Traduzido
pelo pessoal da Vila
Vudu
“Países do sul
defendem a UNCTAD, enquanto o ‘norte’ quer implantar uma ‘cadeia global de
suprimento’ que pode paralisar os países menores”.
Vijay
Prashad é professor de
estudos internacionais no Trinity College. Dentre outros livros, é autor de The Darker Nations: A People's
History of the Third World e Arab Spring, Libyan Winter. Publica
regularmente em Asia Times Online, Frontline magazine e
Counterpunch.
PAUL JAY, editor-chefe,
TRNN: Bem-vindos ao The Real News Network. Sou
Paul Jay, em Washington.
No
final de abril, apresentamos a vocês um programa sobre a Conferência das Nações
Unidas para Comércio e Desenvolvimento reunida em Doha [XIII Session of the
United Nations Conference on Trade and Development (UNCTAD XIII), 21-26/4/2012,
Doha, Qatar] e a disputa em curso entre os países BRICS – Brasil, Rússia, Índia,
China e África do Sul e alguns outros países em desenvolvimento – e o “Norte”,
entendido como Europa e EUA, em torno da questão de se a UNCTAD, essa
organização da ONU e importante centro de políticas de desenvolvimento e análise
econômica, dedicará parte de seus esforços à reforma das finanças, associando a
luta global contra a pobreza à questão da especulação e do capital parasitário.
(Assista ao primeiro programa dessa série postado
dia 26/4/2012)
Agora,
já podemos avaliar o que houve depois daquela conferência. Para continuar a
discussão, está conosco novamente o professor Vijay Prashad. Mais uma vez
obrigado, Vijay, por aceitar nosso convite.
VIJAY PRASHAD: O prazer é meu.
JAY: OK, retomemos a história. Ao final da
Conferência, houve uma declaração, uma grande luta. O que, afinal, havia naquela
declaração? E o que acontecerá daqui em diante?
PRASHAD: Vivemos um momento interessante,
porque a disputa “pela UNCTAD”, pode-se dizer, continuou até às 5h da tarde do
último dia da conferência. Até a cerimônia de encerramento teve de ser adiada,
porque a negociação em torno do que constaria daquela declaração estendeu-se
para muito depois do previsto. A declaração é chamada Doha Mandate, e, em
vários sentidos só com muito otimismo se pode chamar de “declaração”; melhor
nome seria “concessões de Doha”. Várias sentenças redigidas pelo sul global –
suas frases preferidas – foram incluídas. Houve um desencontro de posturas
ideológicas no documento final.
Por
exemplo: o sul global insistia em que se falasse de um chamado “estado
capacitante” [orig. enabling state] – em que o estado pode assumir o
papel de promover o desenvolvimento econômico. E o norte preferia a fórmula de
um “estado eficiente” – , caso em que o estado não teria papel tão
destacado na promoção do desenvolvimento em nome dos cidadãos, mas seria
eficiente no papel de ajudar o capital privado a tomar decisões. O de sempre,
como você sabe: sociedade e economia, para eles, têm de ser organizadas.
No texto do Mandate
apareceram as duas expressões e frases: “estado capacitante” e “estado
eficiente” [1].
Alguns
ainda veem a conferência de Doha, por tudo isso, como ‘um empate’. Outros, por
causa do poder desproporcionalmente maior do norte sobre o sul, veem o resultado
como uma vitória do sul, porque preservou o Mandate da UNCTAD e permitiu
que, para os próximos anos, a organização continue a pesquisar as questões da
finança, do desenvolvimento econômico. Ao mesmo tempo, pode-se dizer que a
conferência foi centrada no povo, mais do que centrada nas finanças. Quero
dizer: como não se alteraram as linhas que definem a UNCTAD, há gente que diz
que a conferência foi grande vitória do sul, e que levará a outras conferências
esse ano, principalmente Los Cabos, onde o G-20 reúne-se em meados de junho,
pouco depois, portanto, da reunião do grupo RIO+20 no Rio de Janeiro, quando,
outra vez, temas da mudança climática e da finança estarão no centro do debate.
[Falam simultaneamente].
JAY: Então, só para relembrar: adiante,
abaixo desse vídeo, vocês encontram algumas das entrevistas que publicamos, com
Heiner Flassbeck, que dirigiu a seção econômica da UNCTAD. Ali vocês verão por
que vários países do ‘norte’ bem gostariam de suspender o trabalho de Flassbech,
porque suas análises, seu discurso, é bem claramente divergente, oposto, às
economias neoliberais. Um dos relatórios que publicaram fala de “aproxima-se do
limite” [2], e numa das entrevistas que fizemos
com Flassbeck, ele diz que a Europa já ultrapassou o limite, em termos de andar
na direção da recessão. Quero dizer: a UNCTAD é uma fonte de trabalho
intelectual que evidentemente tem importância, ou não teriam disputado tão
furiosamente o resultado da Conferência. Afinal... Parece-me que a UNCTAD já se
converteu em uma plataforma a mais sobre a qual se trava essa espécie de disputa
global em torno do papel do Estado. Mas... Prossiga, Vijay. Em que pé estamos
agora?
PRASHAD: Examine a reunião da UNCTAD 2012.
Havia dois outros pontos também muito importantes. O primeiro é que a UNCTAD,
desde os anos 1980s, quando o sul global foi enfraquecido pela crise da dívida,
a UNCTAD assumiu um novo papel. Tornou-se, em certo sentido, emissária do
investimento estrangeiro direto, e um lugar onde os países do mundo em
desenvolvimento encontravam apoio técnico, que os ajudava a encontrar
investimentos estrangeiros diretos, capital de investimento, etc..
Quer
dizer: uma parte da UNCTAD produzia críticas ferozes à economia neoliberal. Uma
parte da UNCTAD, você sabe, a divisão chefiada por Flassbeck, por exemplo,
produzia relatórios críticos do modo pelo qual a finança, sobretudo, chegara a
dominar toda a vida social. Outra parte prometia ajudar o capital a investir no
sul global. Quer dizer: em Doha havia um desequilíbrio, que tem havido na UNCTAD
já por longo período. E essa questão também surgiu lá: que tipo de entidade de
duas cabeças é a UNCTAD?
E
uma terceira coisa, também muito importante: uma avant-première do resto
dos debates do verão entre norte e sul. Essa terceira discussão travou-se em
torno da chamada “narrativa do novo comércio”. Na UNCTAD, o presidente da
Organização Mundial do Comércio, Pascal Lamy, falou muito sobre essa narrativa
do novo comércio. O que estavam querendo sugerir é que, em vez de ver as
negociações comerciais como, como se diz, uma negociação de toma-lá-dá-cá, como,
por exemplo, uma negociação comercial entre o Mali e a França; o Mali diz,
escutem, eis as coisas de que não abrimos mão, não podemos vender nossos preços
abaixo desses... Quero dizer, os dois lados de fato negociam. Claro: vez ou
outra essa negociação pode ser hostil; vez ou outra, países que produzem,
digamos, petróleo, unem-se num cartel como a OPEC, e têm relacionamento hostil
com o norte, sobre o preço a ser fixado para a mercadoria.
Em
vez disso, disse Pascal Lamy, temos de ter uma nova forma de comércio
internacional menos agressiva: temos de compreender a narrativa do novo comércio
como parte dessa cadeia de suprimentos, porque cada país do mundo está ligado à
cadeia de suprimentos. De fato, não há contradição entre o norte e o sul; já não
há antagonismos no mundo. Todos têm de encontrar o próprio lugar. De certo modo,
é uma versão, do século 21, para a teoria das vantagens comparativas de David
Ricardo.
Na
reunião de Doha, Pascal Lamy apresentou essa ideia. Como você sabe, foi apoiado
pela ministra das Finanças da Costa Rica. E ela, aliás, trabalhou na divisão de
manufaturas da Organização Mundial do Comércio, antes de voltar à Costa Rica e
tornar-se ministra das Finanças. E, agora, fez firme defesa dessa nova
narrativa do comércio: a teoria da cadeia de suprimentos para
comerciar.
JAY: Mas... Sim, é muito bom, mas... Já ouvimos essa história no início do século 20, sobre o que o capitalismo global faria, que uniria todos. E resultou na 1ª. Guerra Mundial. Essa história é velha.
JAY: Mas... Sim, é muito bom, mas... Já ouvimos essa história no início do século 20, sobre o que o capitalismo global faria, que uniria todos. E resultou na 1ª. Guerra Mundial. Essa história é velha.
PRASHAD: Sim, é velha. Como eu já disse, é
dos tempos de David Ricardo, do tempo da constituição da Economia como
disciplina. Mas na reunião de Doha, o ministro do Comércio sul-africano, Rob
Davies, contestou muito veementemente a história. Disse que... “Calma. O que
vocês estão dizendo é o motivo pelo qual a UNCTAD foi criada. E o primeiro
secretário-geral da UNCTAD, Raúl Prebisch, criticou essa teoria de Ricardo”.
JAY: Vamos explicar aos que assistem a
esse programa, sobre o que estamos falando. Quando se fala de “cadeia global de
suprimentos”, é como, digamos, Cuba produzir açúcar e outro produzir frutas, e
outro vender o suco industrializado. Ou então, você produz bens
industrializados, usando trabalho barato, e é proprietário do copyright.
PRASHAD: Vou explicar de um jeito pior. A
Malásia descobre a borracha. Cingapura produzirá alguns tipos de equipamento
técnico. As partes serão montadas em Shenzhen na China. Mas
a ideia foi concebida nos EUA e, por causa das leis de propriedade
internacional, os EUA protegerão a própria habilidade para fazer dinheiro a
partir do trabalho de gente que está longe dos EUA. É ruim para os trabalhadores
nos EUA, porque implica que ninguém precisa criar empregos nos EUA; e é
assustador para as pessoas que vivem na Malásia ou em Shenzhen, porque eles só
produzem uma mínima parte do lucro da venda do que eles produzem. O grosso do
lucro irá para o chamado “detentor do direito de propriedade intelectual”, que
será quase sempre uma grande corporação transnacional com sede no norte; e o
juro será distribuído para advogados, banqueiros, etc., cujo trabalho é proteger
o copyright e preservar a riqueza acumulada pela tal empresa
transnacional. O que Rob Davies disse é que isso é um tipo de neocolonialismo.
Que não nos interessa.
E
agora, quando todos se preparam para a reunião do G-20 em Los Cabos (México,
18-19/6/2012), a agenda desse encontro “vazou”.
A
agenda foi produzida por Pascal Lamy da Organização Mundial do Comércio e por
Ángel Gurría, da OECD [Organisation for Economic Co-operation and
Development, você sabe, aquele think tank do norte. Fizeram a agenda,
uma agenda que, basicamente, diz que todos lá têm de falar sobre a nova
narrativa do comércio: ‘Temos de falar das cadeias de suprimentos; não podemos,
de modo algum, falar, sobre subsídios para a agricultura no norte; não podemos
falar sobre qualquer daqueles assuntos que emperram sempre a chamada “Rodada de
Doha” das negociações da OMC. Temos de varrer para o lixo todas as contradições
entre o norte e o sul. Temos já essa nova narrativa e queremos expor... E, em
seguida, queremos que o G-20, reunido em Los Cabos ratifique tudo.
JAY: E isso afetará sobretudo os
pequenos países. Quero dizer: os grandes países... China, Índia, Brasil, esses
países não serão parte de alguma cadeia global de suprimentos. São países que
têm economia e produção muito complexas, multifacetadas. Ou seja: a tal cadeia
de suprimentos só tem a ver com países pequenos, bem pequenos, não
é?
PRASHAD: Os países pequenos, esses, serão
apagados, obliterados do mundo econômico global. De fato, a Costa Rica, cuja
ministra do comércio mostrou-se tão favorável às cadeias de suprimento, é país
que está em certo sentido isolado desses problemas que os pequenos países
enfrentam, porque fizeram um movimento realmente inteligente, na direção do
ecoturismo; e graças ao relacionamento político muito próximo que mantêm com os
EUA estão também entrando numa pequena fatia da indústria de microships.
A Costa Rica portanto não é exemplo que se possa generalizar. O exemplo que faz
sentido pode ser, por exemplo, digamos, o Camboja, ou se se olha, digamos, para
o Benin e vários outros países. O exemplo costarriquenho não se aplica àqueles
casos. É história muito específica. Entraram nesse debate, em certo sentido,
porque lhes interessa negar a própria especificidade e falar como se o caso
deles pudesse ser apresentado como universal. Não é possível para os países da
África Ocidental adotar o mesmo ponto de vista, que só faz sentido na história
da Costa Rica. Mas essa é uma luta política.
JAY: As questões a discutir aqui não são
que China, Rússia, Índia, Brasil... O Brasil talvez seja caso à parte, mas não
muito. O caso é que esses países não vivem hoje em economias neoliberais.
Esses países não querem a dominação dos EUA nesse sistema
global neoliberal. Mas não que sejam contra, por conta de algum princípio, ou
coisa semelhante.
PRASHAD: Não, não. Quero dizer, aí está a
razão pela qual esse caso da chamada “nova narrativa do comércio” tanto os
perturba: porque é algo que incomoda esses países já há mais de 20 anos: a
questão dos direitos de propriedade intelectual.
Se
você olha a pirâmide dos lucros... A verdade é que é uma pirâmide invertida de
lucro. O país onde as empresas controlam a propriedade intelectual, esse sim,
pode obter todas as vantagens da cadeia global de suprimentos. E pode, você
sabe, por causa do chamado “valor agregado”, extrair o máximo da venda de
manufaturas. Quem enriquece não é o trabalhador que fabrica o tênis Nike na
Indonésia, nem o dinheiro fica na Indonésia. Quem enriquece é a empresa Nike nos
EUA – que saqueia a Indonésia e o trabalhador indonésio e recebe os lucros...
Mesmo que a empresa Nike de fato não fabrique nem um pé de sapato. Nike é uma
marca: Nike não fabrica sapatos. O caso é que o lucro está, precisamente, na
seção de design e marca da cadeia global de suprimentos.
Por
isso países como Brasil, Índia, China, esses países estão lutando para levar
suas próprias marcas ao mercado, seus próprios designs para o mercado, e
são impedidos de fazê-lo, por um regime global ou internacional de propriedade
intelectual que evita que esses países [que têm projetos e marcas e
design a promover] consigam mostrar o que têm.
Um
dos truques nos anos 1980s que mais perturbam esses países foi uma mudança na
propriedade intelectual: você já não protege por copyright o processo
pelo qual você produz, digamos, sapatos de tênis; agora, o copyright
protege o próprio sapato. Implica que ninguém pode pensar em inventar algum novo
meio para produzir sapato, ou alguma droga, digamos, um antirretroviral, porque
o que está coberto pelo copyright não é o processo, mas o produto, o
próprio antirretroviral. Isso mantêm países como China, Índia e Brasil, de mãos
atadas. Esse é um dos aspectos da narrativa da cadeia global de suprimentos.
JAY: Sim, pode ser apenas um aspecto,
mas suficiente para alterar todo o complexo das relações da economia global.
PRASHAD: Exatamente. E, precisamente por
isso, esses países, me parece, não se deixarão degolar, como cordeiros,
em Los Cabos.
Será hora de ver que tipo de concessão estarão dispostos a
fazer/a exigir, para aceitar essa nova narrativa do comércio. Mas, se se
considera o que aconteceu em Doha, parece que não irão a Los Cabos, dias 18-19
de junho, para aceitar e ratificar essa nova narrativa do comércio global – a
qual, como já dissemos, não passa, mesmo, da velha narrativa de Ricardo,
proposta com palavras novas.
JAY: Muito obrigado, Vijay, por ter-nos
recebido
[fim da entrevista]
Nota
explicativa
*UNCTAD (página em
português) é a sigla em inglês para
Conferência das Nações Unidas para Comércio e Desenvolvimento.
A UNCTAD
(página oficial em inglês) é o órgão do sistema das Nações Unidas que busca
discutir e promover o desenvolvimento econômico por meio do incremento ao
comércio mundial. Trata-se de um foro intergovernamental estabelecido em 1964
com o objetivo de dar auxílio técnico aos países em desenvolvimento para
integrarem-se ao sistema de comércio internacional.
Notas
dos tradutores
[1]
A UNCTAD diz, em press-release
de
26/4/2012, que:
“O
documento chamado Mandate será acompanhado de uma declaração política,
que receberá o título de “Doha Manar” [o farol de Doha, em árabe], no
qual se apoiam fortemente os esforços da UNCTAD para promover o desenvolvimento
inclusivo, mediante o comércio e mudança estruturais ao longo dos próximos
quatro anos”. “Reconhecemos a necessidade de fazer a nossa vida econômica comum
andar mais decididamente no rumo de mudanças estruturais progressivas, com
crescimento mais produtivo e inclusivo, com crescimento e desenvolvimento
sustentáveis e ação mais efetiva para favorecer inclusão social ampla e contrato
social novo e mais robusto” – lê-se em Doha Manar.
(...)
O Doha Manar também reconhece a significação econômica dos protestos
revolucionários ao longo de 2011:
“Os ventos da mudança que sopram
em muitas partes do mundo hoje atestam o desejo, entre as populações, de
políticas responsáveis, em que se vejam abordagens participativas e inclusivas
nas questões do desenvolvimento, e que visem a garantir prosperidade para
todos”.
[2] 21/4/2012, FLASSBECK, Heiner. Transcrição em
inglês em: “German
Mercantilism and the Failure of the Eurozone”. Vídeo a
seguir:
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