Adam Hanieh |
Adam Hanieh (entrevistado por Ed Lewis),
Socialist Register, New Left
Project
Traduzido pelo
pessoal da Vila Vudu
Para o senhor, os
seis estados do Conselho de Cooperação do Golfo (CCG) – Arábia Saudita, Kuwait,
Emirados Árabes Unidos, Qatar, Bahrain e Omã – são o centro político e econômico
do Oriente Médio, mas não só pelas reservas de petróleo. O que, para o senhor,
explica que os estados do Golfo tenham assumido essa posição de
centralidade?
Há aí vários
fatores. Primeiro, claro, o petróleo. Os estados do CCG estão entre os maiores
fornecedores de gás e petróleo do mundo. Os números variam, mas pode-se dizer,
repetindo o número mais citado, que 40-45% das reservas comprovadas de petróleo
do mundo estão nos países do CCG, e 20% de todo o gás do mundo. Atualmente, se
extrai ali cerca de 20% do petróleo extraído no mundo. Dada a importância dos
combustíveis fósseis – como fonte de energia e matéria prima para a indústria
petroquímica –, é enorme a importância dessa região para os padrões de
acumulação da economia global.
Oriente Médio (mapa político) |
Outro fator,
relacionado ao primeiro, são os altos níveis de capital excedente que acorreram
para aquela região, como resultado das vendas de cru, gás e petroquímicos. Esses
“petrodólares” foram fator-chave no desenvolvimento da arquitetura financeira
global. Não é novidade. Durante os anos 1970s os fluxos financeiros que saíam do
Golfo foram parte essencial do desenvolvimento dos mercados do eurodólar
(depósitos em dólares norte-americanos em bancos fora dos EUA) e também como
lastro para os bônus do Tesouro dos EUA (sobre isso, ver o trabalho de David
Spiro). Assim, os petrodólares foram fator chave para empurrar adiante a
hegemonia do dólar norte-americano e dar sustentação aos desequilíbrios
financeiros globais que caracterizaram o mercado mundial ao longo das últimas
décadas. A rápida financeirização da economia global, portanto, dependeu, em
parte, da integração dos países do CCG no mercado mundial e nos circuitos
financeiros.
Isso implica que o
modo como o mercado mundial desenvolveu-se ao longo das últimas poucas décadas,
com complexas cadeias de produção que iam da manufatura de bens em áreas de
baixos salários, até a venda de commodities nos países capitalistas
avançados, depende fortemente da produção de commodity do Golfo, tanto
quanto de excedentes financeiros. Nesse sentido, as classes e o Estado na região
do CCG constituíram paralelamente (e a formação de ambos é estreitamente ligada)
ao desenvolvimento mais amplo do mercado capitalista mundial.
Por tudo isso, os
países do Conselho de Cooperação do Golfo são altamente significativos em escala
global. Mas, propriamente no Oriente Médio e no Norte da África, houve algumas
transformações fundamentais ao longo das décadas recentes; e essas
transformações dão caráter muito particular ao papel que o Golfo desempenha
dentro da região.
O traço mais
marcante das duas últimas décadas foi a generalização de políticas neoliberais
em praticamente todos os estados da região. Aconteceu cooperação entre o Banco
Mundial e o Fundo Monetário Internacional, grupos regionais como o Conselho
Empresarial Árabe do Fórum Econômico Mundial e o Conselho da Agenda Regional
sobre Oriente Médio e Norte da África, além de outras instituições bilaterais,
como a USAID. Políticas chaves dentre essas políticas neoliberais foram: a
liberalização das leis de propriedade, sobretudo nos setores imobiliário,
financeiro e de telecomunicações, o que abriu caminhos para fortes fluxos de
investimento externo; a privatização de indústrias estatais; reformas nos
regimes tributários; fim dos subsídios para alimentos e energia; e o relaxamento
de barreiras comerciais.
Região MENA (em azul) |
Essas políticas
tiveram acentuado impacto em escala nacional, o que levou ao empobrecimento das
populações, por um lado; e, por outro lado, levou à concentração da riqueza. Em
muitas economias árabes houve forte crescimento do setor ‘informal’, e migração
de centenas de milhares de pessoas para áreas urbanas (ou através de
fronteiras), à medida que se foi tornando mais difícil extrair da terra a
sobrevivência. A estreita relação que liga a região MENA [orig. Middle
East/North of Africa] ao mercado mundial – caracterizada pelo
desenvolvimento orientado para as exportações, migrações e oscilação nos preços
dos alimentos e da energia – expôs muitos países aos ventos da economia global.
Todos esses fatores são relevantes para que se possa entender como a região foi
atingida pela crise econômica de 2008, e o possível impacto, nessa parte do
mundo, do atual torvelinho que sacode a economia global.
Mas o fator mais
importante, é que essas medidas neoliberais não apenas reconfiguraram o poder de
classe em escala nacional. Elas reconfiguraram o poder de classe também em
escala regional. No Oriente Médio não se pode entender o “estado-nação” como uma
economia política limitada internamente, sem considerar os laços que unem todas
as economias ‘nacionais’ numa escala regional mais ampla. Há vários aspectos
importantes a destacar aqui, mas o fundamental é a rápida internacionalização do
capital baseado nos países do CCG, sobretudo depois do aumento dos excedentes
financeiros que começou em 1999 e chegou ao pico em 2008. Claro que o núcleo do
capital excedente do CCG continua a ser investido fora da região. Mas, nas duas
últimas décadas, muitos daqueles fluxos foram dirigidos para outros estados do
Oriente Médio. Tomado na escala regional – o CCG foi um dos principais
beneficiários da cerca de uma década de privatização, desregulação e abertura
dos mercados.
Alguns números
ajudam a ilustrar. No período 2008-2010, segundo números do banco de dados
Anima, da União Europeia, que rastreia investimentos na região, o Conselho de
Cooperação do Golfo, como bloco, foi a principal fonte de investimento externo
direto [orig. FDI] para Egito, Jordânia, Líbano, Líbia, Palestina,
Tunísia, e a segunda para Marrocos e Síria. Em 2010, o capital baseado em
países do CCG foi responsável por todos os grandes projetos alimentados com
investimento externo direto anunciados na Argélia, Líbano, Líbia e Tunísia. São
números impressionantes. E não se incluem aí os investimentos nos portfólios de
ações na região ou outras formas de “empréstimos para o desenvolvimento” que
fluem do Golfo para o resto do Oriente Médio. Deve-se observar também que, ao
contrário do que pretendem muitos, esses fluxos não são necessariamente
dirigidos por fundos soberanos ou empresas estatais dos países do CCG. Grande
proporção daqueles fluxos vem de capitais privados nos países do CCG dirigidos a
grandes projetos imobiliários, instituições financeiras,
shopping-centers, telecomunicações e outros
investimentos.
Os processos que
comentei até aqui foram acentuados pela diferenciação regional cada vez mais
marcada, que começou nos primeiros momentos da crise econômica de 2008. No
próprio CCG, embora tenha havido alguns pequenos desastres financeiros causados
por alto endividamento em alguns grandes conglomerados, o principal efeito da
crise foi reforçar a posição das classes dominantes do Golfo. A natureza da
formação de classe nos países do CCG (mais sobre isso, adiante) deslocou a crise
na direção dos trabalhadores migrantes; e isso, somado ao apoio estatal que
receberam as grandes entidades financeiras e industriais, significou que as
elites do Golfo mantiveram-se fortemente protegidas contra os piores impactos
dos tumultos econômicos.
A experiência da
crise, diferente em diferentes partes da região, indica não só o relativo
fortalecimento dos maiores conglomerados e das famílias reinantes do Golfo, mas,
também, o alargamento da fissura que separa os estados do CCG e outros estados
no Oriente Médio. Isso indica que o neoliberalismo, observado na escala
regional, teve dois efeitos: enriqueceu as classes capitalistas nacionais e,
simultaneamente, consolidou a posição do CCG, como bloco, dentro da
região.
De que modo o
relacionamento entre o CCG e as potências externas, sobretudo os EUA, mas também
outras, modela hoje a política interior, entre os estados do Oriente
Médio?
Como já dissemos,
a importância do CCG para o mercado mundial foi aumentada com a maior
internacionalização e a financeirização do capital no plano global. Indicação
disso é a deriva rumo ao leste do petróleo do Golfo e dos petroquímicos
exportados, que desempenhou papel importante no processo de conter a produção
chinesa. De 2000 a 2006, o consumo de energia no
mundo aumentou cerca de 20%, com, só a China, responsável por 45% do aumento da
energia consumida no mundo nesse período Em 2007, cerca de 50% das importações
chinesas de petróleo cru saíam do Oriente Médio. Hoje, metade de todo o petróleo
que a Arábia Saudita extrai vai para a China, mais do que os sauditas exportam
para os EUA; e em 2025 as importações chinesas de petróleo do Golfo devem
equivaler a três vezes as importações dos EUA dessa região. O fluxo de
excedentes financeiros do CCG para os mercados dos países de capitalismo
avançado acompanha essas exportações de hidrocarbonetos.
No contexto de
relativo declínio do poder dos EUA, e com a emergência de um mundo cada vez mais
multiplolar, isso significa que o ‘bloco’ CCG (e, por extensão, o Oriente Médio)
é zona chave para decidir que rumo tomarão as rivalidades entre os principais
países capitalistas em disputa. Por isso, precisamente, a estratégica de longo
prazo dos EUA põe em lugar central o estreito relacionamento militar e político
com os estados do CCG. Esse relacionamento foi forjado no pós-II Guerra Mundial,
mas continuou a aprofundar-se durante os anos 1980s (de fato, a própria formação
do CCG em 1981 foi em grande parte uma consolidação dos estados do Golfo sob o
guarda-chuva militar dos EUA, no contexto da guerra Irã-Iraque). O domínio na
região foi fator estratégico chave nas invasões do Iraque e do Afeganistão
comandadas pelos EUA e também é fator estratégico importante nas atuais disputas
pelo controle da Ásia Central.
A crescente
beligerância contra o Irã também tem de ser analisada sob essa luz. O anúncio,
pelos EUA, há poucas semanas, de que reposicionarão suas forças militares
localizadas no Iraque, para estados do CCG, é mais uma confirmação. Os estados
do CCG já hospedam, hoje, a 5ª-Frota dos EUA (no Bahrain) e o quartel-general
avançado do Comando Central dos EUA (Centcom) (no Qatar) – responsáveis por todo
o engajamento militar, pelo planejamento e por operações em 27 países, do Chifre
da África à Ásia Central. As monarquias do CCG dependem absolutamente da
proteção militar que os EUA lhes dão, e dependem também de firme apoio político
do ocidente (como mostra a reação contra o levante popular no Bahrain).
Evidentemente, há rivalidades e pontos de tensão nas relações entre os EUA e os
países do DDG (como há também entre os próprios estados do ‘bloco’ CCG), mas o
ponto central é que esse relacionamento é fator decisivo para o domínio dos EUA
em escala global.
Esse é o quadro
geral para que se possa entender como os EUA e outras potências estrangeiras
veem o Oriente Médio como um todo. Outras explicações – como os argumentos ocos
e, na essência, liberais, sobre um “lobby israelense” que se supõe que
‘mande’ na construção da política externa dos EUA – são falsas explicações que
nada explicam e, em minha opinião, devem ser descartadas.
Mas também as
rivalidades entre estados que competem no mercado do mundo capitalista também de
ser vistas à luz, também, de interesses que aqueles estados compartilham. A
formação de classe nos CCG é profundamente atravessada pelo desenvolvimento do
capitalismo como processo total, e o maior medo de qualquer dos países que hoje
lideram o mercado mundial – mercado que, vale lembrar, inclui a China e a Rússia
– é que haja alguma mudança significativa naquela estrutura de
classe
Em outras
palavras, uma preocupação da qual partilham todos os grandes estados
capitalistas é assegurar que os estados que constituem o CCG permaneçam
completamente alinhados com os interesses do capitalismo mundial. As políticas
das grandes potências no Oriente Médio, por isso, têm um caráter duplo: por um
lado, todas querem ampliar seus interesses específicos competitivos; e, por
outro lado, todas trabalham de modo cooperativo para evitar qualquer tipo de
‘desafio’ popular que sugira que a riqueza regional venha a ser usada para
beneficiar mais as massas pobres, que a microscópica camada das elites parasitas
ricas. Esse é o significado profundo dos levantes que ocorreram ao longo de
2011.
Exceto o Bahrain,
os estados do Golfo são conhecidos por apresentar baixo nível de insatisfação
política, o que dá aos regimes autoritários assento firme no poder, apesar das
profundas desigualdades materiais. Por quê? Será mais o resultado de fatores
domésticos, ou é resultado modelado significativamente pelo tipo de
relacionamento que há entre o Golfo e a ordem global?
Há uma história
oculta e em boa parte esquecida, das importantes lutas sociais no Golfo. Dos
anos 1950s aos anos 1970s, houve vários bem organizados movimentos de militantes
árabes nacionalistas e de grupos de esquerda na região. Vê-se a importância
desses movimentos, para mencionar apenas alguns, nas greves e manifestações de
protesto nos campos de petróleo sauditas, na guerrilha na região de Dhofar em
Omã, e no amplo apoio, no Kuwait e em toda a região, à luta dos palestinos.
Sempre houve forte solidariedade nas populações do Golfo à causa palestina e a
causas árabes nacionalistas, quase sempre associadas à presença de trabalhadores
árabes palestinos, egípcios, sírios, do Iêmen etc.
Esses movimentos
sempre foram reprimidos pelas monarquias no poder (apoiadas fortemente por
assessores britânicos e norte-americanos). Mas, além da repressão, também se viu
uma transformação na natureza do mercado de trabalho na região, que se tornou
bem evidente ao longo dos anos 1980s e 1990s. Durante esse tempo, sobretudo
depois das deportações feitas nos anos da Guerra do Golfo de 1990-1991, houve
uma deriva, de operários árabes, que se converteram em trabalhadores migrantes
temporários no sul e no leste da Ásia. Esses trabalhadores deslocados assinavam
contratos de trabalho de curto prazo, quase sempre eram alojados em campos
distanciados de qualquer contato com a população local e submetidos a restrições
de todos os direitos trabalhistas e políticos. Em muitos casos, sobretudo nos
setores nos quais os salários são mais baixos, esses trabalhadores migrantes
sequer podiam levar a família.
Hoje, os estados
do Golfo dependem muito fortemente desse tipo de trabalho migrante temporário
(cerca de 70% dos trabalhadores vindos do sul e leste da Ásia, e 30%, do Oriente
Médio (proporção que é praticamente o inverso do que se via em meados dos anos
1970s). Esses fluxos de trabalho diferem dos fluxos de migração permanente que
se veem em outras partes do mundo, porque são migrações de curto prazo, não se
discutem nesse caso qualquer tipo de direitos de cidadania, e tudo se faz com
vistas a conseguir mandar a maior quantidade possível de dinheiro para o país de
origem dos trabalhadores. Em todos os estados do CCG, os trabalhadores migrantes
temporários representam mais da metade de toda a força de trabalho; e em quatro
deles (Kuwait, Qatar, Omã e Emirados Árabes Unidos) os trabalhadores migrantes
temporários ultrapassam os 80% da força de trabalho local. Fluxos de trabalho
temporário que dependem quase completamente da estrutura do trabalho que se vê
ali, associam firmemente as regiões exportadoras de trabalho aos padrões de
acumulação típicos do CCG.
A relativa
estabilidade e a ‘adaptabilidade’ do capitalismo no Golfo e de suas elites
governantes estão intimamente conectadas àquela estrutura de classes. Altos
níveis de exploração são possíveis, porque o visto de residente para o
trabalhador é diretamente associado a manter-se empregado. Se desempregado, o
trabalhador torna-se ‘ilegal’ e tem de deixar o país. Em outras palavras, uma
vez que o direito de permanecer no país é condicionado ao emprego, o empregador
tem imenso poder desigual sobre o trabalhador. Além disso, a reprodução
generacional de classe é muito fragmentada, porque os trabalhadores quase sempre
voltam para casa ao final dos contratos – laços de memória ou de solidariedade
de classe são muito frágeis, e a ação coletiva é quase impossível, ou muito
difícil. E há também restrições legais que impedem ações de classe: os
sindicatos são absolutamente proibidos na Arábia Saudita e nos Emirados Árabes
Unidos; e muito limitados nos demais estados.
Contrariamente ao
quadro geralmente aceito dessas sociedades, a pobreza relativa não existe entre
os cidadãos de países como a Arábia Saudita (e nos demais países do Golfo). Mas
a ausência de uma classe trabalhadora de cidadãos locais implica que as lutas
políticas não têm efetiva base social. O conflito político nesses estados
(exceto no Bahrain, que discutirei adiante) assim origina-se em geral da
discórdia dentro da elite (como entre diferentes ramos da família real, e os
conflitos entre intelectuais religiosos e a monarquia) ou entre movimentos
islamistas – não de alguma ampla luta de classes. Essa relativa calma política
pode ser comparada à situação em dois países vizinhos, também ricos em petróleo,
o Iraque e o Irã, onde a classe trabalhadora tem longa história de mobilização e
de persistente oposição às políticas ocidentais no Golfo e, em geral, no Oriente
Médio.
Podem-se ver as
implicações disso na reação à crise econômica de 2008. Imediatamente depois da
eclosão da crise, os estados do Golfo praticamente não conheceram protestos ou
fúria populares. É indiscutível verdade que alguns projetos muito propagandeados
foram suspensos, que o consumo despencou e que vários negócios cerraram as
portas – mas a população de cidadãos passou pela crise sem maiores danos. O que
se viu foi uma diminuição na contratação de trabalhadores migrantes e – por
exemplo em Dubai – milhares deles foram mandados para casa. Isso implica dizer
que a real dor da crise só foi sentida nos números sempre crescentes de
desempregados nas regiões em volta do Golfo.
O Bahrain, porém,
é importante exceção parcial a esse padrão. O Bahrain tem menos riqueza auferida
do petróleo que outros estados do CCG (só 0,03% das reservas comprovadas do
CCG), e as peculiaridades de seu desenvolvimento histórico deixam ver uma
considerável divisão sectária entre uma elite governante sunita (dominada pela
monarquia Al Khalifa) e a população majoritariamente xiita. Apesar disso, a
estrutura social no Bahrain não é efeito de algum conflito religioso persistente
entre xiitas e sunitas (como em geral se lê na imprensa, e é a versão divulgada
pela monarquia bahraini). De fato, a discriminação contra a maioria xiita que
vive no país não pode ser compreendida se não se consideram as vias da formação
das classes no país. Enquanto o país continua a depender pesadamente do trabalho
migrante – em 2005, cerca de 58% da população do Bahrain eram trabalhadores
migrantes não cidadãos – a maioria da população xiita permanece desempregada, é
extremamente pobre e enfrenta dura discriminação sistêmica.
Em anos recentes,
viu-se no Bahrain uma longa e mais avançada experiência de neoliberalismo (se
comparada à dos outros estados do CCG). Isso acentuou muito o desenvolvimento
capitalista desigual – aumentando as distâncias entre os cidadãos mais pobres
(concentradamente xiitas) e as elites do setor privado e do estado, que se
beneficiaram da posição do Bahrain, como “a economia mais livre do Oriente
Médio” (segundo o índice de liberdade econômica da Heritage Foundation 2010). Em
2004, o Bahrain Centre for Human Rights estimava que mais da metade dos cidadãos
bahraini viviam na pobreza e, simultaneamente, os 5.200 bahrainis mais ricos
acumulavam, somada, riqueza de mais de $20 bilhões. O caráter mais proletarizado
da população de cidadãos bahrainis, que se sobrepõe às vítimas da discriminação
sectária, e tem sido reforçado pelo profundo impacto do neoliberalismo, explica
que movimentos de esquerda e de caráter trabalhista continuem a ser
significativo no país. Em períodos de poucos anos, e repetidamente, acontecer
grandes greves e levantes de trabalhadores no país – e a intifada de 2011 é o exemplo
mais recente.
Mas a importância
do Bahrain estende-se além do próprio país. Há considerável população xiita na
província leste da Arábia Saudita, região rica em petróleo – bem próxima da
fronteira do Bahrain. Nessa região houve protestos no início de 2011, e há
grande temor entre os estados do Golfo (e entre as potências ocidentais que os
apóiam) de que um movimento bem sucedido no Bahrain deflagraria lutas
semelhantes na Arábia Saudita e em outros pontos. Isso explica a furiosa
repressão desfechada contra o povo bahraini ao longo de 2011, que incluiu envio
de tropas sauditas, dos Emirados Árabes Unidos e do Qatar ao país, para sufocar
o levante. Mas não há dúvidas de que a história dos levantes no Bahrain ainda
não terminou.
Que importância
tem a batalha pelos preços do petróleo? Que interesses estão em jogo, e como
isso modela as políticas dos estados da região e as políticas externas das
potências estrangeiras (dos EUA, por exemplo)?
Os fatores que
determinam o preço do petróleo têm a ver com a oferta de diferentes tipos de
petróleo e de outras fontes de energia, com a demanda global, com níveis de
capital investido na indústria, com especulação e com a situação política no
Oriente Médio. Tem havido tendência geral de alta desde 1999 (pontuada por forte
queda logo depois do início da crise econômica de 2008) e, se as estimativas de
oferta e procura globais são acuradas, o preço deve permanecer alto no médio
prazo.
Petróleo caro
mantém forte correlação com períodos de recessão, e como os anos 1970s
mostraram, os países que mais dependam de petróleo importado podem ser duramente
atingidos pelos preços altos. De fato, esse foi fator importante (facilitado em
parte pela reciclagem dos petrodólares do Golfo) na explosão da dívida do sul,
dos anos 1970s em diante. A tendência de alta dos preços dos alimentos que se vê
hoje (em parte ligada ao preço dos hidrocarbonetos) indica que altos preços do
petróleo pode ter impacto devastador, em vários sentidos.
O verso dessa
medalha é, porém, o interesse que os estados do Golfo (e, claro, também as
empresas de petróleo) tem em conseguir preços máximos. Há várias estimativas de
qual seria o ‘ponto de equilíbrio’ para os estados do Golfo – o preço mínimo do
petróleo para que aqueles estados cumpram seus compromissos fiscais. O FMI
estimava, em 2008, que a Arábia Saudita precisava do petróleo a $49/barril para
equilibrar seu orçamento fiscal naquele ano. Os valores mais baixos estimados
pelo FMI para os estados do Golfo foram $23 para os Emirados Árabes Unidos e $33
para o Kwait; os mais altos $75 para o Bahrain e $77 para Omã. Na média, os
países do CCG precisavam vender petróleo a $47/barril. Mas essas estimativas,
muito provavelmente, são baixas demais. Temos de lembrar que os estados do CCG
lançaram massivos programas de gastos, logo no início dos levantes, para tentar
conter qualquer tipo de insatisfação popular interna. O Institute of
International Finance, associação que reúne os maiores bancos do mundo,
estimava, em março de 2011, que a Arábia Saudita precisaria vender o barril de
petróleo, em média, a $88, em 2011 para que as contas do estado fechassem
equilibradas. A Arábia Saudita é produtor chave, porque é dos poucos estados com
potencial para aumentar a oferta mundial e, assim, fazer cair o preço do
petróleo (embora alguns analistas da indústria discutam se essa possibilidade
realmente existe e dizem que as reservas sauditas teriam sido superestimadas).
Em resumo, há inúmeros diferentes fatores, interligados aqui de modo complexo.
Mas me parece que o cenário mais provável em futuro próximo é alta continuada de
preços e crescimento continuado de excedentes nos estados do CCG.
A “Primavera
Árabe” pode ameaçar o equilíbrio regional de poder e o equilíbrio das forças de
classe dentro dos estados do Golfo?
Esse é,
precisamente, o verdadeiro potencial dos levantes que se viram ao longo de 2011.
Os dois processos que comentei – o peso crescente da economia regional e o
impacto diferenciado da crise global – implicam a impossibilidade de tratar as
escalas nacional e regional como esferas políticas diferentes. O que se vê à
superfície como lutas ‘nacionais’ limitadas dentro de estados-nação
individualizados, cresce inevitavelmente e desafia as hierarquias regionais mais
amplas. Nesse contexto aconteceram os levantes da ‘Primavera Árabe’.
Há aí diferentes
aspectos. Por um lado, pode-se ver o papel dos EUA e outras potências
estrangeiras na região e, muito importante, também a posição de Israel. Os
levantes (sobretudo o dos egípcios) fazem frente a todos esses aspectos, porque
os regimes que estão sendo desafiados eram centrais para o modo como essa ordem
regional foi construída. É errado, portanto, ver nos levantes exclusivamente uma
questão de ‘democracia’ – como se a luta ‘política’ pudesse ser separada da luta
‘econômica’, ou a luta ‘nacional’, da luta ‘regional’.
E o mesmo se pode
dizer do papel que os estados do CCG desempenham na economia política regional.
Não estou dizendo que os slogans e demandas dos levantes visassem explicitamente
os estados do CCG dessa maneira (ou que visassem explicitamente os EUA ou
Israel), mas eles tinham, em sua lógica própria, um desafio implícito à ordem
regional, que se veio desenvolvendo ao longo das duas últimas décadas.
As estruturas
sociais que caracterizavam o regime político no Egito, na Tunísia e em outros
pontos eram, elas mesmas, parte do modo como o Conselho de Cooperação do Golfo –
associado à dominação pelas potências estrangeiras e à posição de Israel –
estabeleceu o seu lugar baseado nas hierarquias do mercado regional. As lutas
contra a ditadura que os levantes populares fizeram são, simultaneamente,
interconectadas ao modo como o capitalismo desenvolveu-se em toda a região e,
nesse sentido, são lutas contra o Golfo.
Isso explica as
tentativas furiosas que os estados do Conselho de Cooperação do Golfo fizeram
para conter e esvaziar os levantes – são tentativas absolutamente centrais na
onda contrarrevolucionária que se vê hoje na região.
Parece-me que se
pode dizer, convincentemente, que o imperialismo na região está articulado com –
e em larga medida opera através dos – estados do CCG. A invasão da Líbia, em
operação conduzida pela OTAN, é claro exemplo disso, com o Qatar e os Emirados
Árabes Unidos, em especial, desempenhando papel importante naquela invasão. Os
estados do Golfo enviaram soldados, dinheiro e equipamento e – mais importante –
encarregaram de garantir legitimidade política para o ataque à Líbia. Há vários
outros exemplos – dentre outros, nos bilhões de dólares que os estados do Golfo
prometeram aos regimes no Egito e na Tunísia; a intervenção militar no Bahrain;
o convite a Jordânia e Marrocos, para que se juntem ao CCG (com o quê, todas as
monarquias reacionárias da região ficam afinal reunidas num só bloco); e o papel
central do CCG nas tentativas para mediar e controlar os levantes na Síria e no
Iêmen. E, talvez o mais importante, as ameaças sempre crescentes que estão sendo
feitas contra o Irã. De fato, a questão do Irã é tanto questão do CCG, quanto de
Israel.
Portanto, sim, os
levantes representam real possibilidade de alterar a ordem regional. O Egito,
com sua ampla e bem organizada classe trabalhadora e organizações de esquerda
muito mais fortes, é ponto chave da luta. Mas, voltando aos temas acima, no
longo prazo não há soluções ‘nacionais’ para os grandes problemas do
desenvolvimento desigual que o Oriente Médio e o Norte da África enfrentam.
Esses problemas exigem solução pan-regional, e – e aqui está o ponto central –
essa solução pan-regional implica confrontar a posição dos estados do CCG, que é
o núcleo duro do capitalismo na região.
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