15/5/2012, James Meadway, New
Economics Forum
Traduzido
pelo pessoal da Vila Vudu
James Meadway |
Essa crise não é
grega. É crise europeia, em duas partes. Primeiro ,
o
crash
financeiro de 2008
provocou recessão global excepcionalmente severa. Combinado com os resgates dos
bancos, o
crash
levou
a aumento acentuado das dívidas e dos déficits em muitas das grandes economias –
inclusive em
economias da Eurozona.
Com
a arrecadação em queda e o desemprego subindo em 2008-9, os déficits dos
governos aumentaram. Para tapar o buraco, os governos tomaram empréstimos, o que
os endividou ainda mais. Para países da Eurozona, muitos desses empréstimos
vieram de bancos europeus. Os bancos gostaram do arranjo, porque assumiram que
seria impossível que algum país-membro da Eurozona lhes aplicasse um calote e,
assim, seriam empréstimos de baixo risco. Os governos também gostaram, porque
parecia que estivessem conseguindo financiamento barato.
Marcha contra a "austeridade" e a TROIKA |
Mas
havia um problema. Na década de existência do euro, as taxas de câmbio foram
efetivamente fixas entre os países membros, cada um em relação aos demais. Já
não havia a opção de uma moeda ser valorizada dentro da Eurozona. A Alemanha,
com baixo crescimento de produtividade, fez encolher os salários dos seus
trabalhadores – com queda da renda média real durante sete anos. Resultado: a
Alemanha tornou-se mais competitiva em relação a outros membros do euro.
Normalmente, teria acontecido um aumento na taxa de câmbio. Mas o próprio euro
impediu que acontecesse.
O que aconteceu foi
que as exportações alemãs pareceram muito baratas para países do sul da Europa.
Passaram a importar mais da Alemanha (e do norte da Europa em geral), do que
vendiam. Abriu-se um fosso no fluxo do comércio: déficits cada vez maiores no
sul, e superávits cada vez maiores no norte – e tudo isso dentro da Eurozona.
Déficits têm de ser financiados. E essa é a segunda – e crítica – parte da
crise. Para financiar os déficits, os países tomaram empréstimos, explorando o
novo sistema financeiro europeu recentemente reforçado. Para Espanha e Portugal,
esses empréstimos apareceram como dívidas privadas, ajudando a financiar uma
enorme bolha de propriedade, enquanto o aumento dos preços levava endividamento
cada vez maior. Para a Grécia, apareceram como níveis altíssimos de
endividamento público – os lares gregos pouparam, em vez de endividarem-se,
durante o
boom. Mas em todos os
casos, o total da dívida na economia começou a crescer rapidamente.
O
crash
financeiro, com
suas crescentes demandas de empréstimos, correu diretamente para esse
desequilíbrio existente. A fagulha que incendiou a crise foi a revelação, em
outubro de 2009, pelo novo governo do PASOK, de que a dívida pública grega era
muitíssimo maior do que o governo anterior divulgara. Não é crise de gastos
públicos. Espanha e Portugal acumularam superávits consideráveis, gastando menos
do que arrecadaram em impostos, até que a crise – diferente do que se via na
Alemanha e na França, que continuavam deficitárias. A Grécia gastou menos,
em proporção do
PIB , no setor público, que Alemanha ou França – apesar de
padecer evasão crônica dos impostos dos mais ricos.
Trata-se
de crise do sistema financeiro, e do próprio euro. Sem resolver os dois lados
desse pareamento perverso, a crise não terá fim.
Dois anos de
fracassos
As
grandes potências, em tentativas sucessivas para resolver a crise, fracassaram
redondamente. Seguiram um padrão definido: com os fundos de resgate, que já
chegam a €240 bilhões, destinados a permitir que o estado grego pague seus
credores, vem a insistência em medidas de austeridade cada vez mais severas. Sob
supervisão da Troika UE/BCE/FMI,
sucessivos governos gregos jogaram montanhas sempre crescentes de dinheiro nos
cofres dos credores internacionais, ao mesmo tempo em que impunham ao povo grego
sacrifícios cada vez mais pesados. O impacto sobre a sociedade foi devastador.
Para lembrar apenas um exemplo, a Grécia sempre teve o mais baixo índice de
suicídios da Europa. No último ano, o número de suicídios subiu 40%.
Os
planos da Troika jamais tiveram
qualquer possibilidade de funcionar. A austeridade é projeto que se autoderrota.
Os cortes nos gastos do governo – e fortes aumentos nos impostos – sugam
qualquer potencial de demanda que haja em qualquer economia. Se a
economia é fraca – e a grega está muito seriamente fraca – tende a enfraquecer
ainda mais, porque demanda baixa leva a vendas cada vez mais fracas, cada vez
menos gente empregada e salários cada vez menores. Fixa-se um ciclo vicioso de
declínio, como aconteceu quando os governos tentaram a mesma via, nos anos
1930s. A economia grega já encolheu 16% em cinco anos, e o desemprego já chega à
estratosfera. E o peso da dívida, em vez de diminuir, só aumenta: dos 130% do
PIB no final de 2009, já chega hoje aos 160%.
O único modo de
remover uma dívida é pagá-la ou cancelá-la. Os tais “resgates” não fazem nem uma
coisa, nem a outra. Eles simplesmente mantêm o fluxo de pagamentos, com juros,
com os gregos respondendo ao que exigem os credores. Com a economia em colapso –
resultado direto da “austeridade” – esse mecanismo foi-se tornando cada dia mais
obsceno: um país posto à míngua, morrendo de fone, mantido vivo pelo artifício
dos “resgates” e em exclusivo benefício dos credores. Não surpreende que tantos
gregos tenham votado contra os partidos da “austeridade”. Não há absolutamente
motivo algum para que algum grego aceite esse arranjo miserável.
Syriza (logotipo) |
Syriza,
a Coalizão da Esquerda Radical, emergiu vitoriosa, em segundo lugar no 1º turno
[das eleições do início de maio] e com 27% dos votos, no 2º turno [6 de maio].
Nas áreas urbanas e de classe operária, Syriza já suplantou o Pasok. A coalizão
de esquerda fala de suspender todos os pagamentos da dívida e pôr fim às medidas
de “austeridade”, como condição para aceitar participar de qualquer futuro
governo de coalizão.
As próximas
semanas
Finalmente, se começa a por
fim a dois anos de fracasso escandaloso da Troika. A situação é complexa.
Sujeito a alta incerteza para os próximos meses, o quadro parece ser o seguinte.
A tabela adiante mostra as quantias que a Grécia tem a pagar aos credores até o
final do ano.
Pagamentos
da dívida grega, 2012 (em milhões de euros)
Maio
|
Junho
|
Julho
|
Agosto
|
Setembro
|
Outubro
|
Novembr
|
Dezembr
|
11.546
|
2.991
|
3.030
|
9.676
|
1.019
|
1.171
|
85
|
2.324
|
(Fonte:
Bloomberg)
A
maior parcela inclui os €3,1bilhões devidos ao Banco Central Europeu, a serem
pagos dia 20 de agosto. Mas qualquer pagamento antes disso, que deixe de ser
feito na data prevista, caracterizará (e desencadeará) o calote.
Hoje,
é impossível para o estado grego fazer esses pagamentos e, simultaneamente,
pagar os funcionários públicos. Se saldar as dívidas nas datas previstas, o
estado grego deve continuar a receber novos fundos de resgate da União Europeia.
Até agora, a União Europeia tem insistido em que, para receber os fundos de
resgate, a Grécia terá de honrar o Memorando de Entendimento assinado ano
passado e que obriga o país a tomar medidas de austeridade muito estritas. Se
aquelas medidas não forem tomadas, os fundos não serão liberados, o que forçará
a “falência”. É possível, mas está longe de confirmado, embora a União Europeia
já dê sinais nessa direção – o primeiro-ministro de Luxemburgo e presidente do
Euro Group, Jean-Claude Juncker, na
2ª-feira – que se admitirá algum “afrouxamento”.
Se entrar em
situação falimentar, não fará sentido algum que a Grécia permaneça na zona do
euro. Os bancos internacionais, ao longo do ano passado, livraram-se dos papéis
gregos, repassados para bancos oficiais (como o Banco Central Europeu) e bancos
gregos; e fundos
hedge
“viciados” em
papeis de risco são hoje os últimos compradores que restam.
O calote não
atingirá com muita força bancos de fora da Grécia; e o Banco Central Europeu
pode aguentar as perdas. Mas os bancos que operam dentro da Grécia serão
varridos. Terão de ser recapitalizados –
stocking
up
com
novos fundos – provavelmente sob estrito controle governamental. Não será
possível recapitalizar bancos em euros, se não houver nova oferta de euros – e
nem o Banco Central Europeu nem os demais bancos terão qualquer interesse em
ofertá-los. A recapitalização em alguma nova moeda, sim, é uma possibilidade, se
o Banco Central efetivamente imprimir papel-moeda. Um colapso bancário na Grécia
pode levar rapidamente a uma fuga de euros.
As
eleições estão previstas para entre 10 e 17 de junho. A Alemanha tem repetido
que se, depois disso, a Grécia não conseguir formar um governo, ficará sem
receber a próxima parcela de ajuda da União Europeia, marcada para ser paga em
junho. Isso, também, levaria a Grécia rapidamente à falência e à porta de saída
do euro.
Mas qualquer
governo que pague o que deve nos termos e condições previstos – se se conseguir
formar algum governo – será, em todos os casos, governo vulnerável, de estado
extremamente vulnerável. Será terminalmente dependente de novas subvenções que
lhe dê a União Europeia. O déficit primário da Grécia – a diferença entre a
arrecadação e os gastos, menos os juros – equivale a 1% do PIB. Não é muito,
mas, mesmo assim, precisa ser coberto. Se esse déficit não for coberto, seja
como for, o estado, em pouco tempo, ficará sem dinheiro para pagar os
funcionários, provavelmente, já em julho próximo. Talvez
seja obrigado a emitir promissórias – prometendo pagar em euros, em data
posterior – e essas promissórias, por sua vez, começarão, de certo modo, a
assumir algumas das funções do dinheiro, passando a ser aceitas em lojas etc. Os euros
desaparecerão de circulação, tornados valiosos demais seja para trocar por
outras moedas, seja para depositar nos bancos gregos. Assim, como pode
acontecer, a Grécia sairia do euro quase por acidente, uma saída
de
facto.
São
baixas as probabilidades de, nos próximos poucos meses, todos os lados
conseguirem negociar meios para sair do imbróglio, de modo a que a Grécia possa
permanecer integrada à Eurozona. Apesar de o resultado ser ainda incerto e
depender de processos políticos, mesmo que a Grécia saia dos próximos poucos
meses e das próximas eleições ainda como membro da Eurozona, nem por isso a
crise estará resolvida. A dívida pública impor-se-á acima de qualquer outra
consideração; sem esperança realista de que seja paga e com a economia em
colapso, a questão de integrar-se ao euro, ou não, simplesmente, reaparecerá.
Contágio e
colapso
Em
teoria, é possível “conter” a Grécia. A UE e o BCE, entre eles, passaram dois
anos construindo uma série de “muros corta-fogo” para bloquear a crise e impedir
que se espalhasse para fora das fronteiras gregas, com €750 bilhões teoricamente
disponíveis. Os credores privados de antes livraram-se dos papéis gregos,
reduzindo ao mínimo a própria exposição. Em teoria, a crise na Grécia poderia
ser cercada lá mesmo.
50 centavos de Dracma (moeda grega anterior ao Euro) |
Mas essa crise não
é crise grega. Espanha, Portugal e Itália são também eles parte do mesmo
mecanismo de criação de endividamento, gerado pelas desigualdades do euro. Nos
anos do
boom
do
euro, o setor privado na Espanha e em Portugal mergulharam em gigantescas dívidas.
Um gigantesca bolha desviou o dinheiro dos financiamentos para
a propriedade imobiliária, o que fez subirem os preços – até que, num dado
momento, mais de 20% da força de trabalho espanhola estava empregada na
construção civil. As dívidas privadas incharam. Quando sobreveio o
crash, aquelas dívidas
tornaram-se impagáveis.
Os
bancos espanhóis estão à beira do colapso; o terceiro maior banco espanhol, Bankia, foi
discretamente encampado pelo estado, semana passada. A Itália, enquanto isso,
padece as dores do baixo crescimento crônico e de uma dívida do setor público de
€1,3 trilhão. Também já caiu na arapuca.
Uma
erupção na Grécia pode alastrar-se rapidamente para esses três países – em
especial, para a Espanha. Pode começar uma corrida aos bancos, se depositantes
em pânico convencerem-se de que os governos não terão como resgatar bancos
falidos e decidirem sacar o dinheiro depositado. Ou o mercado de ações
convencer-se-á de que nas economias mais endividadas os grandes bancos quebrarão
sem que os governos possam salvá-los, o que fará subir as taxas de juro e
obrigará também os estados a buscar resgate. Ou investidores privados e
especuladores, convencidos de que esses estados não têm como garantir os
próprios bancos, tratarão de levar seus capitais para outros pontos do mundo, o
que implica fuga de capitais e colapso dos bancos.
Ou, de fato, alguma
combinação dessas três possibilidades. As taxas de juro cobradas sobre os papeis
dos governos espanhol e italiano já começaram a subir muito, com os corretores
começando a temer os efeitos do colapso geral. A agência Fitch, de análise de
riscos, anunciou que rebaixará todos os países-membros do euro, se a Grécia sair
da Eurozona. As “portas corta-fogo” da União Europeia, o temporário Instrumento
Europeu de Estabilidade Financeira [orig.
European Financial
Stability Facility] e o permanente
Mecanismo Europeu de Estabilidade [orig.
European Stability
Mechanism], parecem capazes
de conter a enxurrada – pelo menos, no papel. Na prática, contam, não com fundos
reais, mas só com a promessa, dos membros signatários, de que pagarão, se for
necessário. Ter em caixa uma promissória não é o mesmo que ter dinheiro em caixa
– sobretudo se os que prometeram pagar, como a Espanha, também terão de ser
resgatados. Ambos, o instrumento e o mecanismo podem acabar sendo detonados na
conflagração geral. Há riscos significativos de que sobrevenha uma segunda e
severa recessão.
Os próximos
passos
Há duas trilhas
principais pelas quais se sai de um
crash. Uma é esforçar-se
o mais possível para manter-se ligados às formas antigas de trabalhar. É a
trilha que a Troika escolheu. Não
funcionou, até agora; e jamais funcionará.
A
outra é impor ruptura total com o passado que tenha levado ao fracasso. A
coligação Syriza está absolutamente certa quando insiste no cancelamento de
qualquer novo pagamento da dívida e em que se esqueçam as tais metas de
“austeridade”. Nenhuma dessas ideias jamais trouxe qualquer benefício aos gregos
comuns, ou à sociedade europeia em geral.
Syriza também
acerta ao propor modalidades não ortodoxas de financiamento, como os empréstimos
compulsórios, dos que possam emprestar, com juros fixados em níveis baixos.
Para impedir o contágio e conter a crise financeira, é
absolutamente necessário impor controles sobre o capital – restrições ao livre
movimento do capital, diretas ou indiretas, para impedir que o pânico se
alastre. Atualmente, até o FMI já aceita que essas medidas sejam eficazes em
momentos de crise. Os ricos têm de ser taxados de modo efetivo para cobrir
custos; e os bancos têm de ser administrados para atender as necessidades e
interesses da sociedade, não do lucro privado.
Em outras palavras,
os passos mais urgentemente necessários hoje são os que mais afastem a Grécia,
de seu velho sistema econômico falido. O movimento contra a “austeridade” cresce
em toda a Europa.
A Grécia pode estar bem próxima de começar a empreender esses
primeiros passos que a salvarão do naufrágio. Se se constituir ali um governo
novo e firmemente anti-“austeridade”, será atacado por todos os lados e sofrerá
pressão terrível. Nossa solidariedade é crucial.
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