quinta-feira, 24 de maio de 2012

“A casa que Fox TV* construiu: Anonymous, espetáculo e ciclos de amplificação” (1/3)


(a ser publicado no periódico peer-reviewed Television and New Media)

11/5/2012, Whitney Phillips, Scholars Bank, University of Oregon - 1a. Parte

(to be published in peer-reviewed journal Television and New Media)
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Resumo: Esse artigo discute o /b/ board, o lado “obscuro” de 4chan [orig. 4chan /b/ board], um pilar – se não o pilar – da atividade de trolagem [1] online. Além de comentar a história daquela página e a emergência do nebuloso coletivo conhecido como Anonymous, o artigo considera os modos pelos quais representações que surgiram inicialmente na televisão comercial, reações que delas decorreram e comportamentos de trolagem em /b/ ajudaram a criar e a manter uma influente subcultura. Ecoando a análise feita por Stanley Cohen, do pânico moral [2], o artigo postula que os trolls e veículos da mídia-empresa dita “grande mídia”, especificamente o Canal Fox News, estão ligados num círculo cibernético de realimentação previsto para o espetáculo: cada campo amplifica e elabora sobre a reação do outro campo, e os dois campos entram, assim, num congresso não desejado, mas de alta sinergia.


Monstros inofensivos

Taryn Sauthoff
No perfil que escreveu do infame /b/ board do blog 4chan, um dos mais ativos celeiros de trolagem da Internet, a repórter Taryn Sauthoff do Canal Fox News, caminha por fio de navalha muito, muito fino. “Alguns veem o 4chan como blog cheio de adolescentes entediados que gostam de ultrapassar todos os limites do que podem fazer online” – escreve ela. – “Outros veem aqueles usuários como parte de uma “Internet Máquina de Ódio” onde só há terroristas que convocam terroristas para bombardear estádios de futebol” (2009) [3]. Para provar o que dizem esses últimos, Sauthoff cita o conteúdo e os usuários mais fortemente transgressores, que ela descreve como antissociais e dados a escrever palavrões. Em apoio aos que dizem que os usuários do 4chan nada são além de adolescentes entediados, Sauthoff joga a cartada do isolamento social, e elogia o amor que demonstram por gatos, sempre comprovado nas mais belas fotos. Servindo-se do recurso retórico de que vive Fox News (“mas, segundo alguns...”), no qual um repórter dá tons para-editoriais (Outfoxed, 2008 [4]) a qualquer coisa, Sauthoff consegue apresentar /b/board como “usina subreptícia de cultura” povoada por solitários poderosos e um website insignificante, “praticamente desconhecido”, cheio de geeks inofensivos, doidos por computadores e gatos, a mesma ideia que se reproduz também no perfil de moot, fundador do 4chan, que a repórter descreve, por sua vez, como uma espécie de rei idiota do submundo da internet, que abandonou a universidade e vive sustentado pela mãe.

A abordagem de Sauthoff não é, de modo algum, única. A vasta maioria dos relatos que se leem na grande mídia-empresa sobre a página 4chan, particularmente sobre o /b/board, segue a mesma toada também sobre os usuários. Esse artigo explora essa conexão e propõe relação muito mais íntima entre a mídia dominante e os usuários, que nenhum dos dos lados dá sinais de interesse em reconhecer.

Primeiro, discuto o próprio 4chan, com atenção especial ao painel /b/ ou “aleatório”. Ofereço um perfil dos trolls residentes e historio a emergência dos Anonymous como figura de proa e “cabeça do enxame”. Em seguida, considero como os veículos da mídia-empresa, especificamente o canal Fox News, engendraram e mantêm, inadvertidamente, todas as aberrações que dizem combater e ofereceram o cadafalso sobre o qual se podem depor grande parte do conteúdo da mesma subcultura. Por fim, analiso as semelhanças entre os trolls e os veículos da mídia-empresa que os alimentam. Como espero demonstrar, os comportamentos de trolagem são homólogos ao que faz a grande mídia-empresa – não diametralmente opostos; as motivações de cada grupo podem não coincidir, mas as respectivas estratégias retóricas são, muitas vezes, indistinguíveis uma da outra.

Seguindo a trilha do enxame

Como vários especialistas (Boyd 2009; Ito 1997; Nakamura 2002, 2007; Schaap 2002) já observaram, a chamada “realidade” sangra necessariamente na direção da vida online; e vice-versa. Nossos corpos, com raça, classe e gênero aparecem codificados em nossos comportamentos online, por mais que se pretenda aparentar algo acima ou abaixo do que somos (Nakamura et al. 2000). Em resumo, não se pode ignorar o terrestre e pedestre, ao falarmos sobre o virtual. No contexto da trolagem, não se pode deixar de ver os modos pelos quais os corpos marcados por classe, raça e gênero dos trolls lá estão e criam o contexto para comportamentos de trolagem. Não implica dizer que há relação simples e unívoca entre as pessoas que vivem por trás dos trolls e suas respectivas personas de trolagem. Mas, num nível muito básico, as experiências dos trolls na vida diária – níveis de educação, acesso aos meios e tecnologias, afiliação ou ausência de afiliação política – influencia suas escolhas online, inclusive (e mais basicamente) a habilidade para agir, de modo geral, online.

Tom Boellstorff 
Isso dito, é impossível verificar com precisão a demografia dos grupos, especialmente no caso de 4chan/b/. Os trolls de /b/ raramente (quase se pode dizer “nunca”) revelam informações de identificação e são rápidos em castigar ou humilhar os que o façam, evidência que cria inúmeras obstáculos e complicações à prática etnográfica. É impossível saber com aproveitável grau de certeza se algum troll anônimo (descritos todos no 4chan como anons ou /b/tards) algum dia receberá alguma mensagem específica, se o respondente era de fato o/a troll-alvo, nem se o/a troll estava trolando, em suas respostas – aspecto sobre o qual Gabriella (Biella) Coleman discorreu, na análise da manha (a capacidade, o jeito, o saber-fazer [orig. cunning]) nos espaços de trolagem e de hacking (2011 [5]).

Por essa trilha, a pesquisa nos espaços de trollagem necessariamente – embora às vezes desconfortavelmente – ecoa o que diz Tom Boellstorff em Coming of Age in Second Life (2008), que descarta a discussão da identidade terrestre em favor de exame antropológico detalhado da identidade online. Como observa Danah Boyd, a análise de Boellstorff reconhece implicitamente a significação do self “real”, embora se recuse a considerar os meios pelos quais um dos “eus” informa e complica o outro; isso, argumenta Boyd, é muito problemático e não dá conta satisfatória de um conjunto de comportamentos (2008). Concordo com Boyd. Consequentemente, limitei o foco de minha pesquisa no que os trolls fazem e, mais importante, em como seus comportamentos cabem em, e emergem com, ideologias dominantes.

Especificamente, e a partir de mais de 200 horas de observação participativa em /b/, em Encyclopedia Dramatica, em Know Your Meme e em YouTube, a análise que adiante se lê narra as origens subculturais dos comportamentos de trollagem; e examina os modos pelos quais esses comportamentos emergiram de, e desenvolveram-se por, vias que são estruturadas pela lógica da mídia comercial. 

A Internet, Máquina de Ódio 

O 4chan.org, uma simples plataforma de imagens, modelada segundo o Futaba Channel japonês, de imenso sucesso, foi fundado em 2003, por  Christopher “moot” Poole, então com 15 anos. Atualmente, a página abriga dúzias de painéis classificados por conteúdos específicos, todos concebidos para específicos subconjuntos da população do 4chan. O /a/ board, por exemplo, é devotado aos anime
[6] ; o /x/ board, a fenômenos paranormais; o /v/ board, a videogames, etc..

O mais popular dos painéis do 4chan – e o painel sobre o qual concentrei meu foco – é o /b/, “geral”, onde está a significativamente maior quantidade de tráfego do 4chan. Habitado por dezenas de milhares de autoidentificados trolls, usuários que se dedicam à transgressão e à “agitação” e tumulto, /b/ é amplamente considerado como um dos epicentros (há quem fale de “O” epicentro) de toda a atividade de trollagem online e dali sai, praticamente sem dúvida alguma, boa parte do conteúdo viral mais reconhecível, para não dizer o mais ofensivo. Como explica Matthias Schwartz, no perfil da página que escreveu em 2008, “Avaliada em termos de depravação, insularidade e tráfego gerado pelo turn-over , a cultura de /b/ parece não ter precedentes (...) É em tudo semelhante a uma parede de banheiro de ginásio, ou reunião pornográfica por telefone, ou blog sem postados onde só há comentários, todos cifrados em termos de gíria que você sempre é velho demais para entender”
[7] (Schwartz 2008).

A associação que Schwartz faz entre /b/ e alguma latrinalia proibida para menores é muito adequada, porque os conteúdos – significativamente, como na correspondente parede de banheiro – é sempre postado sob anonimato. Embora os usuários tenham a opção de preencher um campo [Nome], poucos a usam, e número ainda menor oferece detalhes de identificação (nomes civis reais, ou codinomes que o usuário pretenda usar mais do que uma vez). Resultado disso, a (grande) maior parte do conteúdo é criado anonimamente e modificado anonimamente e baixado [org. downloaded], remodificado e atribuído anonimamente. Os usuários são conhecidos como “anon”; e o coletivo, como “Anonymous.”

(...) Quase tudo, em /b/, é escrito em inglês e deixa transparecer a cultura e a política dos EUA, exceto algumas bem definidas referências ao Japão (i.e. cartoons japoneses, como Pokemon e DragonBallZ, e vários anime populares, entre os quais Azumanga Daioh e Gurren Lagann). Vez ou outra aparecem outros idiomas ou nacionalidades, mas a massiva maioria dos anons podem ser identificados e identificam-se como norte-americanos de classe alta, que vivem em centros urbanos ou nos bairros periféricos ricos dos grandes centros urbanos.

Trollface
Em segundo lugar, pode-se afirmar, a partir das muitas referências à cultura pop do final dos anos 1980s e início dos 90s, que há muitos usuários cujas idades situam-se entre 18 e 30 anos; a mesma tendência transparece também nos comentários e grupos de comentários em que os “correspondentes” partilham memórias de infância; ou nas referências a seriados, filmes e brinquedos “datados”; e em todos esses casos, a referência é, predominantemente, àquele momento da história pop-cultural dos EUA. Além de sugerir bem definidas faixa etária e nacionalidade, os comportamentos de trollagem que se veem em /b/ também sugerem fortemente que a maioria dos usuários são brancos. Os afrodescententes norte-americanos são frequentemente objeto da trollagem dita “humorística”. Mesmo quando o humor é neutro, em termos de raça, os anons assumem como certo que se apresentam como brancos, para um “público” de brancos; nas raras ocasiões em que algum anon expõe-se como não branco, o que acontece é que se autoidentifica, em termos raciais, no campo correspondente, como “Outro”.

Por fim, embora não seja possível provar que todos os /b/tards são biológicamente machos, o ethos de /b/ é indiscutivelmente androcêntrico. Além de ali se encontrarem todos os tropos sexistas (“volte pro fogão e me faça uma comida”) e dos postados contra quem se apresente como mulher (a pergunta padrão é: “tits or gtfo” [expressões chulas para “seios, ou dê o fora”]), /b/ é campo aberto para o que parece ser fornecimento infinito de material pornográfico, todo ele marcado por um olhar explicitamente machista. Mas nem sempre é olhar machista heterossexual; há muita pornografia gay, em /b/, e os trolls devotam muita energia ao comportamento ostensivamente homossocial (quando não é declaradamente homossexual), com frequentes longas disputas sobre “o meu é maior que o seu”, nas quais os anons postam fotos dos respectivos pênis e dão-se notas.

A alta ocorrência da palavra “fag” [“viado”, “bicha”] complica ainda mais o quadro. Sempre que os anons fazem piada sobre “an hero” [um herói/uma heroína]”, termo definido no universo da trollagem, para “suicida”; ou fazem poesia sobre o uso de drogas; ou pedem conselhos aos Anonymous, a resposta padrão é “do it faggot” [“faça isso, viado”], quase sempre acompanhada de fotomontagem ou desenho de algo ou alguém (personagem de desenhos animados, cães, ursos, crianças), mostrando grotescamente os dentes.

A acusação de “faggotry” [“viadagem”] está sempre presente, desde alguém dizer “your a faggot” [“você é um viado”], até as mais pretensiosas e "enroladas" discussões sobre “buttsecks” [sexo anal]. Além disso, sempre que tenham de se autoidentificar, seja em termos de geografia, ou escola ou universidade, ou principais interesses, os anons automaticamente acrescentam o sufixo “fag” a qualquer adjetivo.

Assim, os novatos, recém-chegados, são “newfags” [“viado novo”]; veteranos são “oldfags”; gente que escreva da California é “Califag”; quem se declare gay é “gayfag” e assim por diante. Conforme o contexto, o sufixo “-fag” pode formar palavra de baixo calão homofóbico, de expressão de carinho, ou pode ser simples modo neutro de se autoidentificar.

Além de impedir qualquer análise demográfica precisa, o anonimato tem profundo impacto no comportamento. Mais obviamente, porque não há repercussões, se o anon posta texto ou imagem racista, sexista, homofóbico ou de exploração. Mas, porque a trollagem é caracterizada pelo exibicionismo de transgressão, /b/ é assolado por conteúdo muito altamente ofensivo e às vezes explicitamente ilegal, inclusive pornografia infantil.

A política oficial de 4chan é de tolerância zero com pornografia infantil e pedofilia. E em 2008 moot declarou que havia banido mais de 70 mil endereços de IP (Brophy-Warren 2008). Mas os moderadores só podem controlar e filtrar porcentagens amostrais dos comentários e discussões. É inevitável que, às vezes, até o conteúdo mais altamente ofensivo vaze entre as frestas.
Christopher "moot" Poole

Por mais chocante que sejam alguns dos conteúdos que transitam por 4chan, sobretudo no painel /b/, os números de tráfego da página são, indiscutivelmente, muito mais impressionantes.

Em julho de 2008, a revista Time noticiou que a página 4chan havia tido número diário médio de 8,5 milhões de page views [visitas à página] e 3,3 milhões de única-visita por mês (Grossman 2008a); e em agosto do mesmo ano, o New York Times calculou o monthly hit-rate (contagem que inclui usuários de única-visita e de mais visitas) do 4chan, em 200 milhões (Schwartz 2008).

Em 2009, artigo publicado no Washington Post citou moot, com métrica interna [orig. internal metrics] de 400 mil postados diários (Hesse 2009), número que, em 2010 já praticamente dobrara (Fisher 2010). Em março de 2010, o New York Times noticiou que o número total depage views diárias de 4chanel subira para 800 mil, e que a página alcançara 8,2 milhões de visitantes únicos por mês (Bilton 2010).

Depois, no mesmo ano, moot rodou uma ChartBeat de dados, que rastreou o número total de olhos postos no 4chan; descobriu que a página recebe 60 mil visitantes em qualquer momento do dia ou da noite; 10 mil, só na página de abertura de /b/ (“Mainstreaming the Web” 2010). Resultado disso, 4chan depende de cinco servidores e processa o equivalente a 20 terabytes de dados por dia (
FAQ 2010).

[Continua]



Nota dos tradutores
* Há aqui um subtexto intraduzível, que liga o canal de televisão Fox  e fox, “raposa” (ing.) da fábula de Esopo (com incontáveis versões posteriores), em que uma raposa sentindo-se muito esperta, oferece-se para construir uma casa para abrigar a galinha vermelha; na fábula, a galinha se salva e ensina dura lição à raposa solícita, mas mal-intencionada.
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Notas da autora

[1] Orig. troll activity. Troll: “Quem posta mensagem de provocação deliberada num grupo de discussão ou painel de mensagens, com a intenção de causar o máximo de discussão e confusão” (Urban Dictionary, troll).

[2] O livro é COHEN, S. [1972] (1980) Folk Devils and Moral Panics: The Creation of the Mods and Rockers [Demônios populares e pânico moral: a criação dos Modse Rockers]. Oxford: Martin Robertson. No blog “O Bixo”, lê-se ensaio de 2010 em que o autor serve-se também do conceito de “pânico moral” em crítica ao que faz, no Brasil, a revista (NÃO)Veja. Interessante. 

[3] 8/3/2009, Fox News, em: 4Chan: The Rude, Raunchy Underbelly of the Internet”.

[4] Documentário, EUA, 2004, 77min., dir. Robert Greenwald. Sobre o filme, ver: Outfoxed - Guerra contra o Jornalismo” de onde o filme pode ser baixado; e pode ser assistido também a seguir:

[5] Encontra-se alguma coisa sobre o assunto no Blog da Biella Coleman em: “Hacker and Troller as Trickster

[6] Anime é forma derivada de “animação”/animation, cunhada no Japão, para designar todos os tipos de desenho animado, japonês ou estrangeiro. Na Europa e nos EUA, a palavra designa especificamente os desenhos japoneses de animação. Os fãs de anime nos EUA em geral demarcam clara distinção entre cartoons (como Looney Tunes e Disney) e anime, que têm traço e características diferentes. (Urban Dictionnary, Anime)

[7] 2/8/2003, The Trolls Among Us, Mattathias Schwartz, New York Times.

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