Publicado
em 17/05/2012
Recife
(PE) - A
vontade que se tem é a de escrever: por baixo de ondas de infâmia e sangue, a
presidenta Dilma instalou a Comissão da Verdade. E temos essa vontade porque a
vemos em um mar que se abre, pronto a tragá-la e a envolver também os
brasileiros mutilados, perseguidos e assassinados sob a ditadura de 1964. Mas
esse mar, essa conjuração de elementos, que outra coisa não é a não ser a
secular opressão sobre o povo, nos acode também pela memória da tragédia humana
ocorrida a partir do golpe.
Não
há espaço nesta coluna, não há espaço em mil colunas para falar de Ivanovitch,
de Eremias Delizoicov, de Soledad Barrett, de Jarbas Marques, de jovens mortos,
de jovens enlouquecidos, de jovens heróicos, de dramas de consciência que
sobrevivem em peles que são uma fantasia de macabro carnaval. Não há nem mesmo
espaço para cantar, como um poeta magnífico faria, a coragem de dona Elzita, mãe
de Fernando Santa Cruz, nesta carta de 1975 para Armando Falcão, mais conhecido
pelo codinome de Ministro da Justiça:
“Que
clandestinidade seria esta que, repentinamente, transformaria um filho
respeitoso, carinhoso e digno em um ser cruel e desumano, que desprezaria a dor
de sua velha mãe, a aflição de sua jovem esposa e o carinho de seu filho muito
amado?...Espero que não se dê por esgotado este episódio, mas que seja
esclarecido o que realmente aconteceu ao meu filho para que possamos sair deste
imenso sofrimento que nos encontramos. Nada peço ao Sr. para meu filho a não ser
os esclarecimentos, que tenho direito, sobre o seu paradeiro, e
justiça!”.
O
leitor desculpe o tom solene desta coluna. É que a solenidade vem do entre aspas
desses destinos. Mas num esforço, se descermos o nível do assalto da altura
dessa história oculta, se descermos aos dados objetivos e técnicos da
informação, devemos dizer que as estatísticas oficiais muito se enganam, quando
contabilizam entre 400 e 500 militantes mortos pelos militares, ou, num esforço
cínico, desaparecidos. As estatísticas nada falam dos homens e mulheres sem
cidadania, mas que a buscavam até para comer, como os camponeses do Nordeste. Em
Pernambuco, por exemplo, houve um quase genocídio de homens do campo, e deles
quase nada se diz. Assim como eles, todos os trabalhadores, que não estavam
filiados a partidos clandestinos, estão sem registro de suas
execuções.
As
estatísticas nada falam tampouco, e dessa omissão se valem os militares, quando
ironizam a quantidade de anistiados em comparação com os livros sobre vítimas da
ditadura, as estatísticas silenciam sobre o clima de terror e perseguição que
fez brasileiros interromperem seus cursos, empregos e pesquisa. Se os registros
dessa caça aos democratas contarem, aparecerão mais que centenas, milhares. E se
se contabiliza o dano a toda uma geração, pela queda vertical da qualidade do
ensino, do avanço do pensamento social, que em 1964 virou coisa de comunista,
como se os comunistas não fossem uma instância legítima de ser, então os
atingidos são milhões na ditadura.
Na
presidenta que ontem instalou a Comissão da Verdade reside o conflito do sonho
socialista da juventude e o presente possível, de acordos políticos no limite do
suportável, de uma democracia conservadora. Dilma bem sabe o que é mais
insuportável, como nesta entrevista a Luiz Maklouf em
2003:
“Tinha
um menino da ALN que chamava “Mister X”. Eu o vi completamente destruído. Não
sei o que foi feito dele. Nunca vou esquecer o quadro em que ele estava.
Primeiro, eu não queria que meus companheiros estivessem numa situação daquelas.
Segundo, eu tinha medo que algum deles morresse. Terceiro, porque teve um dia
que eu tive uma hemorragia muito grande, foi o dia em que eu estive pior.
Hemorragia, mesmo, que nem menstruação. Eles tiveram que me levar para o
Hospital Central do Exército. Encontrei uma menina da ALN. Ela disse: “Pula um
pouco no quarto para a hemorragia não parar e você não ter que voltar”... Os
militares nos cercaram, desmantelaram, e uma parte mataram. Foi isso que eles
fizeram conosco. Eles isolaram a gente e mataram”.
Os
jornais hoje dizem que a presidenta ontem chorou. E informam essa emoção em nova
forma de dizer sem nada dizer, porque nada falam do terror, do poder absoluto
sobre vidas e pensamento de pessoas em um tempo que não está
morto.
Lá
em cima, escrevi que a presidenta Dilma estava sob as ondas de um mar aberto.
Mas na verdade, devemos dizer: ela está no furacão. Ainda que em fenômeno
diverso, ela está na tempestade. E desta vez, com um apoio mais amplo que
naquele tempo, maldito tempo, do sofrimento em silêncio. Aquele que a fazia
escolher entre voltar à tortura ou pular para ser mais volumosa a sua
hemorragia.
Enviado por Direto
da Redação
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Registre seus comentários com seu nome ou apelido. Não utilize o anonimato. Não serão permitidos comentários com "links" ou que contenham o símbolo @.