Entrevista com Moazzam Begg e
Assim Qureshi (sobreviventes de Guantánamo)
5/5/2012, Russia Today
Vídeo e entrevista transcrita e
traduzida pelo pessoal da Vila
Vudu (27’50”)
ASSANGE:Essa
semana, recebo dois convidados:
Moazzam Begg passou vários anos preso em Guantánamo, como suspeito de ser membro da
Al Qaeda. Depois de forte pressão, o Reino Unido conseguiu que os
norte-americanos o libertassem, em 2005, sem que jamais tivesse havido qualquer
acusação formal contra ele.
Associado a Assim Qureshi,
ex-advogado de empresas, Begg faz hoje campanha pela libertação de outros
prisioneiros da guerra contra o terrorismo. Para tanto, fundaram a organização
Cageprisioners [Prisioneiros
da Jaula], organização islâmica pró Direitos
Humanos. A organização exige respeito ao regime legal vigente, com o justo
processo legal garantido para todos os prisioneiros. O que quero que me
expliquem é como essa exigência, central no trabalho que fazem, pode conviver
com a Xaria, a lei islâmica. Quero saber também como seria o sistema legal do
Califato Islâmico, caso muçulmanos venha a formar um
superestado.
ASSANGE: Moazzam,
quando você estava preso em Guantánamo assinou a seguinte
confissão:
“Eu
estava armado e preparado para lutar ao lado do movimento Talibã e da al-Qaeda,
contra os EUA e outros. Depois, me recolhi a Tora Bora, quando nossa linha de
frente foi derrotada. Conscientemente prestei ajuda a membros da al-Qaeda,
encontrando alojamento para seus familiares, e ajudando a distribuir propaganda
da al-Qaeda; e recebi membros dos campos terroristas da al-Qaeda, sabendo que
alguns recrutas poderiam vir a ser operadores da al-Qaeda e cometer atos
terroristas contra os EUA.”
Assange: Esse modo de falar... Você fala assim, no dia a
dia?
MOAZZAM BEGG:Não,
não, é claro que não falo assim.
ASSANGE:Soa
como se fosse peça de processo, redigida por advogados.
MOAZZAM BEGG: Só
assinei esse documento, porque estava com as mãos e os pés amarrados às costas;
com a cabeça coberta por um saco; e estava apanhando por todos os lados, socos e
pontapés, que não sabia de onde vinham, enquanto ouvia uma mulher gritar próximo
de mim e me haviam convencido de que seria a minha mulher. Quando descobriam
minha cabeça, mostravam fotos dos meus filhos. E diziam: “Você acha que ainda os
encontrará vivos?” “Acha que os deixamos em casa, depois que tiramos você de
lá?” Acabei convencido do que eles queriam me convencer: que ou eu assinava o
que me mandassem assinar, ou provaria que não me interessava pelo futuro da
minha família. Tive de escolher entre essas alternativas. E assinei, claro.
Assinei.
ASSANGE: Quando você afinal saiu de Guantánamo, uniu-se à organização Cageprisioners [Prisioneiros da
Jaula], e passou a defender outros prisioneiros que você conhecera em Guantánamo
ou em outros lugares, sempre exigindo que os prisioneiros contra os quais não
haja nem acusação nem processo, têm de ser postos em liberdade.
Há
aqui um fato incrível: em 2010, WikiLeaks encontrou um telegrama da Embaixada
dos EUA em Luxemburgo, dirigido a Washington. O telegrama diz que você visitou
Luxemburgo, numa campanha para que Luxemburgo libertasse os prisioneiros de
Guantánamo:
“Mr. Begg está fazendo
nosso trabalho por nós. É irônico que, depois de quatro anos de prisão e
alegadas torturas, Moazzam Begg dedique-se hoje a dizer ao governo de Luxemburgo
o mesmo que nós também dizemos. Por favor considerem a possibilidade de aceitar
o reassentamento dos prisioneiros de Guantánamo”.
Como você se sente, sabendo que o governo Obama agora o vê como seu
embaixador?
MOAZZAM BEGG: É...
Nada bom para a minha credibilidade nas ruas. Se as pessoas levassem e a sério o
que o embaixador dos EUA diz, seria ruim. Mas não há dúvida de que os EUA ainda
me veem como combatente inimigo.
ASSANGE: Vamos
falar desse enfoque extremo. O papel de Cageprisioners é conseguir
libertar os prisioneiros presos sem processo, acusação ou sentença; e, pelo
menos nos casos em que haja processo, encarregar-se da defesa deles.
Mas, atualmente, o governo dos EUA está usando drones e mísseis
para matar muçulmanos radicais por todo o mundo. Cageprisioners ainda tem
trabalho? Quero dizer... prisões como a que existe na baía de Guantánamo
converteram-se em grave problema político. Mas se os EUA matam o suspeito... não
há ninguém a prender e acabou o problema político.
MOAZZAM BEGG: Bom
seria que não tivéssemos trabalho, quero dizer, seria ótimo se não houvesse
ninguém preso ilegalmente. Trabalhar com os presos e com os familiares dos
presos que defendemos é trabalho muito doloroso. Antes, se dizia que Bush era o
presidente ‘dos EUA da detenção extrajudicial’. Hoje já se diz que Obama é o
presidente ‘dos EUA da matança extrajudicial’. E Obama prometeu mudanças. Disse
que, com ele, chegava a mudança aos EUA. A única mudança que se vê é que a
detenção extrajudicial converteu-se em matança
extrajudicial.
ASSANGE: Assim, em
2006, numa manifestação, você disse palavras muito duras:
“Quando vemos nossos irmãos lutando na Chechenia, Iraque, Palestina,
Caxemira, Afeganistão, sabemos de onde recolher o exemplo. Quando vemos o
Hizbollah, derrotar o exército de Israel, sabemos qual é a solução e onde está a
vitória. Sabemos que é nosso dever comum apoiar a Jihad dos nossos irmãos em todos os
países onde enfrentam a pressão do ocidente”.
Assisti ao vídeo. E, sim, tive a impressão de que se tratava de um
muçulmano exaltado pregando a Jihad. Por que disse
isso?
ASSIM
QURESHI: Aconteceu no contexto em que os israelenses haviam bombardeado Cana,
mataram multidões de civis. Foi em 2006. Agora, o que se tem de entender é que,
até hoje, os muçulmanos continuam a ser atacados, em diferentes países, por todo
o mundo. Centenas e milhares de pessoas continuam a morrer. Na realidade, nosso
conceito de Jihad, na interação atual, significa que os muçulmanos
têm pleno direito de defederem-se. Estão sendo mortos, num processo de
ocupação, de dominação colonial, no qual o racismo sempre está presente. Não faz
sentido algum dizer a essas pessoas que não se podem defender, que não têm
direito de lutar por sua legítima defesa. Que alguém, por sua vez, teria direito
legítimo de condená-las, de matá-las, de prendê-las, sem lhes garantir direito
de defesa.
ASSANGE: Mas
defesa, nesse caso, quer dizer resistência militar.
ASSIM
QURESHI: Claro, todos esses países devem resistir. Quero dizer que... O fragmento
que você leu não é todo o discurso. Naquele discurso, eu disse também que nós,
como muçulmanos no Reino Unido, temos de apoiá-los, defendê-los, fazer
campanhas, fazer todo o possível pra apoiá-los outros muçulmanos que estão em
guerra. Estou plenamente convencido que isso é parte de nosso dever, de nossa
obrigação.
Mas nada disso implica dizer que eu ache que a única solução seja o
conflito. Somos contra a ideia de que a única solução seja o conflito.
Pessoalmente, eu, particularmente, não acredito na violência como única solução.
Para mim, a única solução é o diálogo. Mas, ao mesmo tempo, também acredito que
todos têm direito de defender-se.
ASSANGE: Mas
quanto a essa defesa, na Chechênia, por exemplo, onde foi atacada uma escola...,
mais de 300 pessoas morreram. Quero dizer, na Chechênia, há problemas
militares...
ASSIM
QURESHI: Claro...
ASSANGE: ...
para a população russa. Mas como se pode dizer que aqueles terroristas chechenos
estariam defendendo, daquele modo, a Chechenia? É essa a defesa que você aceita?
ASSIM
QURESHI: Não
se trata de “eu”. Não estou dizendo que esses métodos estejam de acordo com o
que eu penso, pessoalmente. Pessoalmente, não creio que aquele seja o modo
islâmico de fazer as coisas. Mas não vivo naquelas circunstâncias.
E não posso fazer análises islâmicas, do ponto de vista jurídico, sobre
coisa alguma, não sou especialista, erudito muçulmano. Não posso dizer que esse
modo seja ou não seja o modo islâmico correto de fazer as coisas. Mas, sim,
tenho discordâncias pessoais. Não concordo com tudo. Não concordo com o que
Al-Qaeda faz pelo mundo. Não acredito que seja produtivo, em relação aos
objetivos que querem atingir.
Mas ao mesmo tempo, no conceito geral, do qual se tratava, naquele
discurso, acredito que as pessoas têm o direito de defender-se, não se pode
simplesmente negar-lhes esse direito... Porque os EUA supõem que tenham toda a
autoridade moral do mundo. Esse é o meu ponto de vista.
MOAZZAM BEGG: Tenho
algo interessante a dizer sobre a Jihad, porque é palavra usada de forma
tão errada, tão abusiva, que as pessoas não entendem o que realmente significa.
Não negamos que apoiamos a Jihad, isso é claro. O governo britânico
também apoiou a Jihad; reuniu combatentes mujahedin nos anos 70 e
80, e foram treinados pela Força Aérea Britânica [no....]. Há apenas alguns
meses, novamente governos ocidentais apoiaram os combatentesmujahedin –
ou que eram chamados de mujahedin – na Líbia, contra Gaddafi.
Os meios de comunicação fazem esse jogo de palavras: a Jihad é
sempre má, exceto quando [os meios de comunicação] a declaram boa.
Aí está mais uma coisa que nós, como ex-prisioneiros e como organização
muçulmana, trabalhamos para explicar às pessoas: que os políticos e os meios de
comunicação enganam as pessoas quando usam a palavra Jihad.
ASSANGE: Preciso fazer duas perguntas difíceis. Se eu estivesse entrevistando
Bush, ele provavelmente diria que não houve ataques terroristas significativos
nos EUA depois de 2001. Argumentando a favor dele próprio, ele responderia que
teve sucesso, porque usou todos os tipos de vigilância, aterrorizando os
norte-americanos, aterrorizando as pessoas, de modo absoluto, com Guantánamo
(prisões sem acusação formal, condenações sem julgamento, execuções arbitrárias.
MOAZZAM BEGG: Acho
que não posso responder sua pergunta, sobre se Bush agiu corretamente. Houve
outro Bush antes dos ataques. Não sei se foram medidas corretas a tomar contra o
terrorismo. Mas é interessante: há estudiosos especialistas em Al-Qaeda na Arábia
Saudita , que, sim, dizem, sobre Bush: “Nos alegramos quando
[Bush] chegou ao poder, porque parecia ser alguém que pensava como nós”.
ASSANGE: Há eruditos que diziam isso?
MOAZZAN BEGG: Sim,
sim, há. Depois, Bush disse “Essa cruzada vai demorar algum tempo”. E foi nesse
momento, depois de Bush dizer isso, que tudo começou a dar errado.
ASSANGE: E bin
Laden? Quem disse que bin Laden fez tudo certo?
MOAZZAM BEGG: Bem... Se você pensa no que ele fez quando os soviéticos ocuparam o
Afeganistão, e os EUA não apoiavam os soviéticos, é evidente que sim, bin Laden
fez tudo certo, e o apoio do Ocidente o legitimou. Disso, há muitas provas.
ASSANGE: Não estou dizendo que o ocidente pense
assim. Quero saber o que vocês pensam.
MOAZZAM BEGG: Claro, entendo. E concordo. Entendo que os afegãos, para livrarem-se
dos soviéticos, tenham buscado todos os apoios dos que desejassem apoiá-los.
Naquele momento, bin Laden estava certo. Mas, quanto aos ataque do 11/9, quanto
a bin Laden ter ordenado os ataques – se é que ordenou algum ataque –, ainda não
sei. Minha opinião ainda não está definida, porque bin Laden não foi julgado,
ele não teve julgamento justo. Mas acho que, se ordenou os ataques, fez errado;
porque iniciou uma reação em cadeia da qual ainda não conseguimos nos recuperar
até hoje.
ASSANGE: E o que você pensa de bin Laden como líder?
Por que teve êxito?
MOAZZAM BEGG: Em
primeiro lugar, não sei se foi líder. Acho que o mito perpetuador da al-Qaeda no
Magreb, depois também na Europa e todas as franquias de al-Qaeda, formaram-se de
coisas como... “Se todos dizem que somos al-Qaeda, então seremos al-Qaeda”. Mas
realmente não acredito que tenha acontecido do modo como nos contaram. Há um
mito sobre a extensão do alcance e da influência de bin Laden como pessoa, como
líder. Se você se aprofunda no mundo muçulmano, há atitudes muito diferentes. A
maioria das pessoas não concorda com os ataques de 11/9, não concorda com matar
civis, não concorda nem aceita absolutamente nada disso.
ASSANGE: Qual era a opinião no mundo muçulmano sobre
bin Laden, antes do 11/9? Era conhecido?
MOAZZAM BEGG: Acho
que não, acho que não era conhecido. Talvez, pode ser, talvez fosse conhecido
nos países do Golfo; dos que foram parte da luta da Jihad, contra os
soviéticos; é possível que fosse conhecido entre essas pessoas. E com certeza
[se fosse conhecido] seria respeitado pelo sacrifício pessoal, pela integridade
moral, pelas várias atitudes que teve, e que o povo não esperava de um
multimilionário.
Mas, depois disso, acho que passou a ser apresentado como algo maior do
que realmente algum dia foi. Os EUA não atacaram diretamente bin Laden: saíram à
caça de nações inteiras e mataram dezenas de milhares de pessoas, nesse
processo. Não faria diferença alguma se bin Laden estivesse aqui ou acolá; seria
irrelevante. Os sintomas dos quais bin Laden falava continuam aí.
ASSANGE: Como vocês se autodescreveriam, os traços
principais: como muçulmanos, como libertadores, como gente que gosta de viver
sob leis rígidas? Como intelectuais?
MOAZZAM BEGG: [pensa um segundo] Tudo isso junto [risos].
ASSIM QURESHI: Acho que essas coisas não se excluem. Ser muçulmano significa postar-se a favor da justiça, ser um pouco radical, mas também significa ser um pouco conservador. Tudo isso ao mesmo tempo. Sabe... Deus disse, no Corão “Sê justo, ainda que te prejudique.” É lição muito, muito importante. Parte do que somos, do que nos caracteriza aí está: é preciso ser justo em qualquer circunstância inclusive quando se tenha de exibir prova contra si mesmo. Nosso caráter é formulado assim. Em muitos sentidos, a justiça é mais importante que outras coisas.
ASSIM QURESHI: Acho que essas coisas não se excluem. Ser muçulmano significa postar-se a favor da justiça, ser um pouco radical, mas também significa ser um pouco conservador. Tudo isso ao mesmo tempo. Sabe... Deus disse, no Corão “Sê justo, ainda que te prejudique.” É lição muito, muito importante. Parte do que somos, do que nos caracteriza aí está: é preciso ser justo em qualquer circunstância inclusive quando se tenha de exibir prova contra si mesmo. Nosso caráter é formulado assim. Em muitos sentidos, a justiça é mais importante que outras coisas.
ASSANGE: Na luta para libertar pessoas das prisões,
e sabendo-se que vocês dois já foram prisioneiros... Vocês entendem que a luta
pela liberdade de pessoas e de grupos de pessoas... Vocês acham que esse
trabalho seria incompatível com a submissão a um deus?
MOAZZAM BEGG: [sorriso] Estamos na Grã-Bretanha e temos de tratar com pessoas que têm
outros interesses, outros governos, para...
ASSANGE: Para mim, lamento, mas acho desconcertante,
incômodo. Vocês não veem assim – ter de submeter-se à vontade de Deus?
MOAZZAM BEGG: Bem... Como seres humanos, sempre temos de nos submeter a algo, a algum
tipo de lei, de algum modo. Meu enfoque parte do mundo muçulmano, não falo do
Ocidente, porque o Ocidente não precisa preocupar-se com as comunidades
muçulmanas que vivem aqui. Entendemos as leis e as normas e entendemos que temos
de aceitá-las, mesmo que, em alguns casos, não nos agradem.
Mas se estamos falando do mundo muçulmano – e é importante reconhecer
que o mundo muçulmano vai do Magreb à Indonésia; estamos falando de 1/5 da
população do planeta, e isso sem considerar...
ASSANGE: [interrompe] Sim, sim, mas... E o que
querem? Querem mais leis?
MOAZZAM BEGG: Estou
dizendo que querem que todos esses muçulmanos desejam que o Islã e a religião
sejam parte da vida da população do mundo muçulmano, em termos de governança e
em termos de vida cotidiana. Entendo também que isso é uma escolha que todos
devem respeitar. O problema é que não a temos respeitado, nos últimos cem anos.
ASSANGE: O que pensam do projeto de unir os
muçulmanos num califato islâmico, sob a ideia central de um regime de lei que já
existe, a lei da Xaria? Para vocês, é uma possibilidade?
ASSIM
QURESHI: Acho
que, se consideramos o modo como as comunidades islâmicas vão-se desenvolvendo
no mundo, agora, especialmente a Primavera Árabe, os árabes terão muito assunto
sobre o qual refletir.
São muitos fenômenos muito diferentes, que emergem em diferentes países.
E muito diferentes. O que acontece em Túnis, com Rashid
Al-Ganushi [PartidoEnnahda], é muito, muito diferente do que acontece no
Egito, agora com os irmãos da Fraternidade Muçulmana e o partido Nur.
O que estamos vendo agora... Muitos muçulmanos, sim, generalizando,
estarão de acordo com a união de todos os muçulmanos e o restabelecimento de um
califato islâmico. É uma postura ortodoxa, possível para muita gente. Mas, na
base dessa postura, a questão é como formular essa ideia, em termos que faça
sentido no mundo moderno?
Temos agora de observar os muçulmanos em todo o mundo, com todas as suas
diferenças. O que acontece em Túnis, o que acontece no Egito, o que acontecer na
Líbia, agora que tentam organizar-se melhor. Porque todos esses muçulmanos estão
tendo autoridade e direito, pela primeira vez, para tentar compatibilizar o que
exige a lei islâmica, a Xsária, e o fato de viverem no mundo ocidental, eu
diria, no mundo moderno.
ASSANGE: Como seria para vocês o sistema ideal?
Seria uma Common Law? A lei islâmica, Xária? Um amálgama de ambas?
MOAZZAM BEGG: Essas
são perguntas grandes demais. Nós lutamos, sobretudo, contra a detenção de
pessoas comuns, sem cargo algum. Nos dedicamos a isso. E não, absolutamente, não
é parte de nosso trabalho resolver todos os problemas do mundo. Se quer minha
opinião pessoal, estritamente pessoal, posso dizer que, na minha opinião, creio
que esse seja o grande temor. Quando falamos do sistema de califato, todos se
apavoram. E o que seria isso? Seria uma união de países onde todo mundo falaria
árabe? Pelo amor de Deus! Claro que não! Na Europa temos 15 línguas diferentes,
e as pessoas estão tentando unir-se, pôr fim às fronteiras nacionais, deixar de
ter estados e passar a ter o mesmo sistema monetário...
ASSANGE: Estão
tentando fazer uma União Europeia, o que eu acho uma pena.
MOAZZAM BEGG: Mas há tratados que permitem que as pessoas viagem de um país a outro
sem obstáculos.
ASSANGE: Não sei... Ainda não estou convencido de que esses superestados sejam o modelo a seguir.
ASSANGE: Não sei... Ainda não estou convencido de que esses superestados sejam o modelo a seguir.
MOAZZAM BEGG: Tudo
bem. Mas a diferença importante da qual estou falando é a seguinte: o que une,
hoje, Iraque e Marrocos? A cultura e, mais importante, a língua. Chega-se a
qualquer daqueles países e fala-se árabe. E a língua é instrumento de criação de
sociedades. A Europa, por exemplo, é dividida, sobretudo, pela língua. Aqui, a
língua nos separa. No mundo árabe, essa ‘união’ já existe, é uma união
histórica. Já havia antes e...
ASSANGE: Ora, mas... Quem fala árabe, sempre falou
árabe. Qual é a novidade do califato?
MOAZZAM BEGG: A
novidade não é do califato. A novidade é da Europa, que inventou os
nacionalismos. A união árabe não parte dos nacionalismos nem de alguma reação
aos nacionalismos. O mundo árabe não conhecia o nacionalismo, até que chegou
alguém, tomou o mapa da África, traçou linhas e decidiu: aqui é Líbia, aqui é
Argélia etc. A questão hoje é que, se os árabes voltarem a encontrar algum tipo
de unidade, terão muito poder no mundo contemporâneo. E isso talvez seja o que
mais preocupa o ocidente: que haja mais uma grande potência estabelecida naquela
região do mundo, como um obstáculo imprevisto que não desejam ter.
ASSANGE: E que tipo de regime de lei vocês
conceberiam? [ASSIM QURESHI: Com
licença, um minuto...]. Se fossem Alá por um dia... Não, não estou dizendo que
deva ser fácil de fazer, nem que se deva ou não fazer. Só quero saber: se fossem
Alá por um dia, o que fariam? [risos]
ASSIM
QURESHI: Bem... Nós não usamos exatamente esses termos [risos] de referência. Mas
o Islã é um sistema normativo legal, como qualquer outro estabelecido pela
jurisprudência, como qualquer outro sistema normativo legal que há no mundo.
Portanto, há leis que temos de seguir. Em muitos aspectos surgem guerras sobre
como os islâmicos executam a lei Xaria, porque contraria o que algum sistema
legal local, em algum caso, prevê. Por exemplo, a pena de lapidação por
adultério. Os requisitos de prova são tão difíceis de cumprir – 4 testemunhas
visuais, presenciais, do ato sexual, onde tenha ocorrido. É impossível
satisfazer essa exigência de prova, a menos que se trate de alguma ‘festinha’
perversa.
ASSANGE: Mas nesse caso, se se conseguir provar, admite-se que se
execute alguém a pedradas?
ASSIM
QURESHI: Sim.
A ideia de que a pena tem de ser aplicada, sempre que o processo tenha sido sem
vícios, é legítima. Aplicar a pena significa que a lei foi considerada e usada.
Mas é impossível aplicar o critério probatório standard...
ASSANGE: E nesse caso, você estaria de acordo?
ASSIM
QURESHI: Porque, na verdade, essa situação não era prevista...
ASSANGE: Mas você estaria de acordo?
ASSIM
QURESHI: Estou
de acordo com o conceito islâmico de como praticamos os castigos, falando em
geral do que são os castigos; e sejam ou não aplicáveis.
ASSANGE: Só estou dizendo que é importante. E, em
todo o caso, já se vê a diferença entre sua opinião pessoal e a opinião da
organização Cageprisioners...
ASSIM
QURESHI: É
puramente minha opinião pessoal.
ASSANGE: Sua opinião pessoal é que a pena de morte é
aceitável?
ASSIM
QURESHI: É
aceitável, da perspectiva islâmica, como conceito. E no caso da lapidação,
também é aceitável, desde que estejam presentes e sejam considerados todos os
elementos do inquérito e da prova.
MOAZZAM BEGG: Sempre que se fala da lei islâmica Xaria, só se fala de crime e castigo,
ou do castigo [hadul?]. Só se fala das disposições normativas. As
disposições normativas não são a Xária. A Xária é a lei.
ASSANGE: O que quero saber é se há um processo legal
completo. É o que quero saber.
MOAZZAM BEGG: Nenhum de nós tem a necessária capacidade para falar sobre o modo de
vida, sobre o tema do estabelecimento do Estado, nem sobre a formulação das
regras e leis. O mais importante a considerar aqui é que, até hoje nenhum país
aplicou a lei da Xaria como lei do estado, desde a queda do Califato Otomano. Na
essência, até hoje, a discussão é absolutamente teórica; e terá de ser
desenvolvida.
ASSANGE: A ideia de voltar à época dos otomanos e ao
Califato Otomano, islâmico, onde não haverá estado, e onde a maioria das
pessoas deseje viver... Não sei, mas... Vocês concordam que não há muitos
estados nessa situação? Talvez Omã, mas não tenho certeza.
MOAZZAM BEGG: Permita-me lembrar um aspecto curioso. Quando o Califato Otomano foi
abolido, uma das primeiras vozes que o defendeu foi Mahatma Gandhi. Porque
entendia que se tratava de algo importante para a história islâmica. Por isso,
dentre outros motivos, acredito que a ideia de estabelecer-se um califato
depende, mais, provavelmente, de escolher-se outro nome, outra palavra. Poderia
ser “bloco”, Bloco Unido Muçulmano. A discussão seria mais fácil.
ASSANGE: Não
lhe parece que os tunisianos diriam, ‘ok, somos muçulmanos, estamos em Túnis,
falamos um pouco de francês, um pouco de árabe, e desejamos a autodeterminação.
E a autodeterminação é mais fácil de obter, se não nos tornarmos ‘amigos demais’
do Egito (porque é país maior, são mais numerosos)?
MOAZZAM BEGG: Não
há dúvidas. Claro. É possível que aconteça exatamente isso. Os árabes já
tentaram criar várias organizações para a união entre árabes. Por isso a união
não deverá ser árabe. Melhor se for união muçulmana – porque assim pode ncluir
os turcos, os iranianos, os paquistaneses, os indonésios. É fenômeno enorme,
massivo.
ASSANGE: Mas por que vocês tanto querem a
unidade?
MOAZZAM BEGG: Bem,
bem... Por que a Europa tanto quis a unidade? A luta pela unidade...
ASSANGE: Para
mim, a União Europeia não é objetivo europeu. É objetivo dos EUA, que queriam
criar os Estados Unidos da Europa, para combater a União Soviética. E, hoje, é
um bloco comercial.
MOAZZAM BEGG: É. A
razão para a união [dos árabes] seria a economia, claro; a defesa; e voltar a um
passado quando podíamos transitar sem obstáculos, porque éramos cidadãos dessa
terra. E a terra não estava dividida pelo princípio colonial.
ASSANGE: Eu
talvez conseguisse passaporte muçulmano... e a liberdade!
MOAZZAM BEGG: Isso
não podemos saber. Mas você, como cidadão, teria a possibilidade de viajar, como
se viaja pela União Europeia.
ASSANGE: Com
direito de trabalhar em qualquer país.
MOAZZAM BEGG: Exatamente isso.
ASSANGE: Veremos o que acontecerá. É muito, muito interessante. OK. Falemos agora
da organização de vocês, Cageprisioners. Há muitos trabalhos a fazer no
mundo. Por que vocês se dedicam a Cageprisioners [prisioneiros da jaula]?
ASSIM
QURESHI: Sou
advogado especialista em direito empresarial, mas parece que, aos poucos, passei
por mudança profunda. De tanto ver o que acontecia em Guantánamo, as listas
intermináveis de processos carregados de erros, as muitas extradições ilegais...
Todas essas coisas caracterizam o abuso da lei, com motivo bem específico. E
isso me convenceu de que tinha de trabalhar com algo que fosse contra essa
política. A organização Cageprisioners é muito importante para os
muçulmanos, como uma voz que inspira, uma voz que, esperamos, diga aos
muçulmanos que, sim, eles têm pleno direito de levantar-se para se defenderem,
para fazer algo correto, positivo, sem a impressão de que estariam fazendo
coisas erradas, ou praticando alguma espécie de crime.
MOAZZAM BEGG: No
meu caso, é óbvio. Escolhi esse trabalho, por causa da experiência pela qual
passei e que me afetou. E eu, mesmo que nada tivesse acontecido, nem por isso
seria menos afetado pelo que acontece. No meu caso, é uma coisa que se conhece
como “a síndrome do sobrevivente”: sobrevive-se a um trauma e sabe-se que
outros, na mesma situação, não sobreviveriam (e não sobreviveram). E sinto a
obrigação de lutar por eles. Sinto como um dever, não só moral e religioso, mas
um dever também, baseado na minha experiência pessoal e no meu modo de agir. Se
sei que há algo necessário, que sei fazer e que posso fazer, tenho obrigação de
fazer. E farei.
======== FIM DA ENTREVISTA ======
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