sábado, 7 de janeiro de 2012

“O Hamás roubou a nossa guerra!”



Uri Avnery

7/1/2012, Uri Avnery, Gush Shalom [Bloco da Paz], Israel
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu


Nota introdutória: Os dois excertos de notícias inseridos previamente ao artigo são essenciais para entendimento e acompanhamento histórico sobre o que se passa entre os mais importantes partidos políticos de Gaza e Cisjordânia e como isso afeta o poder ocupante



Khaled Meshall, do Hamás: “A Primavera Árabe começou na Palestina, em 1987”
23/12/2011, Associated Press (excerto)
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

CAIRO – O Hamás volta a concentrar-se nas manifestações de massa contra Israel, ao estilo dos levantes da “primavera árabe”, disse à Associated Press o estrategista político do Hamás, Khaled Mashaal, na última 5ª-feira.

Mashaal estava no Cairo, para reuniões com Mahmoud Abbas, do partido Fatah. Os dois lados unem-se agora, numa Organização para a Libertação da Palestina (OLP) reformada, para organizar as próximas eleições em 2012, em Gaza e na Cisjordânia.

“Levantes populares têm o poder de tsunamis” – disse Mashaal, falando das recentes ondas de protestos populares no mundo árabe.

“Há agora terreno comum sobre o qual a resistência popular, que é a voz e o poder do povo, pode trabalhar. Os palestinos fomos os primeiros que nos levantamos, nas ruas, contra governo opressor, quando nos levantamos contra Israel, em 1987” – disse Mashall. “Em 1987, os jovens palestinos enfrentaram, com pedradas, os soldados de Israel pesadamente armados. Adiante, o Hamás foi eleito, em eleições livres e limpas, na Cisjordânia e em Gaza.

Grupos palestinos avançam na reconciliação

25/12/2011, Osamah Radi, Omer Othmani, Xinhuanet, Pequim (excerto)
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

GAZA, Dec. 24 (Xinhua) – Os palestinos deram mais um passo na direção de uma unificação histórica, com a reforma da Organização para a Libertação da Palestina (OLP), como representante dos palestinos, na primeira grande reforma que está sendo pactuada entre Hamas e Fatah, desde a fundação, em 1964.

Com a reforma da OLP, o Hamas e a Jihad palestina devem unir-se à OLP, pela primeira vez. Os dois movimentos participarão das eleições para o Conselho Nacional Palestino [ing. Palestinian National Council (PNC)], o parlamento da OLP no exílio.

O anúncio foi feito em reunião na 5ª-feira, preparatória para a cúpula a ser realizada em fevereiro, da qual deve sair um governo unitário de transição, formado por membros do Fatah e do Hamas. (...)

Segundo o acordo que está sendo construído entre Hamas e Fatah, o novo PNC será eleito no próximo mês de maio, quando também devem serão eleitos presidente e deputados em data ainda não decidida. (...)

Yousef Rezqah, alto dirigente do Hamás, disse que “o Hamás esperará a eleição de um novo PNC, para unir-se formalmente à OLP. Depois das eleições para o Conselho Nacional Palestino, o Hamás analisará os programas políticos da OLP e seus compromissos. Só as eleições podem decidir o que será feito, e se os acordos que estão sendo construídos agora darão frutos ou não” – acrescentou o dirigente do Hamás.

Finalmente o artigo do Uri!

E enquanto isso, em Israel...

O vilão é o Hamás!
Não há limites na vilania do Hamás!
Essa semana, o Hamás fez algo realmente imperdoável!
 O Hamás roubou a guerra de Bibi Netanyahu!
Bibi ficou sem guerra!

Já há algumas semanas, o quase novo comandante do Exército de Israel, vem anunciando, praticamente em todas as oportunidades, que uma nova guerra contra a Faixa de Gaza “é inevitável”. Vários comandantes de tropas em torno da Faixa, repetiram sem parar esse “prognóstico”, e também seus auxiliares de campo, chamados “especialistas em questões militares”, todos dizendo a mesma coisa.

Um deles teve até uma palavra de consolo: é verdade que os foguetes do Hamás já podem atingir Telavive, mas... não se preocupem, que não será muito terrível. Será guerra curta, coisa de dois, três dias. Um dos generais israelenses acrescentou que será guerra muito mais “dura e dolorosa” (para os árabes) que [a Operação] “Chumbo Derretido 1”, quer dizer, não durará três semanas, como aquela. Bastará que os israelenses permaneçam metidos nos abrigos (os que têm abrigos), só por alguns dias.

E por que a tal guerra seria inevitável? Por causa do terrorismo, estúpido! O Hamás é organização terrorista, não é?

E foi quando o líder supremo do Hamás Khaled Mash’al apareceu e disse que o Hamás passará a organizar levantes populares. Doravante, o Hamás se dedicará a manifestações não violentas, no espírito da Primavera Árabe.

E, se o Hamás abjura o terrorismo... desaparecem todos os pretextos para atacar Gaza.

Ora! E quem precisa de pretextos? O exército de Israel nunca será derrotado por estrategistas como Mash’al e seu bando. Se o exército de Israel quer guerra, o exército de Israel sempre arranja alguma guerra. Foi o que se viu em 1982, quando Ariel Sharon atacou o Líbano, num momento em que, há 11 meses, não acontecia nenhum tipo de problema da fronteira libanesa. (Depois da guerra, criou-se em Israel o mito de que teria havido forte tiroteio na véspera. Hoje, quase todos os israelenses “lembram-se” do tiroteio que nunca houve – exemplo espantoso do poder de sugestão.

E POR QUE o comandante do exército de Israel tanto quer atacar alguém?

Os cínicos diriam que todos os comandantes de exército recém nomeados precisam de guerra nova, para chamarem de sua. Mas não somos cínicos.

Dia sim, dia não, um solitário rojão é lançado da Faixa de Gaza, na direção de Israel. Raramente cai em local diferente de campos não habitados. Já há meses ninguém, em Israel, é ferido por aqueles rojões, produzidos em casa.

A sequência regular é sempre a mesma: o exército israelense imediatamente realiza uma “liquidação predefinida” [orig.“targeted liquidation”] de militantes na Faixa de Gaza. O motivo é, sempre, que aqueles predefinidos “terroristas” imediatamente liquidados tentaram atacar cidadãos de Israel. E como o exército de Israel adivinha os planos deles? Ah! O exército de Israel sabe ler pensamentos.

Imediatamente depois de aqueles mortos serem mortos, o grupo militante no qual militava cada morto entende que seja seu dever vingar seus mortos e cada grupo lança um rojão ou morteiro, às vezes dois, às vezes três. O que “não pode ser tolerado pelo exército de Israel”... e assim vai.

Depois de cada episódio desse tipo, recomeçam em Israel, as ameaças de guerra. Como dizem deputados e senadores dos EUA, nas palestras que fazem no Comitê Norte-Americano Israelense de Relações Públicas, o AIPAC: “Nenhum país pode admitir que seus cidadãos fiquem expostos a rojões!”.

Evidentemente, claro, a Operação Chumbo Derretido não foi motivada pelos rojões palestinos: os motivos foram outros e mais sérios.

O Hamás começa a ser aceito e começa a integrar-se à comunidade internacional. O primeiro-ministro da Cisjordânia, governada pelo Hamás eleito, Isma’il Haniyeh, está viajando pelo mundo árabe e muçulmano, apesar de Israel tê-lo mantido por muito tempo como que cercado, e calado, em Gaza – uma espécie de cerco da Faixa de Gaza. 

Mas hoje o Hamás já entra e sai do Egito, porque a Fraternidade Muçulmana – organização-mãe, da qual nasceu o Hamás – já é praticamente o governo, no Egito.

Muito pior: o Hamás aproxima-se perigosamente de unir-se à Organização para a Libertação da Palestina, com o que passará a integrar o governo palestino. Não pode ser! Israel tem de tomar alguma providência. Por exemplo... Atacar Gaza! Obrigar o Hamás a pegar em armas, outra vez! Obrigar o Hamás a voltar a ser organização extremista. 

Não satisfeito com ter privado Israel de sua guerra – “o Hamás roubou a nossa guerra!” – Khaled Mash’al planeja outras ações sinistras. 

Ao aproximar-se da Organização para a Libertação da Palestina, Mash’al aproxima o Hamás, também, dos Acordos de Oslo e de todos os demais arranjos já feitos entre Israel e a OLP. Mash’al já anunciou que o Hamás aceita um estado palestino nas fronteiras de 1967. Já fez saber que, esse ano, o Hamás não contestará a legitimidade da presidência palestina, o que, na prática, implica que o candidato do partido Fatah – seja quem for – será eleito sem qualquer oposição e, claro, terá legitimidade para negociar com Israel.

Tudo isso, na prática, encurrala o atual governo de Israel. E Mash’al tem alguma experiência no que tenha a ver com complicar muito a vida de Israel. 

Em 1997, o (primeiro) governo de Netanyahu resolveu livrar-se dele para sempre, em Amã. Mandou para lá uma equipe de agentes do Mossad, com a missão de assassinar Mash’al em plena rua, com um jato de veneno que não deixaria vestígios, lançado de uma lata de spray, diretamente dentro do ouvido de Mash’al. 

Mas, em vez de fazer a coisa certa, e morrer silenciosamente de causa jamais identificada, como Yasser Arafat, Mash’al mandou seus guarda-costas perseguirem os espiões do Mossad, e pegá-los vivos.

Tudo isso aconteceu na Jordânia. O rei Hussein, aliado de Israel há anos, foi imediatamente informado de tudo. E ficou furioso, por Israel ter infiltrado seus espiões, em missão de assassinato, em território jordaniano. Disse a Netanyahu que ele escolhesse: ou os espiões do Mossad seriam julgados na Jordânia onde muito provavelmente seriam condenados e enforcados, ou o Mossad que enviasse, imediatamente, o antídoto ao tal veneno, para salvar a vida de Mash’al. Netanyahu rendeu-se. E aí está Khaled Mash’al, hoje, vivo e forte[1].

Outro curioso resultado dessa malfadada aventura: o rei Hussein também exigiu de Netanyahu que o fundador do Hamás e líder supremo do movimento, Sheik Ahmad Yassin, paraplégico, que estava preso em Israel, fosse imediatamente libertado. Netanyahu também obedeceu, Yassin foi libertado (e assassinado por Israel, sete anos depois. Pouco depois, o sucessor de Yassin, Abd al-Aziz Rantissi, também foi assassinado. Khaled Mash’al, embora muito jovem, foi então escolhido para sucedê-lo, no comando político e militar do Hamás.

E Mash’al, em vez de manifestar gratidão imorredoura a Israel, aí está, a desfiar abertamente o exército israelense! Fim das ações violentas, abertura indireta para negociações de paz, até, talvez, para a solução dos dois estados! 

UMA PERGUNTA: Por que o comandante do exército de Israel tanto insiste em ter sua guerrinha em Gaza, se pode ter a guerra das guerras, contra o Irã? Não pequena operação de morticínio, mas grande guerra, guerra mesmo!

Ora, porque sabe que não conseguirá a guerra contra o Irã.

Há algum tempo, fiz algo que jornalistas inexperientes sempre fazem: apostei que Israel não atacaria o Irã. (Apostei também, justo acrescentar, que nem os EUA atacariam o Irã.)

Políticos e jornalistas experientes não apostam nem fazem esse tipo de previsão, sem deixar aberta um túnel de fuga. Sempre acrescentam um “a menos que...”. Se a aposta começa a azedar e a previsão periclita, pode-se escapar por ali.

Passei por coisa semelhante – há uns 60 anos – mas não escapei por túnel algum. Eu disse “Não haverá guerra”. Agora, o general Gantz diz a mesma coisa, com mais palavras: Israel não atacará o grande Irã; só contra a pequena, pobre, infeliz Faixa de Gaza.

Por quê? Responde-se com uma palavra: Ormuz.

Não o antigo deus persa Hormuzd, mas o pequeno estreito, entrada e saída do Golfo Persa, pelo qual passa 20% do petróleo do mundo (e 35% do petróleo transportado por oleodutos submarinos). A ideia é que nenhum governante mentalmente são (nem os apenas levemente alucinados) jamais poriam em jogo o trânsito pelo Estreito de Ormuz, cujo fechamento causará consequências catastróficas, apocalípticas.

O Irã, que não confia que todos os governos do mundo leiam essa coluna, tratou logo de explicar, com a máxima clareza possível. Fizeram manobras militares ostensivas próximas ao Estreito de Ormuz. É claro que o Irã pode, se precisar, fechar tudo, por ali.

Os EUA responderam com a arrogância de praxe, com ameaças de retaliação. A invencível Armada dos EUA logo reabrirá o Estreito, se preciso for.

Mas... Como? Qualquer super porta-aviões multibilionário pode ser facilmente inutilizado por uma bateria de mísseis terra-ar baratinhos, e, até, por barcos pequenos armados com mísseis. Imaginemos que o Irã faça o que ameaçou fazer. Os EUA mandarão para lá todo o poder de fogo de sua gigantesca Força Aérea, mais toda a invencível Armada dos EUA. Afundarão os barcos iranianos, bombardearão todas as instalações do exército iraniano. E nem assim impedirão que os mísseis do Irã continuem a chover sobre o Estreito, tornando impensável o trânsito de superpetroleiros por ali.

E depois? Restará a alternativa dos “coturnos em terra”. Os EUA terão de desembarcar no litoral e ocupar todo o território do qual os mísseis continuarão a poder ser lançados. Seria gigantesca operação de guerra. Os iranianos resistirão ferozmente, se se pensa no que houve em oito anos da guerra Iraque-Irã. E ali perto estão a Arábia Saudita e os outros estados do Golfo, que também seriam atingidos.

Teria de ser operação muito maior que a invasão do Iraque ou do Afeganistão, pelos EUA. Maior, até, que a invasão do Vietnã.

Os EUA, falidos, teriam como fazer tudo isso? Economicamente, politicamente? O exército dos EUA está hoje em condições morais, para fazer tudo isso? Fechar o Estreito de Ormuz é a solução “bomba-atômica”, a arma derradeira. O Irã não a usará contra sanções, por severas que sejam, como ameaçaram fazer. Mas a usarão, sim, se sofrerem ataque militar direto.

Se Israel atacar sozinha – “a ideia mais estúpida que jamais ouvi”, como disse o ex-comandante do Mossad – nada muda. O Irã interpretará o ataque israelense como ataque norte-americano, e fechará o Estreito. Por isso, precisamente, o governo Obama já mandou entregar em mãos de Netanyahu e Ehud Barak ordem expressa para que não empreendam nenhum tipo de ação militar contra o Irã.

O exército israelense, assim, ficou sem guerra! Nada de guerra ao Irã. Resta-lhe, como possibilidade de guerra, atacar Gaza. E, bem nessa hora, aparece o “terrorista” Mash’al, do “terrorista” Hamás, querendo estragar também a guerra contra Gaza!


Nota dos tradutores
[1] Essa história, narrada em detalhes, e leitura absolutamente fascinante, riquíssima de informação jornalística útil, é tema do livro Kill Khalid, do jornalista australiano Paul McGeough (Londres: The New Press, 2008), sem tradução para o português.

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