quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Ritual na revolução?


Tarak Barkawi
6/10/2011, Tarak Barkawi, Al-Jazeera, Qatar
Traduzidopelo pessoal da Vila Vudu


A insistência no ocidente sobre as “mídias sociais” e a Primavera Árabe está ficando insuportável. É como se nunca tivesse havido revoluções e protesto político efetivos antes do Facebook e da telefonia móvel!

O Facebook, p.ex., tem sido uma das muitas ferramentas utilizadas para mobilizar as massas durante a primavera árabe; no entanto foi a união das pessoas que forneceu a força para protestar, não só as mídias sociais (Gallo/Getty)

Think tanks, universidades, associações acadêmicas e ONGs todas pulam no trem das Tecnologias da Informação e da Comunicação (TICs), com seus slogans liberais sobre inclusão, mudança pacífica e altos princípios.

Há quem diga, até, que as TICs nos levariam “para além da revolução”, transformando a própria natureza da política e da governança. Desnecessário dizer que é claro que toda e qualquer transformação na tecnologia das comunicações sempre exige e merece análise atenta. Mas é preciso perguntar: por que tanto barulho e o que está sendo obscurecido por trás do barulho?

Converter o Levante Árabe em discussão sobre as TICs é movimento político imensamente útil ao ocidente. Para começar, são obscurecidas todas as conversas e discussões que não se fazem, enquanto todos esses acadêmicos e centros de pesquisa discutem as maravilhas da internet.

Em primeiro lugar e acima de tudo, está a responsabilidade central das potências ocidentais, não só por manter no poder regimes repressivos, mas, em muitos casos, por ter imposto aqueles regimes no poder. Há quantas décadas as potências ocidentais garantem assistência política e militar direta a regimes que prendem, torturam e matam o próprio povo, em todo o mundo árabe, e além dele?

O serviço secreto britânico já trabalhava em íntima associação com os serviços secretos da Líbia, até o momento em que a Royal Air Force começou a bombardear a Líbia.

Discussões desse tipo rapidamente levam a considerar a responsabilidade política e legal de autoridades ocidentais. Podem nos levar “além” das questões sobre reparação financeira e a profunda responsabilidade do ocidente pela riqueza roubada do mundo não europeu. Aqueles regimes repressivos foram apoiados, precisamente, para roubar aquela riqueza.

Vê-se facilmente por que essa conversa sobre as TICs é mais admissível para ouvidos ocidentais, sobretudo para ouvidos dos doadores públicos e privados que financiam grande parte da pesquisa que se faz nas universidades e think tanks.

Encobrir a responsabilidade do ocidente é só o começo. A conversa incansável sobre “mídias sociais” e TICs vai muito mais longe. Ela ajuda o ocidente a apropriar-se, como se fosse agente indispensável – por seus produtos e tecnologias – da revolução. Tecnologias e ideias políticas ocidentais “libertaram” os árabes!

O fato elementar é que a Primavera Árabe surgiu quando gente comum arriscou a própria vida – e essa é a primeira ideia que some, afastada para trás da cortina. A ação dessas pessoas é apagada pelo barulho que se faz sobre as TICs. E, com a ação, apaga-se também a participação política – também apresentada como se fosse coisa “ocidental”.

E como é que pessoas comuns fazem revoluções – revoluções que sempre fizeram, em todo o mundo, há séculos, desde muito antes de haver telefones celulares?

Para começar, é preciso considerar para quê as pessoas usam as TICs: para organizar reuniões e manifestações. Como qualquer sindicalista experiente sabe, as pessoas são mais fortes quando estão juntas, em grandes números, quando se sentem juntas e próximas.

Cada revolta da Primavera Árabe e cada revolução popular que o mundo conheceu até hoje sempre foram atos do poder do povo, em sentido muito literal. Muita gente reúne-se como um só corpo, nas manifestações de rua, grandes ou pequenas.

Só quando muita gente se reúne e sente o próprio poder, os muitos podem contemplar com alguma esperança de sucesso os sempre muito evidentes altos custos da insurreição.

Essas assembleias de muitos fazem valer algumas das mais antigas e mais básicas formas da sociabilidade humana. Reunidas nas ruas, nas praças, em grandes números, as pessoas cantam, gritam palavras-de-ordem e dançam. Os corpos estão próximos, tocam-se e “falam” como um só corpo. Assim os muitos convencem-se de que podem fazer qualquer coisa, inclusive lançar-se, eles mesmos, contra as baionetas das ditaduras. Podem tudo, desde que sejam muitos e mantenham-se juntos, em multidão.

Esses não são velhos rituais preservados só em tribos primitivas. São parte da habilidade humana para formar grupos, da capacidade para diluir a individualidade, a identidade individual, numa maior (des)identidade coletiva. Os exércitos servem-se desses rituais, na forma de exercícios de formação, para criar o esprit de corps. Equipes esportivas e as grandes torcidas, também sabem usar a seu favor essas habilidades humanas. Até empresas servem-se disso, para inspirar os trabalhadores. E essas competências humanas são essenciais em qualquer ação política coletiva, de qualquer tipo.

Uma vez formados, esses grupos coletivos exibem, todos, uma mesma característica: se um é morto, a força vital do morto passa a pulsar nos sobreviventes, unindo-os cada vez mais, aumentando-lhes o poder, a coesão, a unidade na multiplicidade. Quem já tenha participado de cerimônia funeral, num desses grandes coletivos, conhece essas forças, que os nativos australianos chamavam de mana.

A morte de um, dois, de dez, de cem dos seus, pode dar mais força ao coletivo. Esses, sim, são os rituais – as armas rituais – sem as quais não se faz uma revolução.

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