·
“Plataforma
política” e “utilidade” da Fraternidade Muçulmana
·
“Pagamentos” aos
países da OTAN por serviços de “mudança de regime”
·
Nova “legislação”
eleitoral, escrita pelo CNT
Franklin Lamb |
6-8/1/2012, Franklin Lamb
(de Trípoli),
Counterpunch
“Ten per cent is about what the Brotherhood thinks we are
worth”
Traduzido pelo
Coletivo da Vila
Vudu
Nas entrevistas e
conversas com muitos líbios – estudantes, advogados, juízes no Ministério da
Justiça, donos de lojas e conhecidos em Trípoli, a impressão que se têm é que a
Fraternidade Muçulmana (FM) não tem apoiadores nessa sociedade religiosa,
conservadora, de muçulmanos sunitas. A opinião que mais se ouve segue, em linhas
gerais, alguma coisa como “a Fraternidade é muito diferente de como os líbios
vemos o Islã”; “São estrangeiros e querem intervir na vida dos líbios”; e “Não
nos interessa trocar um regime autoritário, por outro.”
Isso posto, para
muitos observadores na Líbia, é altamente provável que a Fraternidade Muçulmana
vença as eleições previstas para o mês de junho.
A causa de a
Fraternidade Muçulmana estar ganhando força, segundo a opinião de vários
especialistas, é o apoio do Qatar e o fato de a FM ter organizações muito bem
estruturadas no Egito, Tunísia, Marrocos, Argélia e Turquia. Os voos que chegam
a Trípoli, vindos do Egito, vêm sempre lotados de agentes da FM, segundo o
professor [que chamaremos de] “Dr. Ali”, cientista político pro-Gaddafi que,
pelo menos até agora, ainda não foi demitido da universidade onde dá
aulas.
A FM já está muito
bem organizada e trabalha com grandes orçamentos nas periferias de várias
cidades líbias, recrutando membros e organizadores de campanhas sociais,
operando sempre com extrema discrição. Os membros foram instruídos a raspar as
barbas; prometer governo sem corrupção; evitar discussões acaloradas; lembrar
aos líbios mais ansiosos que “a Líbia não é o Afeganistão” e que, na Líbia,
todos querem segurança, paz doméstica e nenhuma interferência
externa.
Mesmo assim, um
novo documento de orientação geral distribuído pelo Guia Geral da FM no Egito,
Dr. Mohammad Badih, e que sugere que a FM estaria trabalhando a favor de um
Califato Islâmico, conforme os princípios definidos pelo fundador da FM, o Imã
Hassan al-Banna, gerou muita controvérsia nos círculos políticos líbios, depois
de ter também gerado muita discussão no Egito.
EUA, Grã-Bretanha
e França apenas observam, por hora, tentando avaliar o rumo dos acontecimentos –
como me disse o embaixador de um país do sul da África.
Muitos – entre os
quais funcionários do Conselho Nacional de Transição, além de advogados e juízes
do Ministério da Justiça (onde estive semana passada para entrevistas, durante
dois dias, à procura de informação sobre várias pessoas que permanecem sob
custódia do Conselho Nacional de Transição e das milícias) – dizem que o
Departamento de Estado dos EUA dá a impressão de ainda não ter definido qualquer
política clara para a Líbia, porque os americanos ainda não têm posição clara
sobre a Fraternidade Muçulmana.
Para várias das
pessoas com quem falei, alguns especialistas norte-americanos insistem na ideia
de que estaria em rápida formação um “crescente”, um “arco” da FM, por todo o
Magreb; que esse “arco” também estaria crescendo na Turquia; e que a FM
rapidamente dominará a Síria, a partir do momento em que (e se) o governo Assad
for derrubado.
A Fraternidade
Muçulmana pode ser muito útil a Washington.
Muitos no
Congresso e no governo Obama (e o
lobby sionista dentro e
fora do Congresso) entendem que, depois de o governo dos EUA ter falhado no
esforço para provocar guerra entre sunitas e xiitas em toda a região; a
Fraternidade Muçulmana pode ser a ferramenta inesperada com a qual contarão para
o mesmo objetivo – que é a única política dos EUA para essa parte do mundo,
desde o final dos anos 1980s.
Esses mesmos
grupos também dão sinais de esperar que, depois de obter fatia considerável de
poder no próximo governo da Síria, a Fraternidade Muçulmana conseguirá, em pouco
tempo, implantar-se também no Líbano; com isso, a comunidade sunita
reencontraria, afinal, a liderança política forte que perdeu há sete anos, desde
o assassinato do primeiro-ministro Rafiq Hariri; e teria meios para deslocar do
poder o Hezbollah xiita.
Em resumo, é bem
provável que os países da OTAN nada façam para alterar o atual rumo das
eleições; que se ‘descolem’ do Conselho Nacional de Transição (o qual, de
qualquer modo, só tem mais seis meses no poder); e que deixem que a Fraternidade
Muçulmana aproxime-se cada vez mais de controlar o próximo governo na
Líbia.
A Fraternidade
Muçulmana na Líbia tem, de fato, muitas propostas a encaminhar, todas
diretamente conectadas com vários dos problemas cruciais que os líbios
enfrentam; e o grupo tem longa experiência na organização de partidos políticos
à moda das democracias representativas, algo de que os líbios estão distantes
desde 1972, quando se organizaram os Comitês Populares Revolucionários com
competência para tomar decisões legislativas e
administrativas.
Os líbios
enfrentam hoje muitas graves questões, dentre as quais as
seguintes:
– falta de
segurança, com as milícias cada vez mais agressivas, tanto nos confrontos com a
população quanto nas disputas entre as próprias milícias (como aconteceu em
Trípoli, essa semana);
– rumores
crescentes de corrupção dentro do Conselho Nacional de Transição. Um dos
assuntos de que mais se fala em Trípoli é que não há dinheiro no Banco Central
da Líbia para abastecer os bancos em todo o país. Não há dúvidas de que algo há
aí, e mais dia menos dia, à medida que se acumulem as dificuldades bancárias, o
escândalo explodirá. Ainda no verão, o governo Gaddafi limitou os saques a 500
dinars mensais ($475). O novo “governo” aumentou esse limite para 750 dinars
mensais, o que ainda não é suficiente, com preços que aumentaram quase 18% em
média desde aquelas primeiras regras, que incluíram congelamento de preços,
ainda sob Gaddafi; e preços que não param de aumentar.
Começaram a
acumular-se suspeitas de corrupção, no caso das dificuldades bancárias, porque –
segundo funcionário do novo Banco Central Líbio, que trabalhou durante 15 anos
nos serviços que monitoram pagamentos recebidos por petróleo líbio exportado –,
embora o petróleo continue a ser embarcado e enviado, como sempre foi, e as
transações apareçam na contabilidade como pagamentos feitos, nenhum dinheiro
entra, realmente, no caixa do Banco Central. Isso, explicou aquele funcionário,
porque os países da OTAN estão recebendo petróleo (também o Qatar, rico em gás e
petróleo) gratuito. Esse é o arranjo que o Conselho Nacional de Transição fez
com a OTAN, para “pagamento” dos serviços prestados pela Aliança na “mudança de
regime”.
Não há dúvidas de
que, mais dia menos dia, o escândalo eclodirá, por menos noticiadas que sejam
essas questões. Tentando verificar a verdade das informações que obtive daquele
funcionário, falei também com a funcionária encarregada diretamente da entrada
daqueles pagamentos. Ouvi dela que os funcionários do Banco Central estão
indignados, porque falta moeda em todas as agências pelo país, onde se formam
filas de clientes desesperados que, muitas vezes, têm de esperar horas e, quando
chegam ao caixa, são informados que terão de voltar outro dia, para sacar os 750
dinars do próprio dinheiro que podem sacar, por mês.
Essa semana,
assisti a cenas tristes nas agências bancárias próximas à face sul da Praça
Verde e na rua Omar Muktar, onde eu tentava, em vão, encontrar uma máquina de
saque automático que funcionasse. É triste, sim, ver idosos em fila, sob chuva
forte, por horas, tentando sacar dinheiro que é deles; e quando afinal chegam ao
caixa, ficam sabendo que terão de voltar outro dia, quando, enshallah, talvez ainda haja dinheiro
para os que estavam no fim da fila. Muita gente diz que deveria ter sacado todo
o dinheiro dos bancos, logo em fevereiro, quando ainda era possível. Agora é
tarde, e a irritação é crescente.
O candidato
preferido do Qatar, Abdel Hakim Belhaj – comandante do Conselho Militar de
Trípoli; ex-líder do Grupo de Combate Líbio Islâmico [ing. Libyan Islamic Fighting Group] ligado
à Al-Qaeda; e que está processando ministros e o M-16 britânicos, acusando todos
de cumplicidade no complô do qual resultou que ele e sua esposa foram entregues
em março de 2004 ao serviço secreto da Líbia, em cujas mãos, segundo Belhaj, ele
teria passado sete anos sob tortura – está prometendo que, se eleito, resolverá
o problema dos bancos. Conta, provavelmente, para isso, com a ajuda do Qatar,
enquanto se aproximam as eleições previstas para junho.
A Fraternidade
Muçulmana, por sua vez, converteu em item de sua “plataforma eleitoral” na Líbia
o pagamento devido aos combatentes, com promessa de criar empregos para os
arregimentados nas milícias mercenárias, vários dos quais absolutamente não
confiam em Belhaj (dentre outros motivos porque prosseguem os confrontos armados
entre milícias do leste e milícias do oeste da Líbia).
A Fraternidade
Muçulmana apoia até os direitos das mulheres... ou quase. O grupo fala sempre
mais de reconstruir a cidade; de limpeza urbana e recolhimento do lixo; de
organizar o trânsito – os engarrafamentos praticamente paralisam algumas ruas do
centro de Trípoli (mais de um milhão de líbios acorreram à capital e não dão
mostras de pensar em voltar às cidades de onde fugiram, ainda completamente
destruídas); e nunca esquece o diálogo entre as seitas.
A necessidade de
desarmar as milícias, de conseguir que os jovens armados entreguem as armas às
autoridades; que se alistem, se quiserem, nas forças policiais ou num novo
exército líbio regulares; ou que procurem emprego ‘normal’, abrindo mão dos
soldos que as milícias ainda pagam – são apenas algumas das questões
extremamente sensíveis, sobre as quais a Fraternidade Muçulmana absolutamente
não fala, ou fala sem qualquer convicção.
Internamente, a
Fraternidade Muçulmana e o Conselho Nacional de Transição já admitem que ninguém
conseguirá desarmar as milícias, no curto prazo. Jovens com os quais conversei
ontem durante uma manifestação na Praça Verde disseram, com todas as letras, que
“sentem saudade” dos dias de guerra: “Era quase sempre muito emocionante. E fiz
lá grandes amigos” – disse-me um rapaz muito jovem, de Benghazi, decidido a
permanecer em Trípoli, vivendo com seus companheiros de
milícia.
Mais um
desenvolvimento que operará a favor da Fraternidade Muçulmana nas próximas
eleições é a nova lei de alistamento eleitoral implantada na 2ª-feira passada: a
nova legislação elimina, na prática, vários dos principais opositores da
Fraternidade Muçulmana.
A nova lei
regulamenta a eleição de uma assembleia nacional que deverá redigir uma nova
constituição para a Líbia e formar um segundo governo de “transição”– e
espera-se que toda a nova legislação esteja completada no prazo de um
mês.
Pela nova
legislação, “ex-membros do governo Gaddafi” não se podem candidatar nas próximas
eleições. Dentre os juízes com os quais conversei no Ministério da Justiça,
alguns manifestaram profunda preocupação, porque, disseram, mais de 80% da
equipe que trabalha naquele e em muitos outros ministérios – juízes e advogados,
dentre outros funcionários –, já trabalhavam nas mesmas funções durante o
governo de Gaddafi e são todos bons líbios e bons funcionários, que jamais se
aproximaram de qualquer tipo de corrupção. O escopo e a aplicação das novas leis
gerarão ali muita discussão.
Pela nova
legislação, também não se pode candidatar às eleições líbias nenhum professor ou
acadêmico cuja produção intelectual e acadêmica publicada tenha algum dia
considerado ou citado as formulações do
Livro Verde – o
livro-manifesto em que Gaddafi expôs sua teoria da sociedade e do governo, e no
qual declara a Líbia uma “república dos muitos”. Essa restrição da nova lei
atinge milhares de líbios, porque, em todos os casos, exibir currículo acadêmico
no qual houvesse estudos da
Jamayrya e do Livro Verde
serviu, durante décadas, como meio para abrir portas. Aconteceu também na China,
quando inúmeros intelectuais usavam, como meio para abrir portas na carreira
acadêmica, muitas referências ao
Livro Vermelho de Mao,
sempre presentes, também, nos currículos acadêmicos. Intelectuais, professores,
alunos, jornalistas e outros, que durante décadas escreveram sobre e citaram o
Livro Verde de Gaddafi – no qual
se discutem questões de política e de economia e há reflexões sobre a
organização social e a participação política – estão, todos eles, nos termos da
nova lei eleitoral, impedidos de candidatar-se.
A nova legislação
de alistamento eleitoral é preconceituosa e limita o número de assentos com
votos reservados a mulheres no Parlamento, a apenas 10% dos 200 lugares; mas a
lei nada diz sobre garantir votos a representantes das áreas tribais. Uma
senhora com quem conversei comentou, indignada: “Para a Fraternidade Muçulmana,
uma mulher vale 20 vezes menos que um homem”.
Nada sugere que o
Conselho Nacional de Transição tenha interesse em criar obstáculos eleitorais
contra a Fraternidade Muçulmana, sobretudo nos últimos tempos, quando começam a
acumular-se críticas sobre ação do governo de transição, que estará extinto
dentro de poucos meses.
Mês
passado, uma organização guarda-chuva, que se apresentou como representante de
70% dos mercenários das milícias de Benghazi exigiu que o Conselho Nacional de
Transição lhes garantisse, no mínimo, 40% dos postos de trabalho no governo. O
Conselho Nacional de Transição ignorou o grupo e nomeou tecnocratas. Mustapha
Abdul Jalis já esqueceu a promessa de aposentar-se em junho; e tem sido
criticado também por não ter cumprido a promessa de renunciar ao cargo depois da
queda de Sirte.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Registre seus comentários com seu nome ou apelido. Não utilize o anonimato. Não serão permitidos comentários com "links" ou que contenham o símbolo @.