terça-feira, 17 de janeiro de 2012

No Golfo, a China pesa para o “lado certo da história”


Wen Jiabao

18/1/2012, *M K Bhadrakumar, Asia Times Online
Traduzido pelo Coletivo da Vila Vudu

Ignorou as ameaças dos EUA nas sanções contra o Irã; superou, numa passada, a divisão entre sunitas e xiitas no Golfo Persa; não deu à Primavera Árabe mais atenção que a mínima necessária; e, simultaneamente, saudou elegantemente os islâmicos. E, tudo isso, em concerto solo. A diplomacia chinesa nada de braçada no Oriente Médio.

O premiê Wen Jiabao está em visita de seis dias à Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos e Qatar, em movimento de diplomacia de primeiríssima qualidade. A China é provavelmente a única grande potência, dentre os membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU, que se pode declarar parceira firme de Síria e Irã, por um lado; e também de Arábia Saudita e Qatar, pelo outro lado. 

A China está conduzindo seu festim político e diplomático sem desperdiçar recursos e sem se comprometer em atos ou retórica espetaculosos. 

Prática e político-ideológica 

Mesmo assim, a China está incrivelmente ativa na região, expandindo sua presença de modo consistente e orientado, de olhos postos no futuro distante. 

No “sombrio pano de fundo político e econômico da paisagem internacional” hoje – com os EUA em declínio e a Europa em crise – a China viu uma janela de oportunidades particularmente convidativa para apresentar-se como parceira ideal para o Oriente Médio na “tarefa comum de contornar o impacto negativo do mal-estar econômico global”, de tal modo que os dois lados “possam extrair todas as vantagens de suas respectivas potencialidades e, juntas, trabalhar objetivamente para o desenvolvimento comum” – nas palavras da agência de notícias Xinhua, falando da “enorme importância” do tour de Wen pela região. 

Os fatos falam por si mesmos. A China comprou um combinado de 1,15 milhões de barris/dia de petróleo dos três países de maioria sunita agora incluídos no roteiro de Wen. Nos primeiros 11 meses de 2011, o fornecimento saudita à China permaneceu no patamar de 45,5 milhões de toneladas de cru – aumento de cerca de 13% em relação ao mesmo período de 2010. 

O Qatar é o maior fornecedor de gás natural liquefeito para a China e, nos primeiros 11 meses de 2011 embarcou 1,8 milhões de toneladas, aumento de 76%. O comércio com os Emirados Árabes Unidos ultrapassa $36 bilhões e o reino está surgindo como o principal porto de transbordo para as exportações chinesas que viajam para África e Europa. 

Os investimentos chineses em países árabes chegam a $15 bilhões e o relacionamento econômico se está diversificando, agora que a China estimula fortemente seus projetos de exportação. Em troca, o Golfo Persa é hoje o principal investidor estrangeiro da economia chinesa. 

Mas a China também está comprando muito petróleo do Irã. Cerca de 22% de todo o petróleo que a China importa é petróleo iraniano. O comércio com o Irã chegou a 30 bilhões em 2010 e deve chegar a $50 bilhões em 2015. A China dá conta de 10% das importações iranianas e é o principal parceiro comercial do Irã. 

O número-alvo que China e países árabes haviam definido para o comércio entre eles, para 2015, é $200 bilhões. Mas ao final de 2011 as trocas comerciais já chegavam aos $190 bilhões. 

Wen testemunhou na Arábia Saudita a assinatura de um contrato entre a China Petrochemical Corporation (Sinopec) e a saudita Aramco, para construírem, até 2014, uma refinaria que custará $8,5 bilhões, com capacidade para refinar 400 mil barris por dia, em Yanbu, no litoral do Mar Vermelho, ações distribuídas na proporção de 35,5%-62,5% respectivamente. E um memorando de entendimento foi assinado entre a gigante petroquímica saudita SABIC e a Sinopec para construir pólo petroquímico em Tianjin. 

Os dois países assinaram também acordo de cooperação nuclear, durante a visita de Wen. A Arábia Saudita tem planos para construir 16 reatores nucleares até 2030; e a China investe num plano ambicioso de converter-se em exportadora de usinas nucleares. 

Mas a China não está confiando só nos estreitos laços que a ligam ao Irã. Semana passada assinaram-se em Pequim várias declarações que reafirmam a importância do relacionamento Sino-Iraniano. Na prática, ignoraram-se todas as “exigências” dos EUA com vistas a diminuir as vendas de petróleo iraniano e todas as “sançõe”’ recentemente “impostas”. 

Washington retaliou contra Pequim na 5ª-feira, com sanções contra a chinesa Zhuhai Zhenrong Corp, acusada de estar vendendo petróleo refinado ao Irã. A China imediatamente manifestou “forte insatisfação e firme oposição” ao gesto dos americanos e declarou a decisão de manter “cooperação normal com o Irã em energia, economia e comércio”. 

Um fator de estabilidade 

Evidentemente, o movimento de Washington foi simbólico, feito às pressas e manifesta algum desespero – a empresa Zhuhai Zhenrong “punida” não tem propriedades nos EUA que possam ser “congeladas” – e visou, de fato, a marcar a chegada de Wen em Riad, chamando a atenção para os laços entre Pequim e Teerã, com quem Riad compete por influência na região. 

A questão é que os sauditas estariam supostamente trabalhando ‘a mando’ de Washington, para estreitar laços com a China e arrancar Pequim dos braços de Teerã. Até que Riad e Pequim apareceram com agenda própria, na qual se preservou bom espaço para relações dos dois lados com o Irã. 

A projetada refinaria Yanbu será construída na província leste da Arábia Saudita dominada pelos xiitas. A Arábia Saudita está muito preocupada com crescentes agitações nas províncias do leste (que teme que Teerã esteja estimulando) e, mesmo assim, a China está investindo num grande negócio conjunto exatamente ali. 

O que ninguém deixará de observar é que os sauditas convidaram os chineses para visitá-los, apesar de todos os fortes laços que unem chineses e iranianos. Obviamente, os sauditas já estão tratando os chineses como fator de estabilidade na região. 

Pode-se supor, inclusive, que a China venha a desempenhar algum papel na rivalidade saudita-iraniana, num cenário futuro. Seja como for, durante sua estadia na Arábia Saudita, Wen bateu sempre na estabilidade regional como fator imperativo. Soou como música aos ouvidos sauditas. 

Interessante, também, o que se leu num comentário sobre a viagem de Wen ao Golfo Persa, no China Daily, jornal oficial:

Ao contrário dos países ocidentais, que tendem a tentar impor seus próprios valores e seus sistemas políticos ao resto do mundo, a China interage com o mundo árabe sob os princípios da igualdade, respeito mútuo e busca de mútuas vantagens. 

Os EUA, na grande maioria das situações, tende a favor de Israel no conflito com os palestinos, o que enfurece muitos, no mundo árabe. Bem diferente disso, a China sempre apoiou as justas demandas dos palestinos nos fóruns mundiais, o que valeu aos chineses o respeito do mundo árabe. Ao longo da história da amizade sino-árabe, que remonta à antiguidade da ancestral Rota da Seda, a China jamais tentou impor qualquer agenda política exclusiva, à custa do Oriente Médio ou de qualquer outro povo.

A posição da China tem sido cada vez mais bem acolhida no mundo árabe e muitos estados árabes optaram por “Olhar Rumo Leste” em busca de cooperação e apoio na negociação das grandes questões regionais e mundiais. [1]

Um futuro “verde” 

Wen disse ao rei Abdullah que a China respeita o sistema político da Arábia Saudita, seu modo de desenvolvimento, sua cultura e suas tradições. Em resposta, o rei Abdullah propôs que se instalasse uma comissão de alto nível para acompanhar a cooperação entre os dois países, nos campos político, econômico, cultural e de segurança. O rei Abdullah disse, pensando cada palavra: “O objetivo da política exterior da Arábia Saudita é manter a paz e a estabilidade regional”. 

O rei acrescentou: “Arábia Saudita e China gozam de alto nível de confiança mútua e partilham noções similares sobre várias questões. Os sauditas desejam ampliar as consultas e a coordenação com a China”. 

Em resumo, o tour de Wen deu grande destaque à noção de que a China considera-se “parceira” no Golfo Persa. E deve-se prestar atenta atenção, também, ao fato de que a China não está em conflito com o Islã político no Oriente Médio. Em comentário no People’s Daily, semana passada, lia-se:

A Primavera Árabe mudou a cor principal da situação política no mundo árabe e formou um esplêndido cenário “verde” que preocupa – e assusta – o ocidente. Mas não há aí nenhum tipo de “atraso” [desenvolvimento regressivo] no curso da modernização e secularização dos árabes. O que aí se vê é uma retração da excessiva secularização de longo prazo e da secularização dos regimes agora derrubados; e o retorno de culturas tradicionais. Essa aspiração parece ser aspiração de vários povos. Evidentemente, o mundo deveria buscar mentalidade mais compreensiva e mais inclusiva, e dar boas vindas a todos os povos. Afinal de contas, é direito dos povos árabes elegerem os governos que desejem eleger.

A inclusão do Qatar no itinerário de Wen é ao mesmo tempo intrigante e reveladora de algumas das sutilezas do pensamento chinês. Sabe-se que o Qatar é fonte principal do gás natural liquefeito que a China consome. Mas o Qatar também teve papel central na mudança de regime na Líbia e, ao que se sabe, está dedicado a derrubar o governo do presidente Bashar al-Assad na Síria. 

A China opõe-se à intervenção ocidental na Líbia e na Síria. Mesmo assim, apesar de Rússia e China terem coordenado seus movimentos no Conselho de Segurança da ONU nos casos de Líbia e Síria, nem por isso Pequim vê-se impedida de buscar parceria energética com o Qatar. 

É atitude que contrasta fortemente com as relações entre Rússia e Qatar (hoje em frangalhos) – desde que o embaixador russo foi detido e revistado há algumas semanas no aeroporto de Doha, por agentes de segurança, em movimento que parece ter sido ato deliberado de provocação ou ofensa a Moscou. Em resumo, a China está avançando. Conta com posicionar-se do “lado certo da história” no Golfo Persa. 

O Qatar teria gostado de outro comentário publicado no People’s Daily no sábado, que zomba levemente da recente visita do porta-aviões russo “Admiral Kuznetsov” ao porto sírio de Tartus. 

O comentário deslocou a impressão predominante sobre o apoio russo à Síria e insistiu que, ao contrário, os russos nunca agem movidos por sentimentos de “amizade” com outros países; que os russos sempre agem exclusivamente em nome de seus interesses estratégicos; e que a atual “postura diplomática” dos russos em relação à Síria visaria essencialmente a “alertar todas as forças políticas, para que não agredissem interesses russos”. 

O mesmo comentário dizia que o “Admiral Kuznetsov” poderia ter ganho experiência local, no caso de a Rússia precisar evacuar da Síria cidadãos russos, ou caso tenha de “proteger patrimônio russo”. Em resumo, o comentário (publicado na véspera da viagem de Wen) parece ter sido plantado para sugerir que a coordenação entre russos e chineses no caso da Síria é coordenação limitada; e que os dois países, cada um a seu modo, continuam a trabalhar a favor de seus respectivos interesses.


Nota dos tradutores
[1] 15/1/2012, People’s Daily, Pequim - China: “Cimentando laços com o mundo árabe” (em português) e “Cementing ties with Arab World (em inglês). 


*MK Bhadrakumar foi diplomata de carreira do Serviço Exterior da Índia. Prestou serviços na União Soviética, Coreia do Sul, Sri Lanka, Alemanha, Afeganistão, Paquistão, Uzbequistão e Turquia. É especialista em questões do Afeganistão e Paquistão e escreve sobre temas de energia e segurança para várias publicações, dentre as quais The Hindu, Asia Online e Indian Punchline. É o filho mais velho de MK Kumaran (1915–1994), famoso escritor, jornalista, tradutor e militante de Kerala.

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