domingo, 16 de outubro de 2011

Em Wall Street

Keith Gessen

Keith Gessen, London Review of Books, vol. 33, n. 20, p. 29, 20/10/2011
Traduzido pelo Coletivo da Vila Vudu

Quando os manifestantes começaram a ocupar Wall Street, eu estava ocupado (mais ou menos) e, para ser sincero, relutante. Detesto essas coisas. Detesto ficar parado em pé no mesmo lugar, cercado por policiais, gritando slogans tolos. “Sem justiça, não há paz”. Será mesmo? “De quem é a rua? A rua é nossa”. Ora, é e não é. A futilidade também é meio frustrante. Participei das manifestações contra o bombardeio do Kosovo; o bombardeio de Belgrado; a invasão do Afeganistão; a invasão do Iraque. Gostaria que a lista fosse maior, mas, parece, só me decido a sair de casa contra os F-15s. Não, não é verdade. Também saí e protestei à frente da Convenção nacional do Partido Democrata em 2000. Para mim, Gore era centrista demais. Aquela, pelo menos, nós ganhamos. 

Na Rússia, onde também protestei contra várias coisas, sempre me senti diferente – há algo em estar ali, quase sempre no frio, mostrando a cara à frente da Polícia russa; mostrando que você não tem medo deles. Sempre parecia que valia a pena. Não sei se valia ou não. Sempre havia muito mais policiais que manifestantes. Sempre éramos menos do que gostaríamos de ser. No inverno, quando os nacionalistas das torcidas de futebol ocuparam Manezh Square, sob os muros do Kremlin, foi diferente. Eram muitos, muitos mais que a Polícia. Só não derrotaram a Polícia, porque não quiseram. Se, naquela noite, as torcidas de futebol tivessem decidido ocupar o Kremlin, provavelmente teriam ocupado. (Em vez disso, atacaram não eslavos que passavam por ali.) Aquela multidão fez todos os demais protestos de que participei em Moscou nos últimos quatro anos parecerem tímidos, frágeis, patéticos.

Ontem, na Praça Foley[1], havia, no mínimo, dez mil pessoas. Fiquei sem ar, boquiaberto. As fachadas neoclássicas dos cinco prédios da Justiça em volta da praça. Normalmente, dão à praça um ar de desolação, como se você tivesse sido jogado em Washington DC. Mas com toda aquela gente... parecia a Europa. Muitos sindicalistas de meia idade, vindos de todos os cantos da cidade; muita gente também, de ar interessado, sério e também (minha opinião) gente frívola, mais ou menos da minha idade, dessa gente que se vê andando pela cidade. Camaradas, é aqui que a coisa acontece.

Fazia tempo que não lembrava, mas voltou-me à cabeça um protesto do qual não participamos. Lembro só das imagens de televisão: um grupo de jovens Republicanos, homens e mulheres, ternos e terninhos de trabalho, cantando à frente de uma cantina escolar (acho que era) onde, na Flórida, acontecia a recontagem dos votos [reeleição de Bush], exigindo que a recontagem fosse suspensa.

O Wall Street Journal noticiou o evento, alguns dias depois, como “levante burguês” espontâneo. De fato, não passavam de assessores parlamentares do Partido Republicano, mandados de avião para a Flórida, para protestar. Mas e nós? Onde estávamos? Em casa, sentados, enquanto os burgueses lá estavam, mobilizados, dando seu recado: se os votos fossem contados e o resultado da eleição fosse revertido, seria a guera civil.

Ontem, a multidão demorou duas horas para andar seis quarteirões até o Zuccotti Park, onde algo entre 50 e 500 pessoas – estudantes, anarquistas, anarquistas que estudam – vivem acampados há três semanas. A primeira impressão do parque é que a população de outro parque – Washington Square Park – se transferira para lá, com toda a mudança. Mas era a Praça Washington Square em armas. Do lado leste do parque, um círculo de pessoas batia tambor. Na Praça Washington Square, seria a trilha sonora de sua juventude perdida. Ali, eram tambores de guerra. Boa parte do Zuccotti Park foi ocupado por sacos de dormir, muitos deles cobertos com lona azul, para protegê-los da chuva. (É ilegal montar barracas sem autorização em New York City, para manter os sem tetos afastados do centro da cidade, e, agora, para impedir que os manifestantes montem o seu cartaz ideal.) No centro do parque está montado uma espécie de bufê, com pessoas andando em fila e pilhas de pizzas doadas e macarrão, servido nos pratos. Ninguém parecia interessado nas maçãs disponíveis numa grande caixa. Ali perto, o centro de imprensa e mídia – cerca de doze pessoas reunidas em roda, cada um com seu laptop, e um pequeno gerador com vários cabos interconectados e wifi.

O parque ocupado fica logo depois de uma esquina de Wall Street; é praticamente do outro lado da rua, à frente do gigantesco canteiro de obras do Marco Zero. A nova sede do banco Goldman Sachs fica logo ao lado do poço das fundações do Marco Zero. Uma loja de Brooks Brothers de um lado do parque, e outra, de Men’s Wearhouse, do outro lado. Os banqueiros tiveram de atravessar o parque. Um acampado, jovem petroleiro do Alasca, contou-me que praticamente não dormira na noite anterior, primeiro porque os ocupantes faziam muito barulho e, depois, quando resolveram dormir, começaram os banqueiros, a passar por cima de seu saco de dormir, desde as 5h30 da madrugada. Se fossem pela própria Wall Street, logo veriam que todas as medidas de segurança implantadas depois do 11/9 foram reforçadas por vários bloqueios da Polícia, para impedir o crescimento natural da ocupação, que levaria um oceano de manifestantes e seus sacos de dormir até a porta do prédio da Bolsa de Valores de New York.

Não sei se os banqueiros têm-se sentido mais desconfortáveis em New York nas últimas semanas, que nos últimos anos, mas é possível. Uma coisa é ser espinafrado pelo culto e barbudo Paul Krugman ou pelo mau-humorado Barney Frank; outra coisa, bem diferente, é ser mandado calar o bico (“O dinheiro fala... demais!”, lê-se num cartaz), por uma coleção sortida e sempre crescente de jovens saudáveis e bonitos. Já é bom começo, para os banqueiros pararem de desgraçar algumas das cabeças mais brilhantes dessa geração. Que Goldman Sachs construa a nova sede, mas não tenha coragem de pôr as palavras “Goldman” ou “Sachs” na fachada do n. 200 de West Street, isso sim, também já é alguma coisa.

Manhattan foi construída do sul para o norte, e o distrito financeiro, no extremo sul da ilha, é a parte mais antiga da cidade. A igreja Trinity, ao lado do Zuccotti Park, é a mais antiga da cidade, como o cemitério que há ali ao lado. (Onde está enterrado Alexander Hamilton, fundador do Federal Reserve.) Há algo de grandioso, embora assustador, no distrito financeiro. As fotos famosas de Paul Strand, de 1915[2], de banqueiros andando para o trabalho de manhã cedo, transformados em anões, pela arquitetura de proporções tão gigantescas que parece ter sido construída para outra espécie, muito maior que nós, ainda captura bem o clima, sobretudo depois que o sino do encerramento das operações na Bolsa já pôs para fora os trabalhadores e meteu-os no trem para New Jersey. Ninguém vem passear aqui; aqui, nada acontece. Até que aconteceu.

Anteontem, dia da grande marcha que partiu da Praça Foley, partimos antes de um pequeno grupo de ativistas que andou para o centro e tentou atravessar uma barreira da polícia para chegar à própria Wall Street. Vi pelo YouTube, na mesma noite: um policial girando o cassetete como se fosse taco de baseball, fazendo-o descer sobre carne humana. No dia seguinte, começaram as ocupações dos centros cívicos por todo o país na Philadelphia, Austin, Washington, Los Angeles – até em Boston.

Voltei ao Zuccotti Park aquela noite, para a Assembleia Geral diária. Esperava discussão tediosa sobre a ideologia e as demandas da ocupação – ressuscitar a lei Glass-Steagall Act? – mas logo vi, deliciado, que a pauta incluía, quase exclusivamente, questões de logística. Cerca de 80 pessoas ouviam e repetiam (é o “microfone do povo”) os relatórios de vários ‘comitês’ altamente práticos. 

O rapaz da internet relatou que já estava quase pronto um novo website e também propôs que se votasse se a ala oeste do parque (a roda dos tambores) deveria receber uma conexão de internet; o comitê Legal relatou que muitos advogados haviam informado que estavam vindo; que, por isso, o comitê Legal seria reorganizado em vários subcomitês. Relações Públicas pediu que, fosse quem fosse o sujeito que andava fazendo telefonemas de críticas à Associated Press, que parasse imediatamente. “Nosso objetivo não é atacar a imprensa. Nosso objetivo é manipular a imprensa, para que divulgue nossa mensagem para todo o planeta”. (Disse também que quem tivesse planos de ações contra a imprensa fizesse contato com o comitê, para discussão e assessoramento). O Comitê de Arte e Cultura anunciou que “a poesia da Revolução tem de ser inesquecível”, informou sobre show artístico que estava sendo organizado e prometeu uma grande surpresa para depois da Assembleia Geral – como depois se viu, o rapper Talib Kweli cantou para todos. O comitê de Relações Comunitárias apresentou relatório sóbrio, mas otimista: haviam participado de reuniões da comunidade local e ouvido as preocupações dos moradores da área – disseram que, no 11/9, a vida daquela região foi terrivelmente abalada. E que, agora, outra vez, a vida deles está sendo terrivelmente abalada. Os altos prédios que cercam o parque Zuccotti criam um corredor de eco, e alguns dos bloqueios implantados pela Polícia para impedir a passagem dos manifestantes até a Wall Street também impedem que os moradores usem as calçadas diariamente. Por enquanto, relataram um rapaz e uma moça do comitê de Relações Comunitárias, os moradores decidiram não apresentar queixa contra os manifestantes – mas o comitê de Relações Comunitárias destacou a importância de os ocupantes continuarem a ser muito cordiais com os moradores da área. Sem o apoio da população residente local, a ocupação pisará sobre gelo muito mais fino. É claro que os ocupantes só podem exigir ficar onde estão: no nosso escritório em Wall Street. Que outras ocupações façam outras demandas. O objetivo da primeira ocupação é permanecer onde estamos.

Gostei muito do relatório do comitê Sanitário, cujas linhas, atentamente repetidas duas vezes pelos manifestantes, para que todos ouvissem – o “microfone do povo” – soou como a mais perfeita agenda de limpeza e organização popular que jamais ouvi. “Amanhã”, disse a moça (“amanhã” repetiam os das primeiras filas; “amanhã”, repetiam novamente os das filas de trás, no microfone do povo), “vamos limpar toda a área. Quem estiver dormindo aqui, deve limpar e arrumar suas coisas até o meio dia (“meio dia”, “meio dia”, pelo microfone do povo). Se quando passarmos para recolher, os papelões e a sujeira de cada um já estiverem reunidos, será ótimo”.




Notas dos tradutores

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