Interessante
“genalogia da resistência” (coisa rara)
Enviado pelo pessoal da Vila Vudu
Excerto do item
1.3 “A Resistência”, do Cap. I “A Guerra”, in HARDT,
Michael e NEGRI, Antonio, Multidão, Guerra e
democracia na era do Império
[2004], Rio de Janeiro:
Record
(trad. Clóvis Marques; rev. Técnica Giuseppe Cocco), 2005, pp. 116-126.
Voltando a examinar a genealogia das revoluções e dos
movimentos de resistência da era moderna, vemos que a ideia de “povo” tem
desempenhado papel fundamental, tanto no modelo de exército popular quanto no da
guerrilha, no estabelecimento da autoridade da organização e na legitimação do
seu uso da violência.
O “povo” é uma
forma de soberania que pretende substituir a autoridade vigente de Estado e
tomar o poder. Essa moderna legitimação da soberania, mesmo no caso dos
movimentos revolucionários, é na realidade produto de uma usurpação.
O povo muitas vezes serve como meio
termo entre o consentimento dado pela população e o comando exercido pelo poder
soberano, mas de maneira geral a expressão serve apenas como tentativa de
validar uma autoridade estabelecida.
A moderna
legitimação do poder e da soberania, mesmo em casos de resistência e rebelião
está sempre assentada num elemento transcendente, seja essa autoridade (segundo
as expressões de Max Weber) tradicional, racional ou carismática.
A ambiguidade do
conceito de povo soberano revela-se uma espécie de duplicidade, já que a relação
legitimadora tende sempre a privilegiar a autoridade, e não a população como um
todo. Essa relação ambígua entre o povo e a soberania explica a permanente
insatisfação que vimos observando com o caráter não democrático das formas
modernas de organização revolucionária, o reconhecimento de que as formas de
dominação e autoridade contra as quais lutamos permanentemente reaparecem nos
próprios movimentos de resistência.
Além da violência
exercida pelo povo passam pela mesma crise a que nos referimos anteriormente em
termos de legitimação da violência de Estado. Também aqui já não têm vigência os
tradicionais argumentos jurídicos e morais.
- Seria hoje
possível imaginar um novo processo de legitimação que não se escore na soberania
do povo, baseando-se, isso sim, na produtividade [p. 117] biopolítica da
multidão?
- Poderão
novas formas organizacionais de resistência e revolta finalmente satisfazer o
desejo de democracia implícito em toda a moderna genealogia de lutas?
- Existiria um
mecanismo imanente, que não recorra a qualquer autoridade transcendente, capaz
de legitimar o uso da força na luta da multidão para criar uma nova sociedade
baseada na democracia, na igualdade e na liberdade?
- Podemos
sequer considerar que faça sentido falar de uma guerra da
multidão?
Um modelo de
legitimação que encontramos na modernidade e que poderia nos ajudar a atacar
essas questões é o que anima a luta de classes.
Não estamos
pensando aqui tanto nos projetos dos Estados e partidos socialistas, que
certamente construíram suas formas modernas de soberania, mas nas lutas
cotidianas dos próprios trabalhadores, seus atos coordenados de resistência,
insubordinação e subversão das relações de dominação no mercado de trabalho e na
sociedade de maneira geral.
As
classes subordinadas organizadas em revolta nunca alimentaram qualquer ilusão
sobre a legitimidade da violência de Estado, mesmo quando adotavam estratégias
reformistas que as levavam a tratar com o Estado, forçando-o a providenciar
mecanismos de previdência social e solicitando-lhe sanção legal, como no caso do
direito de greve. Elas nunca esqueceram que as leis que legitimam a violência de
Estado são normas transcendentais que mantêm os privilégios da classe dominante
(especialmente os direitos dos proprietários) e a subordinação do resto da
população. Sabiam que enquanto a violência do capital e do Estado repousa na
autoridade transcendente, a legitimação de sua luta de classes baseava-se apenas
em seus próprios interesses e desejos.[96]Desse modo, a luta de classes
constituía um modelo moderno da base imanente de legitimação, no sentido de que
não recorria a qualquer autoridade soberana para justificar-se.
Não consideramos,
todavia, que a questão da legitimação das lutas da multidão possa ser resolvida
simplesmente estudando-se a arqueologia da guerra de classes ou tentando
estabelecer alguma continuidade fixa [p. 118] em relação ao passado.
As lutas do
passado podem fornecer exemplos importantes, mas as novas dimensões do poder
requerem novas dimensões de resistência. Além disso, essas questões não podem
ser resolvidas só mediante a reflexão teórica, devendo também ser atacadas na
prática. Devemos retomar nossa genealogia onde a deixamos e ver como as próprias
lutas reagiram.
Depois de 1968, o
ano em que um longo ciclo de lutas culminou simultaneamente nas regiões
dominante e subordinada do mundo, a forma dos movimentos de resistência e
libertação começou a mudar radicalmente – uma mudança que correspondia às
mudanças na força de trabalho e nas formas da produção social.
Podemos reconhecer
essa mudança primeiro que tudo nas transformações da natureza da guerra de
guerrilha.
A mudança mais
óbvia foi que os movimentos de guerrilha começaram a transferir-se do campo para
a cidade, dos espaços abertos para os espaços fechados. As técnicas de guerra de
guerrilha passaram a ser adaptadas às novas condições de produção pós-fordista,
de acordo com os sistemas de informação e as estruturas em rede.
Finalmente, à
medida que cada vez mais adotava as características da produção biopolítica,
disseminando-se por todo o tecido social, a guerra de guerrilha colocava mais
diretamente como sua meta a produção de subjetividade – subjetividade econômica
e cultural, tanto material quanto imaterial. Em outras palavras, não era apenas
uma questão de conquistar “corações e mentes” e sim de criar novos corações e
mentes mediante a construção de novos circuitos de comunicação, novas formas de
colaboração social e novos modos de interação. Nesse processo, podemos
distinguir uma tendência para ir além do modelo da moderna guerrilha, em direção
a formas mais democráticas de organização em rede.
Uma das máximas da
guerra de guerrilha, compartilhada pelos modelos maoísta e cubano, consistia em
privilegiar o rural sobre o urbano.
No fim da década
de 1960 e ao longo da década seguinte, as lutas de guerrilha tornaram-se cada
vez mais metropolitanas, especialmente nas Américas e na Europa. [97] (p. 119) As revoltas nos guetos dos
americanos de origem africana na década de 1960 terão talvez constituído o
prólogo à urbanização da luta política e do conflito armado na década de 1970.
Naturalmente,
muito dos movimentos urbanos desse período não adotaram o modelo organizacional
policêntrico típico dos movimentos de guerrilha, seguindo em grande parte o
velho modelo hierárquico e centralizado das estruturas militares tradicionais.
O Partido dos
Panteras Negras e a Frente de Libertação do Quebec na América do Norte; os
tupamaros uruguaios; e a Ação Libertadora Nacional brasileira, na América do
Sul, assim como a Facção do Exército Vermelho alemão e as Brigadas Vermelhas
italianas na Europa foram exemplos dessa estrutura militar centralizada e
passadista.
Nesse período,
surgiram também movimentos urbanos descentrados ou policêntricos cujas
organizações se assemelhavam ao modelo da guerrilha moderna. Em certa medida,
nesses casos, as táticas de guerra de guerrilha eram simplesmente transpostas do
campo para a cidade. A cidade é uma selva. Os guerrilheiros urbanos conhecem
capilarmente o seu terreno, de modo que podem a qualquer momento unir-se para
atacar e em seguida dispersar-se, desaparecendo em seus esconderijos.
Cada vez mais, no
entanto, o foco não estava em atacar os poderes dominantes, mas em transformar a
própria cidade.
Nas lutas
metropolitanas, tornou-se cada vez mais intensa a estreita relação entre
desobediência e resistência, entre sabotagem e deserção, contrapoder e projetos
constituintes.
As
grandes lutas da Autonomia na Itália na década de 1970, por exemplo, conseguiram
temporariamente redesenhar a paisagem das grandes cidades, liberando zonas
inteiras nas quais novas culturas e novas formas de vida vieram a ser criadas.
[98]
A verdadeira
transformação dos movimentos guerrilheiros nesse período, no entanto, pouco tem
a ver com o terreno urbano ou rural – ou, antes, a aparente mudança para espaços
urbanos é um sintoma de uma transformação mais importante.
A transformação mais profunda
ocorre na relação entre a organização dos movimentos e a organização [p. 120] da produção econômica e social. [99]
Como já vimos, os
exércitos de operários industriais organizados nas fábricas correspondem às
formações militares centralizadas no exército popular, ao passo que as formas
guerrilheiras de rebelião estão ligadas à produção camponesa, dispersada pelo
campo em seu relativo isolamento.
A partir da década
de 1970, contudo, as técnicas e as formas organizacionais da produção industrial
transferiram-se para unidades de trabalho menores e mais móveis, assim como para
estruturas de produção mais flexíveis, mudança frequentemente vista como uma
transição da produção fordista para a produção pós-fordista.
As pequenas
unidades móveis e as estruturas flexíveis da produção pós-fordista correspondem
em certa medida ao modelo policêntrico da guerrilha, mas o modelo guerrilheiro é
imediatamente transformado pelas tecnologias do pós-fordismo.
As redes de
informação, comunicação e cooperação – os eixos fundamentais da produção
pós-fordista – começam a definir os novos movimentos guerrilheiros. Não só esses
movimentos utilizam tecnologias como a internet como ferramentas de organização,
como também começam a adotar tais tecnologias como modelos para suas próprias
estruturas organizacionais.
Em certa medida,
esses movimentos pós-fordistas pós-modernos completam e solidificam a tendência
policêntrica dos anteriores modelos de guerrilha. De acordo com a clássica
formulação cubana do foquismo ou guevarismo, as forças guerrilheiras são
policêntricas, compostas de numerosos focos relativamente independentes, mas
essa pluralidade deve em algum momento ser reduzida a uma unidade, tornando-se
as forças guerrilheiras um exército.
A ordenação em
rede, em contrapartida, baseia-se na pluralidade contínua de seus elementos e redes de comunicação, de
tal maneira que a redução a uma estrutura de comando centralizada e unificada é
impossível.
A forma
policêntrica do modelo guerrilheiro evolui assim para uma forma em rede na qual
não existe um centro, apenas uma pluralidade irredutível de nodos em comunicação
uns com os outros. [pág. 121]
Como no caso da
produção econômica pós-fordista, uma característica da luta em rede da multidão
é que ocorre no terreno biopolítico – em outras palavras, ela produz diretamente
novas subjetividades e novas formas de vida. É verdade que as organizações
militares sempre envolveram a produção de subjetividade.
O exército moderno
produziu o soldado disciplinado capaz de cumprir ordens, como o operário
disciplinado da fábrica fordista, e a produção do sujeito disciplinado nas
modernas forças guerrilheiras era muito semelhante.
Mais uma vez, a
luta em rede, como a produção pós-fordista, não recorre da mesma maneira à
disciplina: seus valores fundamentais são a criatividade, a comunicação e a
cooperação auto-organizada.
Naturalmente, esse
novo tipo de força resiste e ataca o inimigo como sempre fizeram as forças
militares, mas cada vez mais o seu foco é interno – produzir novas
subjetividades e novas formas expansivas de vida dentro da própria organização.
Já não se toma o “povo” como base, e a meta deixou de ser tomar o poder da
estrutura do Estado soberano.
Os elementos
democráticos da estrutura guerrilheira são levados mais longe na forma em rede,
tornando-se, a organização, menos um meio, e mais um fim em si
mesma.
Dentre os
numerosos exemplos de guerra civil nas últimas décadas do século 20, a
vasta maioria ainda era organizada de acordo com modelos ultrapassados; fosse o
velho modelo moderno de guerrilha ou a tradicional estrutura militar
centralizada, entre outros casos no Khmer Vermelho cambojano, entre os mujahedin do Afeganistão, nos casos do Hamás no Líbano
e na Palestina, do Novo Exército Popular das Filipinas, do Sendero Luminoso peruano e das guerrilhas das FARC e do ELN
na Colômbia.
Muitos desses
movimentos, sobretudo quando são derrotados, começam a se transformar, assumindo
características das organizações em rede.
Uma das rebeliões
que olham para frente, ilustrando a transição da organização guerrilheira
tradicional para formas em rede, é a Intifada palestina, que começou pela primeira vez
em 1987 e voltou a manifestar-se em 2000.
São
escassas as informações dignas [pág. 122] de crédito sobre a Intifada, mas dois modelos parecem
coexistir nessa sublevação. [100]
Por um lado, a
revolta é organizada internamente por homens pobres em nível extremamente local,
em torno de líderes de vizinhança e comitês populares. Os apedrejamentos e
conflitos diretos com policiais e autoridades israelenses que deram início à
primeira intifada rapidamente se disseminaram por grande parte
de Gaza e da Cisjordânia.
Por outro lado, a
revolta é organizada externamente pelas diferentes organizações políticas
palestinas a maioria das quais estava no exílio no início da primeira intifada, sob controle de homens de
uma geração mais velha. Ao longo de suas diferentes fases, a intifada parece ter-se definido por diferentes
proporções dessas duas formas organizacionais, uma interna e a outra externa;
uma horizontal, autônoma e disseminada e a outra vertical e centralizada. Desse
modo, a intifada é uma organização ambivalente, que
aponta para trás, em direção a formas centralizadas mais antigas, e também
aponta para frente, para novas formas disseminadas de
organização.
As lutas contra
o apartheid na África do Sul também exemplificam essa
transição e a presença simultânea de duas formas organizacionais básicas, mas
por um período muito mais longo.
A composição
interna das forças que desafiaram e acabaram derrubando o regime do apartheid era extremamente complexa e mudava com o
tempo, mas é possível identificar claramente, pelo menos a partir de meados da
década de 1970, com a revolta de Soweto, e ao longo da década de 1980, uma vasta
proliferação de lutas horizontais.
O ódio negro
contra a dominação branca certamente era comum aos vários movimentos, mas eles
se organizavam de forma relativamente autônomas em diferentes setores da
sociedade.
Os grupos
estudantis foram protagonistas importantes, e os sindicatos, com uma longa
história de militância na África do Sul, desempenharam um papel central. Ao
longo desse período, essas lutas horizontais também mantinham uma relação
dinâmica com os eixos verticais das organizações tradicionais e mais antigas de
lideranças como o Congresso Nacional Africano (CNA), que se manteve [pág. 123]
clandestino e no exílio até 1990.
Podemos encarar
esse contraste entre a organização autônoma e horizontal e a liderança
centralizada como uma tensão entre as lutas organizadas (de trabalhadores,
estudantes e outros) e o CNA, mas talvez seja mais esclarecedor reconhecer que
também se trata de uma tensão no interior do CNA; uma tensão que em certos
sentidos se manteve e ampliou-se desde a chegada do CNA ao poder mediante
eleições, em 1994. Como a
intifada, portanto, as lutas contra o apartheid assumiram duas formas organizacionais
diferentes, assinalando um ponto de transição nessa nossa
genealogia.
O Exército
Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), que surgiu em Chiapas na década de
1990, representa um exemplo ainda mais claro dessa transformação: os zapatistas
são o pivô entre o velho modelo guerrilheiro e o novo modelo de estruturas
biopolíticas em rede.
Também demonstram esplendidamente como a transição
econômica do pós-fordismo pode funcionar igualmente em territórios urbanos e
rurais, ligando experiências locais a lutas globais. [103]
Os zapatistas, que
surgiram como um movimento camponês e nativo, e basicamente continuam a sê-lo,
usam a internet e as tecnologias de comunicação não apenas para distribuir seus
comunicados para o mundo exterior como também, pelo menos em certa medida, como
elemento estrutural dentro de sua organização, especialmente na medida em que
ela se estende para fora do sul mexicano, alcançando os níveis nacional e
global.
A
comunicação é elemento central da concepção de revolução dos zapatistas, e eles
enfatizam repetidas vezes a necessidade de criar organizações horizontais em
rede, em vez de estruturas verticais centralizadas. [104]
Cabe observar,
naturalmente, que esse modelo organizacional descentralizado vai de encontro à
nomenclatura militar tradicional do EZLN. Afinal, os zapatistas se consideram um
exército, organizando-se de acordo com uma série de títulos e patentes
militares.
Observando-se mais de perto, contudo, é possível ver que
embora adotem uma versão tradicional do modelo guerrilheiro latino-americano,
inclusive com suas tendências para a hierarquia militar centralizada [pág. 124],
os zapatistas constantemente minam essas hierarquias na prática, descentrando a
autoridade com as elegantes inversões e a ironia típica de sua retórica. (Na
verdade, eles transformam a própria ironia em estratégia política [105] O
paradoxal lema zapatista do “comandar obedecendo”, por exemplo, objetiva
inverter as relações tradicionais de hierarquia dentro da organização.
As
posições de liderança são rotativas, e parece haver um vazio de autoridade no
centro. Marcos, o porta-voz principal e ícone quase mítico dos zapatistas, tem a
patente de subcomandante para enfatizar sua relativa subordinação. Além disso, o
objetivo do movimento nunca foi derrotar o Estado e invocar autoridade soberana,
e sim mudar o mundo sem tomar o poder. [106] Em outras palavras, os
zapatistas adotam todos os elementos da estrutura tradicional e os transformam,
demonstrando da maneira mais clara possível a natureza e a direção da transição
pós-moderna das formas organizacionais.
Nas últimas
décadas do século 20 também surgiram, especialmente nos EUA, numerosos
movimentos que costumam ser agrupados sob a rubrica “políticas de identidade”,
nascidos basicamente das lutas feministas, das lutas de lésbicas e gays e das
lutas de fundo racial.
A característica
organizacional mais importante desses diferentes movimentos é a insistência na
autonomia e a recusa de qualquer hierarquia centralizada, de líderes ou
porta-vozes.
De sua
perspectiva, o partido, o exército popular e a moderna força guerrilheira
parecem igualmente falidos, por causa da tendência dessas estruturas para impor
a unidade, negar as diferenças e subordiná-los aos interesses de outros.
Se não é possível
uma maneira democrática de agregação política que nos permita preservar nossa
autonomia e afirmar nossas diferenças, proclamam eles, haveremos de nos manter
separados, por nossa própria conta.
Essa
ênfase na organização democrática e na independência também se manifesta nas
estruturas internas dos movimentos, nas quais encontramos uma série de
importantes experiências em matéria de processos decisórios colaborativos [pág.
126], coordenação de grupos de afinidade e assim por diante. A esse respeito, o
ressurgimento dos movimentos anarquistas, especialmente na América do Norte e na
Europa, tem sido muito importante, por sua ênfase na necessidade de liberdade e
organização democrática. [108]
Todas essas
experiências de democracia e autonomia, até mesmo nos menores níveis,
representam uma enorme riqueza para o futuro desenvolvimento dos
movimentos.
Finalmente, os
movimentos de globalização que se estenderam de Seattle a Gênova e aos Fóruns
Sociais Mundiais de Porto Alegre e Mumbai, mobilizando os movimentos contra a
guerra, constituem o exemplo até hoje mais claro de organizações disseminadas em
rede.
Um dos elementos
mais surpreendentes dos acontecimentos de Seattle em novembro de 1999 e em cada
uma das grandes manifestações ocorridas desde então é o fato de que grupos que
até então considerávamos diferentes e até contraditórios em seus interesses
agiam em comum – ambientalistas com sindicalistas, anarquistas com grupos
religiosos, gays e lésbicas com os que protestavam contra o complexo
carcerário-industrial.
Os grupos não se
apresentam unidos sob qualquer autoridade única; antes, se relacionando numa
estrutura em rede.
Os fóruns sociais,
os grupos de afinidades e outras formas de processos decisórios democráticos
constituem a base desses movimentos, que conseguem agir conjuntamente de acordo
com o que têm em comum. Por isso se denominam “movimento dos movimentos”.
A plena expressão
da autonomia e da diferença de cada um coincide aqui com a poderosa articulação
de todos.
A democracia
define tanto a meta dos movimentos quanto sua constante atividade.
Esses movimentos
de protesto da globalização com toda a evidência se mostram limitados sob muitos
aspectos. Para começar, embora sua visão e suas metas tenham alcance global, até
o momento só têm mobilizado quantidades significativas de pessoas na América do
Norte e na Europa. Depois, na medida em que continuarem a ser apenas movimentos
de protesto, passando de uma reunião de cúpula a outra, não serão capazes de se
transformar numa luta fundadora nem de articular uma organização social
alternativa.
Tais limitações
podem ser apenas obstáculos temporários, e esses movimentos podem descobrir
maneiras de superá-los. O que é mais importante para nossa exposição aqui,
todavia, é a forma dos movimentos. Esses movimentos são o exemplo mais avançado
até hoje de organização em rede.
Concluímos assim
nossa genealogia das formas modernas de resistência e guerra civil, que evoluiu
inicialmente de revoltas e rebeliões disparatadas de guerrilha para um modelo
unificado de exército popular; posteriormente, de uma estrutura militar
centralizada para o exército policêntrico de guerrilha; e finalmente, do modelo
policêntrico para a estrutura de rede disseminada. Essa é a história que ficou para
trás. É, sob muitos aspectos, uma história trágica, cheia de derrotas
brutais, mas também é um legado extraordinariamente rico que propulsiona para o
futuro o desejo de libertação e influencia de maneira crucial as maneiras de
concretizá-lo.
(...) A estrutura
disseminada em rede constitui o modelo de uma organização absolutamente
democrática que corresponde às formas dominantes de produção econômica e social
e também vem a ser a mais poderosa arma contra a estrutura vigente de poder.
(...)
Acreditamos que a
multidão coloca o problema da resistência social e a questão da legitimação de
seu próprio poder e violência em termos completamente diferentes (pág.
129).
Efetivamente já
sabemos algumas coisas que podem ajudar a orientar nossa paixão pela resistência
(pág. 130).
Em primeiro lugar,
sabemos que hoje a legitimação da ordem global baseia-se fundamentalmente na
guerra. Resistir à guerra e, portanto, resistir à legitimação dessa ordem
global, torna-se assim uma tarefa ética comum.
Em segundo lugar,
sabemos que a produção capitalista e a vida (e a produção) da multidão estão
associadas de maneira cada vez mais íntima e se determinam reciprocamente.
O capital depende
da multidão e, no entanto, está constantemente sendo lançado em crises porque a
multidão resiste à autoridade do capital e ao comando do capital. (Esse é um dos
temas centrais da Parte 2, adiante.)
No corpo-a-corpo
que une a multidão e o Império no campo biopolítico, quando o Império recorre à
guerra para se legitimar, a multidão recorre à democracia e a sua fundamentação
política.
A democracia que
se opõe à guerra é uma “democracia absoluta”.
Também podemos nos
referir a esse movimento democrático como um processo de “êxodo”, na medida em
que envolve o rompimento, pela multidão, dos elos que unem a autoridade soberana
imperial ao consentimento dos subordinados. (A democracia absoluta e o êxodo
serão os temas centrais do capítulo 3.)
Notas dos
autores
[96] O “jovem Marx”
elabora uma crítica da transcendência que liga a violência do capital à
violência do Estado. Ver por exemplo, Karl Marx, “Manuscritos Econômicos e
Filosóficos de 1844” ....
[97] Para um breve
apanhado da transição para os movimentos de guerrilha urbana em todo o mundo
nesse período, ver Ian Beckett, Modern Insurgencies e
Counter-insurgencies (Londres:
Routledge, 2001), 151-82.
[98] Para relatos e
análises em língua inglesa sobre a Autonomia na Itália na década de 1970, ver
Steve Wright,Storming Heaven: Class Composition and Struggle in Italian
Autonomist Marxism (Londres: Pluto,
2002; e Sylvere Lotinger e Christian Marazzi (orgs.) “Italy: Autonomia”, Semio-text(e) 3, n. 3 (2980). Ver também as longas
entrevistas com muitos dos protagonistas encontradas em Guido Borio, Francesca
Pozzi e Gigi Roggero (orgs.)Futuro Anteriore (Roma: Derive/Approdi,
2002).
[99] Ver Nick Dyer-Witherford, Cyber-Marx (Urbana: University of Illinois Press,
1999).
[100] Sobre a primeira intifada ver Robert Hunter, The Palestinian Uprising (Londres: Tauris, 1991). Sobre a
segunda intifada ver Roane Carey (org.), The New Intifada (Londres: Verso, 2001).
[103]
Lynn Stephen
explica como os zapatistas misturam a mitologia Tzeltal local com ícones
nacionais, como Zapata, em Zapata
Lives! Histories and Cultural Politics in Southern Mexico (Berkeley : University of California Press, 2002), p.
158-75.
[104] Sobre a organização em rede da estrutura dos zapatistas, ver Roger
Burbach, Globalization and
postmodern politics (Londres:
Pluto: 2001), 116-28; Fiona Jeffries, “Zapatismo and the Intergalactic Age”, em
Roger Burbach,Globalization and postmodern politics, 129-44; e Harry
Cleaver, “The Zapatistas and the Electronic Fabric of Struggle”, em John
Holloway e Eloína Paláez (orgs.) Zapatista! (Londres: Pluto,
1998), 81-103.
[105] O estilo dos
textos do subcomandante Marcos – ao mesmo tempo militantes e bem-humorados – é o
melhor exemplo da maneira como os zapatistas transformaram a ironia numa
estratégia política. Ver subcomandante Marcos, Our World is Our Weapon (Nova York, Seven Histories,
2001).
[106] Ver John Halloway, Change the world withou taking
power, (Londres: Pluto,
2002).
[108] Sobre o
ressurgimento de grupos anarquistas, ver David Graeber, “For a New
Anarchism”, New Left Review, 2ª.
série, n. 13 [jan.-fev. 2002], 61-73.
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