitos úteis para ajudar a ler os jornais (só rindo!)
brasileiro s (16/1/2012)
In
HARDT, Michael e
NEGRI, Antonio,
Multidão. Guerra e democracia na era do Império [2004], Rio
de Janeiro: Record (trad. Clóvis Marques; revisão técnica Giuseppe Cocco), 2005,
pp. 293-301 (Cap. 3: “Democracia”; 3.1: “A longa marcha da democracia”) e
411. (Excerto)
Enviado pelo pessoal da Vila Vudu
Acreditava-se que
o fim da guerra fria constituiria a vitória final da democracia, mas hoje o
conceito e as práticas da democracia estão em crise por toda parte.
Até mesmo nos EUA,
o autoproclamado paradigma global da democracia, instituições tão centrais
quanto os sistemas eleitorais têm sido seriamente questionadas, e em muitas
partes do mundo mal se chega a encontrar um simulacro de sistemas democráticos
de governo. E o constante estado de guerra global solapa as débeis formas de
democracia existentes.
Ao longo de grande
parte do século 20, o conceito de democracia foi ao mesmo tempo limitado e
promovido pela ideologia da guerra fria. De um lado da linha divisória da guerra
fria, o conceito de democracia tendia a ser definido estritamente em termos de
anticomunismo, de tal forma que se tornava sinônimo de “mundo livre”.
Desse modo, a
palavra
democracia pouco tinha a ver com a natureza do governo:
qualquer Estado que fizesse parte da muralha de defesa contra aquilo que era
encarado como o totalitarismo comunista podia ser considerado “democrático”,
independente de seu efetivo grau de democracia.
Do outro lado da
linha divisória da guerra fria, os países socialistas também se diziam
“repúblicas democráticas”. Também essa alegação pouco tinha a ver com a natureza
do governo, remetendo primordialmente, em vez disso, à oposição ao controle
capitalista: qualquer país que fizesse parte da muralha de defesa contra aquilo
que era considerado como dominação capitalista podia apresentar-se como uma
república democrática.
Em nosso mundo
posterior à guerra fria, o conceito de democracia foi desvinculado de suas
rígidas amarras da guerra fria e passou a navegar sem rumo. Talvez por esse
motivo, há alguma esperança de que recobre sua antiga
importância.
A crise da
democracia hoje tem a ver não só com a corrupção e a insuficiência de suas
instituições e práticas, mas também com o próprio conceito. Parte da crise está
no fato de que não está claro o que significa democracia num mundo globalizado.
Certamente, a
democracia global terá de significar algo diferente do que significava
democracia no contexto nacional ao longo de toda a era moderna. Podemos ter uma
ideia dessa crise da democracia pela quantidade de estudos acadêmicos recentes
sobre a natureza da globalização e a guerra global em relação à
democracia.
Os estudiosos
continuam partindo do princípio de que há apoio para a democracia, mas divergem
muito quando se trata de saber se a atual forma de globalização aumenta ou
diminui os poderes e possibilidades da democracia através do mundo.
Além disso, desde
o 11/9 o aumento das pressões de guerra polarizou as posições e, aos olhos de
alguns, subordinou a necessidade de democracia às preocupações de segurança e
estabilidade.
A bem da clareza,
vamos separar essas posições de acordo com sua atitude em relação aos benefícios
da globalização para a democracia e a sua orientação política geral.
Temos assim quatro
categorias lógicas que dividem os que acham que a globalização promove a
democracia e os que consideram que ela é um obstáculo, à esquerda e à direita.
Devemos ter em
mente, é claro, que nesses vários debates existem grandes zonas de superposição
quanto ao que significa globalização, além do que significa democracia. As
designações de direita e esquerda são apenas aproximações, mas ainda assim úteis
para separar as diferentes posições.
À esquerda:
(a)
Os argumentos
social-democratas
Examinemos
primeiro os argumentos
social-democratas, segundo os quais a democracia é debilitada ou
ameaçada pela globalização, em geral definindo a globalização em termos
estritamente econômicos.
Tais argumentos
sustentam que, a bem da democracia, os Estados-nação deviam retirar-se das
forças de globalização.
Certos argumentos
que se encaixam nessa categoria afirmam que a globalização econômica é na
realidade um mito, mas um mito poderoso, com efeitos antidemocráticos.
Muitas dessas
argumentações sustentam, por exemplo, que a economia internacionalizada de hoje
não tem caráter inédito (há muito tempo a economia é internacionalizada); que as
corporações autenticamente transnacionais (em contraste com as corporações
multinacionais) ainda são raras; e que a vasta maioria do comércio que hoje
acontece não é efetivamente global, ocorrendo apenas entre a América do Norte, a
Europa e o Japão.
Apesar de a
globalização ser um mito, prosseguem, sua ideologia serve para paralisar as
estratégias políticas nacionais democráticas: o mito da globalização e de sua
inexorabilidade é usado para atacar as tentativas nacionais de controlar a
economia e facilita os programas neoliberais de privatização, a destruição do
Estado de bem-estar social e assim por diante.
Esses
social-democratas sustentam, em vez disso, que os Estados-Nação podem e devem
afirmar sua soberania e assumir maior controle da economia nos níveis nacionais
e supranacional. Com isso, seria possível restabelecer as funções democráticas
do Estado que vêm sendo desgastadas, sobretudo suas funções representativas e
suas estruturas previdenciárias.
Essa posição
social-democrata é a que se viu mais seriamente solapada pelos acontecimentos
que se sucederam aos atentados de 11/9 até a guerra do
Iraque.
O estado de guerra
global parece ter tornado inevitável a globalização (especialmente em termos de
segurança e questões militares), sendo, portanto, insustentável qualquer posição
antiglobalização dessa natureza.
No contexto do
estado de guerra, na realidade, a maioria das posições social-democratas tendem
a migrar para uma das duas posições pró-globalização adiante enunciadas.
As políticas de
Schröder na Alemanha são bom exemplo da maneira como a defesa social-democrata
dos interesses nacionais passou a depender fundamentalmente de alianças
cosmopolitas multilaterais; e a Grã-Bretanha de Blair constitui a principal
ilustração da maneira como se considera que os interesses nacionais são mais bem
atendidos pelo alinhamento com os EUA e o apoio a sua hegemonia
global.
(b)
Os argumentos
cosmopolitas liberais
Em oposição às
críticas social-democratas da globalização, mas ainda mantendo uma posição
política de esquerda, temos os argumentos cosmopolitas liberais que consideram que a
globalização propicia a democracia.
Não estamos
afirmando que esses autores não têm uma crítica das formas contemporâneas de
globalização, pois na realidade têm, especialmente no que diz respeito às
atividades, mas desregulamentadas do capital global.
Não encontramos,
contudo, argumentos contra a globalização capitalista como tal, e sim argumentos
por uma melhor regulamentação institucional e política da economia.
Tais argumentos
geralmente enfatizam que a globalização traz efeitos positivos em temos
econômicos e políticos, assim como formas de enfrentar o estado de guerra
global. Além de maior desenvolvimento econômico, eles consideram que a
globalização apresenta maior potencial democrático, basicamente em decorrência
de uma relativa nova liberdade em relação aos governos dos
Estados-nação – e neste sentido é evidente seu contraste com as posições
social-democratas.
Isso é
particularmente verdadeiro, por exemplo, nos debates centrados na questão dos
direitos humanos, que sob muitos aspectos assumiu um papel mais importante,
contra o poder dos Estados-nação ou apesar dele.
As noções de uma
nova democracia cosmopolita ou de uma governança global também têm como condição
de possibilidade o relativo declínio da soberania dos
Estados-nação.
O estado de guerra
global transformou o cosmopolitismo liberal numa importante posição política,
aparentemente a única alternativa viável ao controle global americano.
Contra a realidade
das ações unilaterais norte-americanas, o multilateralismo é o método básico da
política cosmopolita, e a ONU, seu mais poderoso instrumento. Também poderíamos
incluir no limite dessa categoria aqueles que argumentam simplesmente que os EUA
não podem “agir sozinhos”, devendo compartilhar seus poderes e responsabilidades
de domínio global com outras grandes potências, numa espécie de acordo
multilateral destinado a preservar a ordem global.
À
direita
(a)
Pró hegemonia
global dos EUA
Os vários
argumentos da direita centrados nos benefícios e na necessidade da hegemonia global
americana convergem com os cosmopolitas liberais no sentido de que a
globalização nutre a democracia, mas o fazem por razões muito diferentes.
Esses argumentos,
hoje em dia onipresentes nos principais veículos de comunicação, afirmam
geralmente que a globalização propicia a democracia porque a hegemonia americana
e a expansão do domínio do capital por si mesmas implicam necessariamente a
expansão da democracia.
Há quem argumente
que o domínio do capital é inerentemente democrático, e que, portanto, a
globalização do capital é a globalização da democracia; outros sustentam que o
sistema político americano e o “American way of life” são sinônimos de
democracia, sendo, portanto, a expansão da hegemonia dos EUA uma expansão da
democracia, mas em geral estes revelam-se dois lados da mesma
moeda.
O estado de guerra
global tem proporcionado a essa posição uma plataforma política de nova
proeminência.
A ideologia que
veio a ser conhecida como ideologia neoconservadora, que foi forte esteio do
governo Bush, pretende que os EUA refaçam ativamente o mapa político do mundo,
derrubando regimes párias potencialmente ameaçadores e criando bons regimes.
O governo
americano enfatiza que suas intervenções globais não se baseiam apenas em
interesses nacionais, e sim nos desejos globais e universais de liberdade e
prosperidade.
Para o bem do
mundo os EUA devem agir unilateralmente, livres das amarras dos acordos
multilaterais ou do direito internacional.
Entre esses
conservadores pró-globalização, verifica-se um debate secundário entre aqueles –
geralmente autores britânicos – que consideram a hegemonia global americana como
legítima herdeira dos projetos imperialistas europeus benevolentes e os que –
autores norte-americanos, como se poderia esperar – que encaram o domínio global
norte-americano como situação histórica radicalmente nova e excepcional.
Um autor
norte-americano, por exemplo, está convencido de que o excepcionalismo dos EUA
apresenta benefícios inéditos para todo o planeta: “Apesar de todas as nossas
trapalhadas, o papel desempenhado pelos EUA é a maior bênção recebida pelo mundo
em muitos e muitos séculos, e talvez mesmo em toda a história registrada”.
(b)
Conservadores, a
partir de valores tradicionais
Finalmente, os
argumentos
conservadores calcados em valores tradicionais contestam o ponto de
vista direitista dominante de que o capitalismo desregulamentado e a hegemonia
americana necessariamente trazem a democracia.
Em vez disso,
concordam com o ponto de vista social-democrata de que a globalização cria
obstáculos para a democracia, mas por razões muito diferentes – primordialmente,
porque ameaça os valores conservadores tradicionais.
Essa posição
assume formas muito diferentes no interior dos EUA e fora deles.
Os pensadores
conservadores de fora dos EUA que encarnam a globalização como uma expansão
radical da hegemonia americana argumentam, nisso convergindo com os
sociais-democratas, que os mercados econômicos precisam de regulamentação
estatal e que a estabilidade dos mercados é ameaçada pela anarquia das forças
econômicas globais.
A força básica
desses argumentos, no entanto, está centrada nos aspectos culturais e não nos
econômicos.
Os críticos
conservadores de fora dos EUA sustentam, por exemplo, que a sociedade
norte-americana é tão corrompida – com sua débil coesão social, o declínio das
estruturas familiares, os altos índices de criminalidade e encarceramento e
assim por diante – que não tem força política ou fortaleza moral para dominar
outros países.
No interior dos
EUA, os argumentos conservadores escorados em valores tradicionais consideram o
crescente envolvimento americano em questões globais e o domínio cada vez menos
regulado do capital, prejudiciais à vida moral e aos valores tradicionais dos
próprios EUA.
Em todos esses
casos, os valores ou instituições sociais tradicionais (ou aquilo que alguns
chamam de civilização) precisam ser protegidos, preservando-se o interesse
nacional contra as ameaças da globalização.
O estado global de
guerra e suas pressões pela aceitação da globalização como fato consumado
diminuíram, mas não eliminaram as expressões dessa posição.
O conservadorismo
ligado aos valores tradicionais geralmente assume hoje a forma de um ceticismo
em relação à globalização e de um pessimismo quanto aos benefícios que a
hegemonia norte-americana afirma proporcionar ao próprio país e ao
mundo.
Mas nenhum desses
argumentos, contudo, parece suficiente para enfrentar a questão da democracia e
da globalização.
O que está claro,
isso sim, a partir de todos eles – de direita e de esquerda, pró-globalização e
antiglobalização – é que a globalização e a guerra global põem a democracia em
questão.
Como se sabe,
muitas vezes nos últimos séculos a democracia tem sido declarada “em crise”,
geralmente por aristocratas liberais temerosos da anarquia do poder popular ou
de tecnocratas incomodados com a desordem dos sistemas parlamentares.
Nosso problema da
democracia, contudo, é diferente.
Em primeiro lugar,
a democracia é enfrentada hoje como um salto em escala, do Estado-nação para
todo o planeta, sendo com isso desvinculada de seus tradicionais significados e
práticas modernos.
Como tentaremos
demonstrar adiante, a democracia deve ser entendida e praticada de maneira
diferente nesse novo contexto e nessa nova escala. Por isso, todas as quatro
categorias de argumentos acima delineados são insuficientes: por não encarar de
maneira adequada a escala da crise contemporânea da democracia.
Uma segunda razão,
substancial e mais complexa, pela qual esses argumentos são insuficientes está
no fato de que, mesmo quando falam de democracia, sempre a limitam ou a
adiam.
Hoje, a posição
aristocrática liberal consiste em insistir primeiro na liberdade, deixando a
democracia talvez para algum momento posterior.
Em termos
vulgares, o projeto de liberdade primeiro e democracia depois frequentemente se
traduz no domínio absoluto da propriedade privada, minando a vontade geral.
O que os
aristocratas liberais não entendem é que, na era da produção biopolítica, o
liberalismo e a liberdade baseados na virtude de poucos ou mesmo de muitos
vão-se tornando impossíveis (até mesmo a lógica da propriedade privada vem sendo
ameaçada pela natureza social da produção biopolítica).
A virtude de todos
vai-se tornando hoje a única base para a liberdade e a democracia, que já não
podem ser separadas.
Os gigantescos
protestos contra aspectos políticos e econômicos do sistema global, entre eles o
atual estado de guerra, que examinaremos detalhadamente adiante, devem ser
encarados como fortes sintomas da crise da democracia.
O que esses
diferentes protestos deixam claro é que a democracia não pode ser feita ou
imposta de
cima.
Os manifestantes
recusam as noções de democracia vinda de cima promovidas por ambos os lados da
guerra fria: a democracia não é simplesmente a face política do capitalismo nem
o domínio de elites burocráticas.
E a democracia não
resulta de intervenções militares e mudanças de regime, nem dos vários modelos
atuais de “transição para a democracia”, que geralmente se baseiam em algum tipo
de caudilhismo latino-americano e se revelaram mais eficazes para criar novas
oligarquias do que para criar qualquer sistema democrático.
Todos os
movimentos sociais radicais desde 1968 se têm insurgido contra essa corrupção do
conceito de democracia, que a transforma numa forma de domínio imposto e
controlado de cima.
Em vez disso,
insistem, a democracia só pode surgir de baixo. Talvez a atual crise do
conceito de democracia decorrente de sua nova escala global sirva de
oportunidade para que retornemos a seu significado mais antigo, como governo de
todos por todos, uma democracia sem “se” e sem “mas” [“A democracia da
multidão”, objeto do cap. seguinte 3.3, p. 411].
[pág. 411] Os
movimentos que expressam queixas contra as injustiças de nosso atual sistema
global e as propostas práticas de reforma, que enumeramos na sessão anterior,
constituem poderosas forças de transformação democrática, mas além disso
precisamos repensar o conceito de democracia à luz dos novos desafio e
possibilidades apresentados por nosso mundo.
Essa reelaboração
conceitual é a tarefa primordial de nosso livro. Não pretendemos apresentar um
programa concreto de ação para a multidão, e sim tentar elaborar as bases
conceituais sobre as quais se poderá firmar-se um novo projeto de democracia.
[Fim do
excerto.]
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