Em 2010, quando publiquei o texto
“Mario Vargas Llosa, Nobel de Literatura”, de passagem eu criticara a infeliz
recriação do peruano no livro A Guerra do
Fim do Mundo. Ainda que na época o comunicado de Estocolmo informasse que na
literatura de Llosa o tema central era a luta pela liberdade em seu país, pois
os prêmios, como os obituários, mentem na proclamação das virtudes, maior foi a
mentira na imprensa brasileira ao noticiar o livro sobre Canudos como um dos
seus grandes feitos.
Pelo contrário, já ali eu havia
notado que pelo menos em A guerra do fim
do mundo Mario Vargas Llosa havia sido um portentoso fracasso ao cometer um
livro falho, indigno de um criador um pouquinho acima da média, porque não se
sustentava em vários níveis:
a)pela criação
mesma de personagens – e um deles era nada mais, nada menos, que Antonio
Conselheiro;
b)pela
desproporção de abismo entre a dimensão humana/política de Canudos e o livrinho
realizado;
c)pelo cotejo
inevitável com a obra-prima Os Sertões – o de Llosa e o de Euclides eram dois
mundos estranhos, antagônicos, repelentes recíprocos;
d)pela
aviltação de Euclides da Cunha, um intelectual de honestidade absoluta, que só
era recuperado para o grande público em recriações constrangedoras (e fugia do
objeto do texto, na ocasião, e por isso não foi lembrada a insultuosa minissérie
Desejo, da Rede Globo, onde o drama
familiar de Euclides se transformara em realce para uma personagem feminista de
vanguarda). Mas, digamos, isso é passado.
O diabo é que o passado na
literatura é um infindável presente. Nela não há jornal velho ou produto com a
validade vencida. Se nos perdoam os norte-americanos, na literatura há uma
eternidade muito acima da dos diamantes, pois em vez de pedras a humanidade é
que brilha. E se perdoam o passo, passagem e queda, queremos dizer, aquele
passado ruim, precário e pretensioso de Mario Vargas Llosa torna a voltar em Tia Júlia e o Escrevinhador. Então
digamos, isto é presente.
Para o caso de Tia Júlia, pouco
importa se o narrado se atribua a um autor de radionovela, Pedro Camacho, louco
de frases sonoras e de extravagâncias, ou a um escritor cujas recordações se
confundem com as do tido como o Magnífico Mario Vargas Llosa. Importa o
conjunto, a forma da argamassa geral do livro, e o sentimento de dó,
constrangimento que causa até nos olhos de quem desejava apenas se entreter, mas
sem rebaixar a própria inteligência. Pois o que diria um leitor diante desta
literatura cuja eternidade está mais para diamantes que para a
humanidade?
“Demorou para pegar no sono e,
quando pegou, começou imediatamente a sonhar com o negro. Via-o cercado de leões
e cobras vermelhas, verdes e azuis, no coração da Abissínia, de cartola, botas e
uma varinha de domador. As feras faziam graças ao compasso de sua varinha e uma
multidão espalhada pelas moitas, troncos e galhos alegrados pelos cantos dos
pássaros e o chiar dos macacos, o aplaudia loucamente”.
Dirá no mínimo que estamos ante um
mau escritor, que divaga para expressar o mundo dos sonhos sem entrar na pele do
personagem. E pior, que neste romance não há uma seleção de fatos, que são
substituídos por amontoados descritivos. Mas o trecho é de “Pedro Camacho”, ruim
e extravagante de ruim de propósito.
Então vamos ao próprio escritor.
Além da falta de seleção de
pessoas e circunstâncias, com narração sonolenta, em um relato de paixões e
carnalidade quase não há sexo, ou o que seria mais humanamente literário, de
promessa de sexo entre belos e saudáveis primos que se contam segredos, por
exemplo. Em um trecho, o narrador fala a sua prima, e dela faz uma confidente
amorosa. São dois jovens que se falam de amor e paixão, sem que se envolvam na
chama. O que vem a seguir não é crível, acreditem, quando um impetuoso rapaz de
18 anos conta para a linda prima:
“- Você gosta da Julita só ou está
apaixonado por ela?
Houve tempo em que lhe fizera
confidências sentimentais e agora, como ela já sabia da história, fiz de novo.
Tudo havia começado como uma brincadeira, mas, de repente, exatamente no dia em
que senti ciúmes de um endocrinologista, me dei conta de que estava apaixonado.
Porém, quanto mais voltas dava, mais me convencia de que o romance era um
quebra-cabeça. Não só por causa da diferença de idade. Ainda me faltavam três
anos para terminar a advocacia e eu desconfiava que nunca exerceria essa
profissão, porque a única coisa de que gostava era escrever. Mas todos os
escritores morriam de fome. Por ora, só ganhava para comprar cigarros, alguns
livros e ir ao cinema. E tia Júlia ia me esperar até que eu fosse um homem capaz
de saldar suas dívidas, se é que algum dia chegaria a isso. Minha prima Nancy
era tão boa que, em vez de me contradizer, me dava
razão:
- Claro, sem contar que aí você
talvez não goste mais da Julita e largue dela – me dizia com realismo. – E a
coitada terá perdido tempo miseravelmente. Mas, me diga uma coisa, ela está
apaixonada por você ou está só brincando?
Respondi que tia Júlia não era uma
biruta frívola como ela (coisa que a encantou).”
A isso caberia só uma anotação ao
lado: absurdo! O autor relata como um burocrata, isso, conta sem que se reflita
nos personagens o que ele conta do que fazem. Em romance, ou melhor, em arte,
isso é grave. Ele descreve fatos, ele não narra gente. O reflexo do
acontecimento na pessoa navega ao largo. Aquilo que aprendemos em desenho, em
imagens do bom e velho cinema, de que a sombra do personagem, em momentos
dramáticos, é mais humana que a pessoa, e nem precisaríamos ir a Eisenstein,
pois nos basta o que o genial Kafka ensina quando elude o prosaísmo que é o
simples contar fatos, esqueçam. Ou melhor, lembrem por oposição neste passo do
Tia Júlia:
“- O que eu não gosto nem um pouco é a
história do revólver – comentou tia Júlia. – Acho que é em mim que ele haverá de
dar um tiro. Olhe, Varguitas, espero que
meu sogro não me mate em plena lua-de-mel. (Negritos desta resenha) E o acidente? Coitado do Javier! Coitado do
Pascual! Que confusão a gente aprontou para eles com nossas
loucuras...
Pagamos o hotel, fomos tomar um
café com leite na praça de Armas e meia hora depois estávamos outra vez na
estrada, em um velho lotação, rumo a Lima. Durante quase todo o trajeto, fomos nos
beijando, na boca, no rosto, nas mãos, nos dizendo ao ouvido que nos amávamos e
brincando com os olhares inquietos dos
passageiros....”.
Para não dizer absurdo, digamos,
isso é falso. O jovem Vargas de 18 anos e sua tia de mais de trinta estavam sob
a mira de uma explosão familiar, com ameaças de morte de um senhor arbitrário,
pai do narrador, sob escândalo moral e de costumes. E, no entanto, rumavam para
o centro do vulcão em Lima aos beijos e apertos.
Quem já passou pelo amor e paixão
tensos e perseguidos sabe que as linhas citadas acima são vazias de significado.
Amantes à beira do limite de uma dissolução não agem com tamanha leviandade,
digamos, para dizer o mínimo.
Nesses dois falhos personagens não
há o morre e renasce, morre e renasce, como as batidas de um músculo no peito.
Júlia e Varguitas longe estão de seguir para o centro de suas vidas com os olhos
vermelhos, porque desejariam renascer, quando na verdade fariam um nascimento a
fórceps, vindo daquela luz emitida por Goethe.
“Enquanto não compreenderes que
tudo morre e que tudo renasce, continuarás a ser apenas um visitante de um
triste planeta”.
Qual. Para quê um clássico
luminoso, para que exigências de humanidade em personagens cômicos, burlescos?
Em Tia Júlia e o Escrevinhador, Mario
Vargas Llosa vence o escândalo, os traumas, a tempestade, a inexperiência de
adolescente, pelo que conta em suas linhas.
“O casamento com tia Júlia foi
realmente um sucesso e durou bem mais do que todos os parentes e até ela mesma
tinham temido, desejado ou prognosticado: oito anos”.
Que sucesso! O narrador venceu
todas as dificuldades. Em Tia Júlia e o
escrevinhador, Mario Vargas Llosa perdeu apenas o mais essencial para um
escritor: a construção e a responsabilidade da arte de narrar.
Resenha enviada pelo
autor
Ilustração (caricatura) de Mechaín
Ilustração (caricatura) de Mechaín
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