22/2/2011, Matteo Pasquinelli, Uninomad
Publicado em
Il manifesto em 13/4/2011 com o título: “L’ascesa
in cattedra di un pensiero critico”.
Traduzido
por Moisés Sbardelotto, Unisinos
Enviado
pelo pessoal da Vila
Vudu
Matteo Pasquinelli |
Por
uma bizarra nêmese não totalmente casual, no momento de máxima crise do império
universitário anglo-americano, de Londres à Califórnia, é a filosofia política
em idioma italiano que aparece, como tendência teórica dominante, nos seus
departamentos.
De
Toni Negri a Paolo Virno, de Christin Marazzi a Sandro Mezzadra, de Maurizio
Lazzarato a Franco Berardi, basta olhar os nomes que aparecem nos primeiros
lugares das publicações acadêmicas australianas (filtrados pelos impassíveis
algoritmos do Google Scholar) ou
nos catálogos das bienais alemãs (por obra dos mais mundanos críticos de arte),
para entender como a repressão da anomalia italiana produziu, em contrapartida,
uma fértil diáspora teórica.
Sob
o rótulo de Italian Theory,
organizam-se hoje conferências, seminários e publicações sobre esses pensadores
que, nas últimas décadas, reabilitaram o operaísmo italiano para além do oceano
ou marcaram o retorno das categorias do biopolítico (com Giorgio Agamben e
Roberto Esposito) nesses ambientes universitários anglófonos narcotizados pela
revolução laica dos cultural
studies, pela filosofia pós-moderna e pela tradição analítica.
Só
em 2010, veja-se a conferência da universidade de Pittsburgh para os dez anos da
publicação de Império de Hardt e Negri, ou o simpósio na Cornell University de New York sobre o conceito de “comum”. Em
Amsterdã, no próximo dia 19 de maio, ocorrerá a conferência Pós-Autonomia, sobre
a disseminação do pensamento operaísta entre as novas gerações de estudiosos
(financiada por uma generosa bolsa pública).
Mas
se trata obviamente de uma nêmese de duas faces: a crítica ao capitalismo do
conhecimento, a noção de multidão
e a figura do trabalhador precário são recuperados pelos sistemas
acadêmicos, mas apenas para mudar de lado a teoria, sem por em discussão
hierarquias e disciplinas, quando se sabe que os seus autores-pensadores sempre
viveram à margem e não podem mais por o pé na universidade italiana.
Genealogia do materialismo
antagonista
O
nome Italian Theory indica por si só uma recepção anglófona e é
a tradução literal do rótulo anterior de
French Theory, com o qual o pós-estruturalismo francês foi
absorvido e neutralizado (de autores da ontologia, como Foucault, Deleuze e
Guattari, a aerolitos da espécie de Baudrillard).
A
primeira brecha dentro da academia norte-americana, porém, remonta à publicação
de Radical Thought in Italy, por
Michael Hardt e Paolo Virno, em 1996, preparada com antecipação pela
antologia Autonomia: Post Political
Politics, organizada por Lotringer e Marazzi, em colaboração com o comitê “7
de abril” no distante 1980, quando New
York ainda misturava grafites de Basquiat e teoria underground.
Mas,
para além dos equilibrismos acadêmicos, a passagem da French Theory para a
Italian Theory tem suas
motivações históricas.
No
panfleto La differenza italiana (2005), Negri lembra como o pensamento
pós-moderno fez saltar as categorias hegelianas, burguesas e patriarcais, do
moderno, mas deixando um horizonte de diferenças ambivalentes e indecidíveis.
Nos anos anteriores, já cabia ao operarismo de Tronti e ao feminismo de Luisa
Muraro, escreve Negri, levar a polarização das lutas sociais para a “ontologia
italiana” do século XX. Assumindo a intuição separatista e irredutível dos
mestres, Negri reivindica para o operaísmo o projeto de uma ontologia
constituinte, retomando o fio do discurso, no ponto onde o pensamento francês
deixara desejo e micropolítica.
O
texto de Negri fornece o título também à antologia The Italian Difference: Between Nihilism
and Biopolitics (2009), um panorama
que coloca, ao lado da tradição constituinte, as tradições do niilismo de
Massimo Cacciari e da biopolítica de Giorgio Agamben. Seguindo esse traço, mais
recentemente, Roberto Esposito, no seu
Pensiero vivente. Origine e attualità della filosofia
italiana (publicado pela editora
Einaudi e percebido como o breviário da
Italian Theory antes
ainda de ser traduzido ao inglês), escreveu a partitura da tradição italiana, no
seu ser antagonista ao poder, coerência sempre paga a preço muito alto, de
[Giordano] Bruno a Gramsci.
Esse
sínodo de tumulto e de práxis instituinte, essa imanência do antagonismo, é
traçada por Roberto Esposito em uma história ideal que, de Tronti, remonta até
Maquiavel. Materialismo antagonista que é estetizado na Batalha de Anghiaride Leonardo,
figura da Luta que funde o homem e o animal, como no centauro maquiavélico.
Esposito
contextualiza a emergência da “diferença italiana” com a crise daquelas escolas
europeias que se fundaram sobre o primado da linguagem: a filosofia analítica
inglesa, a hermenêutica alemã e o desconstrucionismo francês. Fora dos recintos
acadêmicos, essa crise foi talvez mais claramente imposta pela pressão das novas
formas do trabalho. Do “Fragmento sobre as máquinas” nos Grundrisse de Karl Marx, ao conceito de capitalismo do
conhecimento, de fato, o pensamento operaísta jamais considerou a linguagem como
“casa do ser”, mas, ao contrário, como meio de produção no centro do trabalho
contemporâneo.
O
principal motivo pelo qual, do outro lado do oceano, se adota a Italian Theory é justamente por ela ser uma das poucas
leituras antagônicas e não logocêntricas dos grandes aparatos da “economia do
conhecimento”, do trabalho imaterial e da
network society (como
ainda em 1999 o canadense Nick Dyer-Witheford notava no seu livro Cyber-Marx).
À
“virada linguística” da economia política (marxista e neoliberal), jamais
correspondeu uma “virada econômico-política” da filosofia da linguagem. Nisso se
pode talvez compreender a operação filosófica de Virno nos últimos anos: ao
invés de forçar os bastiões da filosofia analítica a partir de fora, ele
procurou as chaves para abri-los à política, de dentro para fora.
De
modo semelhante, justamente no interior da escola analítica e procurando
separar-se da herança de Alain Badiou, o grupo de jovens filósofos da
corrente Speculative
Realism (que se reúne em torno à
revista inglesa Collapse) se
esforça hoje para alcançar as margens do materialismo continental por via
negativa, mas empregando centenas de páginas de Kant para fazê-las equivaler ao
conceito de conatus, para o quê
Spinoza só precisou de uma proposição da Ética.
Ideologia
do realismo capitalista
O
mundo acadêmico norte-europeu encontra-se ainda dominado por uma outra escola
logocêntrica que Esposito esqueceu: a psicanálise lacaniana de rito esloveno,
que vê o mesmo capitalismo, simplesmente, como um efeito de realidade
ideologicamente mediado. O pêndulo hipnótico de Slavoj Zizek não deixa saída e
repete sempre o mesmo mantra: a ideologia não é algo de consciente e abstrato:
por exemplo, todas as vezes que vemos a economia como fato empírico e natural,
ali mesmo a ideologia intervém.
Essa
leitura é aplicada com a mesma generosidade tanto pelo economista burguês quanto
pelo marxista, esse também responsável pelo excessivo economicismo (como Badiou
gosta de destacar). Para essa escola de pensamento, o problema se chama aqui,
portanto, “Realismo Capitalista” (para citar o título de um recente livro de
Mark Fisher), e o compromisso político resolver-se-ia no exercício psicanalítico
de levantar o véu de ilusão [orig. véu de Maya] da ideologia cotidiana.
Contra
o pecado da “paixão pelo real” do pensamento italiano, Zizek descreve o ativismo
exatamente como o desejo lacaniano: não ligado ao hic et nunc, mas como sinal que
remete sempre a outro lugar. O comportamento econômico é descrito portanto como
uma linguagem, o imaginário político torna-se uma gramática manipulável, e a
militância é sempre pré-determinada por uma “ordem simbólica” em uma grade de
papéis.
Como
para Badiou, Zizek é apresentado como marxista com o consenso de todo o mundo:
mas o seu é um “marxismo sem Marx”, quando a crítica de uma economia política é
relegada ao papel de simulacro da ideologia. Em tudo isso, não nos admira que
Zizek confunda filosofia e crítica cinematográfica. O seu não é tanto um
“Comunismo Metafísico” que não se sujaria as mãos com as lutas reais, como
frequentemente se faz notar. Talvez se trate, mais simplesmente, de um
“Comunismo Avatar”. E não é casual que a segunda edição da conferência Idea of Communism, organizada por
Zizek e Badiou em Berlim em 2010, fosse dedicada principalmente às produções
teatrais sobre o tema.
O
pensamento italiano foi “para a universidade” ou, pelo menos, “fez escola” nas
lutas dos anos 1960 e 1970. E qual foi o ginásio histórico do peculiar paradigma
teórico de Zizek? A insistente leitura de Zizek sobre o neoliberalismo como
aparato ideológico não se forma, paradoxalmente, sobre o Consenso de Washington,
mas, isso sim, sobre os tempos do realismo socialista.
Assim
como a Escola de Frankfurt adotou o aparato de propaganda nazista como ‘fator de
conversão’ para descrever a indústria cultural norte-americana, assim também
Zizek emprega, contra o pensamento único neoliberal, os instrumentos conceituais
desenvolvidos sob a ideologia da cortina de ferro e os seus aparatos. No fundo,
aquela era a forma do conflito percebida, vivida e sofrida no cotidiano da
ex-Iugoslávia, ideológica, sim, mas não adaptável, hoje, para descrever o
capitalismo, biopolítico ou não.
Crise
global da economia
Essa
interpretação do político como problema ideológico produz contínuas recaídas.
Alinhando-se à vulgata lacaniana, o recente encontro de
Amsterdã The Populist Front,
dedicado à análise crítica dos populismos contemporâneos, do Tea Party ao holandês Geert Wilders,
passando obviamente pela Itália, parece perigosamente sugerir aos movimentos e
aos partidos de esquerda que se arrisquem na invenção do inimigo para sair de
sua própria crise.
Reivindicam-se
aqui tecnologias mitopoiéticas semelhantes às que os líderes populistas europeus
usam na construção das fobias de massa. Mas parece que há pouco de necessidade
histórica, se se criam “inimigos imaginários”, justamente no momento em que o
norte e o sul são atravessados por novos movimentos sociais.
Ao
desvio “populista” da
intelligentzia holandesa
e até aqui ainda não resolvido do imaginário político no debate filosófico,
a Scuola Europea di Immaginazione
Sociale que Berardi Bifo está
organizando para o próximo dia 21 de maio, em San Marino, parece responder à
distância.
O espaço aqui não é suficiente
para lembrar os encontros, mais prolíficos, da
Italian Theory com outras
áreas geofilosóficas: dos estudos pós-coloniais à teoria queer, da cultura da rede ao diálogo
com as disciplinas do Direito. A inovação teórica continua autonomamente na rede
das “universidades nômades” entre a França e a Itália, a Espanha e o Brasil.
Vejam-se os seminários sobre o comum
de Turim e Paris. Citando um belo artigo de Brett
Nielson, de 2005, é tempo de “provincializar o operaísmo”.
A
pós-autonomia, como vem sendo chamada, não é um animal histórico pronto para a
taxidermia; é movimento de pensamento vivo, que desloca as barricadas para
dentro das universidades: encarna-se, por exemplo, nas mobilizações de inverno
nas universidades europeias.
Às novas gerações de acadêmicos,
que, lépidos, dispõem-se hoje a canonizar o pensamento italiano, dever-se-ia
impor o carvão ardente da máxima de Tronti: o conhecimento está ligado à luta,
só quem odeia conhece verdadeiramente [TRONTI,
Mario. The Strategy of
Refusal, 1965. E Obreros
y Capital. Madrid: Akal, 2001 (Nota do revisor)].
É principalmente aqui, na
própria definição de conhecimento, que a
Italian Theory mostra o
seu núcleo inovador e irredutível: fazer teoria significa ainda hoje enfrentar o
problema da *conricerca [ou “com-pesquisa”,
metodologia de pesquisa na qual trabalham, em comum, intelectuais e operários],
a questão da filosofia do não filosófico (ou seja, do político); significa
superar as disciplinas humboldtianas
e dos Studies anglo-americanos, suprimir a hierarquia
entre objeto e sujeito da investigação; significa criticar o “conhecimento
processual” e da peer-review;
significa mostrar o papel da dívida, na vida estudantil; e por em questão, por
fim, aquela Ikea (?) da formação que é o
Bologna Process.
*“Conricerca” significa hoje repensar, até dentro
da universidade, o nó entre práxis e teoria em tempos de crise financeira. Não
por acaso, a escola de pensamento que estudou de perto o capitalismo do
conhecimento surge no momento de crise da edu-factory global. (Matteo
Pasquinelli, Berlim).
(comentário de Baby Siqueira Abrão enviado por e-mail e postado por Castor)
ResponderExcluirHegel... Kant... O que os pós-modernos viram de revolucionário nesses expoentes do pensamento filosófico conservador e moralista?
Não admira que aqueles que bebem de fontes de águas perenes, como Marx e Espinosa -- caso de Negri, por exemplo -- voltem à cena para pôr ordem na casa.
Quanto a Zizek, sua participação no programa do Assange já diz tudo: argumentação nula, insegurança na defesa de posições políticas (que nos levam a duvidar de que ele tenha mesmo essas posições), desconhecimento de campo, do on the ground, medo de confrontar o sionismo como movimento deletério planetário. Sua submissão ao sionista, que deveria ser sua contraparte na entrevista, foi ridícula, para dizer o mínimo. É fácil discursar para os occupiers porque ali se está entre críticos do status quo (mesmo que eles não compreendam nem o status quo nem a crítica a esse estado de coisas). Encarar os criadores do status quo é muito diferente, e nisso Zizek mostrou-se acovardado e ignorante de fatos históricos e atuais dos mais básicos. Chamá-lo "filósofo" é uma afronta aos verdadeiros filósofos, os que pensam e criam por conceitos muito bem montados, os que não se rendem diante de poderosos, os que vão a fundo no Real para explicá-lo sem fantasias e sem rodeios (como fizeram Espinosa e Marx), os que não temem nem o pensamento nem a práxis revolucionários.
Bem-vindos os italianos!