terça-feira, 10 de janeiro de 2012

Encontro no Cairo: “O Hamás e a Fraternidade Muçulmana”


Ramzy Baroud

9/1/2012, Ramzy Baroud, Counterpunch
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu


Ramzy Baroud é editor do PalestineChronicle.com. É autor de The Second Palestinian Intifada: A Chronicle of a People’s Struggle e de My Father Was a Freedom Fighter: Gaza’s Untold Story (Pluto Press, London).


Havia visível tom de triunfo nos comentários de Ismail Haniyeh, primeiro-ministro do governo eleito do Hamás em Gaza, ao ser recebido por Mohamed Badie, dirigente supremo da Fraternidade Muçulmana do Egito. Os dois anunciaram o que se deveria esperar deles, naquelas específicas circunstâncias. Haniyeh disse que a presença do Hamás, “ao lado da Fraternidade ameaça a entidade israelense”; Badie reafirmou o compromisso da Fraternidade com “as questões da liberdade, sobretudo da liberdade dos palestinos” (MENA e AP, 26/12). 

É muito significativo que, em sua primeira visita internacional como primeiro-ministro, Haniyeh tenha ido ao Cairo, à sede da Fraternidade Muçulmana no distrito de Moqattam. Ali anunciou sua mensagem – resistência contra a ocupação israelense, unidade nacional entre Hamás e o Fatah e contato com países muçulmanos – e, em seguida, prosseguiu viagem pela região. Desde 2006 o Hamás busca o apoio de outros governos em países de maioria muçulmana, mas pouco conseguiu. A solidariedade muçulmana era a base da política exterior do Hamás, orientada para reduzir a dependência política e financeira dos palestinos em relação aos EUA e outros governos ocidentais. Pouco conseguiu porque, como logo se viu, o alcance da influência financeira e política dos EUA é amplo demais, para que pudesse ser abalado por movimento relativamente pequeno, como o Hamás, e lutando sozinho. Mas como o próprio Haniyeh reiterou, os tempos estão mudando. 

No primeiro e no segundo turnos das eleições no Egito, o Partido Justiça e Liberdade, recentemente criado pela Fraternidade Muçulmana, obteve mais de 35% dos votos. 

Esse sucesso eleitoral não foi uma anomalia, nem foi resultado inesperado. O partido islâmico Al-Nahda, que formou o primeiro governo na Tunísia depois da revolução, obteve mais de 40% dos votos nas eleições de outubro. No Marrocos, o Partido Justiça e Desenvolvimento venceu as eleições em novembro; e já se vê bem clara uma inclinação dos eleitores na direção do partido islâmico também na Líbia [1]. Vêem marcas da influência política dos islamistas também em outros países da região. As mudanças pelas quais passa a paisagem política no mundo árabe têm levado muitos a conclusões polarizadas – e preocupantes. 

O comandante-em-chefe da frente interna do exército de Israel, major-general Eyal Eisenberg, foi dos primeiros a ver nesses desenvolvimentos a transformação da “primavera árabe” em “inverno islâmico radical”. Disse ele: “Temos de concluir que, num processo de longo prazo, a possibilidade de guerra total só faz aumentar” (Arutz Sheva, 5/9). Mas o que realmente preocupa Israel não é a radicalização das sociedades muçulmanas, mas o crescimento de uma política islâmica que, cada vez mais representa e manifesta discurso político claro, que fala aos eleitores. Esse crescimento preocupa Israel, porque é a via para que se construa alguma unidade no mundo árabe, com uma correspondente agenda política comum, que repõe a Palestina no centro do que, para muitos intelectuais muçulmanos, seria o “Despertar Islâmico”.

Digam o que disserem os cães de guerra israelenses, os EUA – principal sustentáculo de Israel – podem bem encontrar modos para coexistir no novo arranjo político. Outros governos ocidentais também “terão de adaptar-se a uma mudança no poder político, por mais que tenham tentado impedir que ela acontecesse”, como escreveram Roula Khalaf e Heba Saleh no Financial Times (28/12). Para Israel, essa transformação na política regional pode vir a revelar-se insuportável. Mas, evidentemente, o Partido Al-Nahda tunisiano não tira o sono de Israel: o que, sim, preocupa Israel é o Hamás. 

Essa a razão, pelo menos em parte, que levou Haniyeh a aventurar-se para fora de Gaza. Porque os EUA já se movimentam para tentar controlar, se não gerir completamente, o crescimento dos partidos islâmicos, e o Hamás trabalha para assegurar posição de destaque para a Palestina – definida pelo prisma do movimento islâmico – na nova paisagem política da região.

Poucos duvidam que a vitória política do Hamás em 2006 e a resistência que o partido opôs a todas as tentativas posteriores para isolá-lo e destruí-lo influenciarão os novos partidos islâmicos em vários países árabes. Não há dúvidas de que a capacidade de sobrevivência do Hamás é bem conhecida dos novos políticos muçulmanos, no Egito e em todo o mundo. Agora, com os novos frutos que os partidos islâmicos começam a colher da revolução egípcia, o Hamás começa a mover-se com cautela, mas com firmeza. O Hamás é “um movimento jihadi da Fraternidade Muçulmana, com rosto palestino” – disse Haniyeh no Cairo. 

Rápido exame das raízes da Fraternidade Muçulmana na Palestina mostra que Haniyeh não exagerou. Desde que a Sociedade da Fraternidade Muçulmana foi fundada em Ismailia, Egito, em 1928 por Hassan El-Banna e alguns outros, o grupo sempre encontrou, na causa dos palestinos, o grito de convocação e a palavra de ordem em torno dos quais reunir os muçulmanos de toda a região. O primeiro elo entre a Fraternidade e a Palestina formou-se em 1935, quando Abdel-Rahman El-Banna (irmão do fundador) visitou a Palestina e reuniu-se com o mufti de Jerusalém, Haj Amin Al-Husseini.

A Fraternidade tornou-se visível na revolta de 1936, ao levar a mensagem palestina, com tom islâmico, a todo o mundo árabe. A causa da Palestina rapidamente se converteu em principal missão e palavra-de-ordem da Fraternidade, e o próprio Hassan El-Banna chefiou o então recém fundado Comitê Geral Central de Ajuda à Palestina.

Mais que isso. Em abril de 1948, quando vários governos árabes demoravam para alistar-se na defesa da Palestina, a Fraternidade Muçulmana organizou três batalhões de voluntários. As estimativas do número de voluntários da Fraternidade Muçulmana na Palestina durante a guerra e a Nakba variam, mas o próprio Hassan El-Banna observou, em março de 1948, que cerca de 1.500 voluntários do movimento combatiam na Palestina.

O relacionamento entre a Fraternidade Muçulmana e a Palestina teve altos e baixos, mas os laços jamais se romperam completamente. Mesmo antes de o Hamás ser oficialmente criado em 1987, o movimento operou sob várias classificações, sempre diretamente conectado à Fraternidade Muçulmana do Egito.

O recente encontro no Cairo entre Haniyeh e Badie deve ser entendido nesse contexto histórico, uma reunião triunfante e, possivelmente, para declarada coordenação. É um meio para rejuvenescer mais uma vez a conexão com a Fraternidade na Palestina e para assegurar ao Hamás maior apoio político, depois de anos de isolamento e apesar do atual tumulto político na região.

Evidentemente, o Hamás enfrenta muitos desafios. Dentre eles, o principal é hoje a violenta escalada de Israel em Gaza e a correspondente pressão sempre forte dos EUA. Mesmo assim, espera-se que a visão e a mensagem política do Hamás continuarão a promover o equilíbrio entre a excepcionalidade da questão palestina e uma inserção forte no contexto árabe e muçulmano.

Ao aventurar-se para fora de Gaza, Haniyeh espera expandir o diâmetro do movimento islâmico palestino na direção do Egito e além do Egito, construindo o que o Hamás já declarou uma vez como seu objetivo: dar “profundidade estratégica” à causa palestina. Não conseguiram em 2006. 2012 é ano novo.




Nota dos tradutores
[1] Ver 9/1/2012, “2012: Eleições na Líbia”, Franklin Lamb.

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