quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Nossa Senhora Aparecida do Brasil



Publicado em 13/10/2011 por Urariano Motta

Recife (PE) - Nesse 12 de outubro de 2011, o país comemorou o dia de Nossa Senhora Aparecida. Dessa vez, multidões de fiéis se dirigiram às igrejas em ato de fé e reverência. Mas não faz muito, ou mais precisamente há nove anos, no Brasil houve muitas outras santas aparecidas. O que relato a seguir é da história, comprovada em qualquer pesquisa de jornais e revistas. 

Lembro que em 2002 as nossas senhoras apareciam em vidros das janelas das casas, nas janelas dos hospitais e das igrejas. Elas não falavam, não se moviam, não incandesciam nem brilhavam. Apenas se insinuavam, discretas, em véus azuis nos santos rostos. Ainda que discretíssimas, atraíam até cem mil pessoas por dia de aparição. Dir-se-ia, não fossem Nossas Senhoras santas, que guardavam uma discrição ambígua de casais que se amam à meia-luz, meio ocultos pela transparência de vidros de janelas. Embora a semelhança, se semelhança há, morra aí. Pois enquanto os casais atrairiam os olhos pela transgressão do que se devia exercer na intimidade, as santas chamavam pelo milagre que era a aparição, em matéria concreta, do que jamais vimos. Elas atraíam como um beijo da Providência sobre as dores do povo.

As santas apareceram em todo o Brasil no mês de julho de 2002, exatamente na mesma época em que os jornais punham em manchete: “O País Treme”. E isso queria dizer que o dólar havia quebrado a barreira de 3 reais, que as bolsas despencavam, que o chamado risco-país, a desconfiança do mercado internacional em relação ao Brasil, aumentava. A Argentina vivia uma onda de saques, o Uruguai seguia-lhe o caminho, e não havia por que não esperar que o Brasil fosse o próximo, imediato, caindo como cai e desaba um gigante: num desastre, num baque colossal. Então as santas vieram. Sem aviso, sem alarde, calmas, suaves, azuis. Respeitosamente, maravilhosamente começaram a ser vistas, entrevistas, de perfil, nos foscos dos vidros que faziam adivinhar os seus rostos. De que valiam as opiniões de físicos e químicos, que sempre existiram, e por isso apareceram, que valor possuíam juízos de especialistas em vidro, que, embora desconhecidos, existem, e por isso também apareceram? Para quê ensinamentos de transformações de minerais, se o vidro, nessa transformação, guardava e gostava de guardar a paz e a serenidade do azul? E se essas transformações não são nenhuma novidade, por que somente em julho elas se fizeram da cor e do perfil da Nossa Senhora Virgem Maria?

No entanto, já na campanha eleitoral daquele ano as santas sumiram. Ou melhor, fizeram o que parecia ser um breve intervalo, porque outros valores se levantaram na luta eleitoral. Foi o período encarniçado de debates, de calúnias e de promessas transplantadas do céu para a terra. E de tal modo foram as esperanças, que as nossas senhoras pairaram invisíveis, em silêncio, durante todo o período eleitoral, sobre as cabeças do povo brasileiro. Depois, todos sabem, Lula venceu e tomou posse em primeiro de janeiro de 2003. E as nossas senhoras, que apareciam em janelas e vidros do Brasil, se recolheram aos nichos e altares mais apropriados das igrejas.

Neste 2011, a fé e religiosidade do povo continuam ainda mais fortes e sólidas. Mas neste ano, as reportagens na televisão mostram devotas entre lágrimas, em sincero agradecimento a Nossa Senhora Aparecida, porque a santa lhes concedeu a dádiva de uma casa própria. E outras graças vêm em depoimentos públicos:

“Padre, gostaria de compartilhar no dia de Nossa Senhora Aparecida a graça alcançada através dela. Meu sonho sempre foi ser Psicóloga, meus pais não podiam pagar a universidade e em minha cidade só havia este curso em faculdades particulares. Foi quando descobri o Programa do Governo que financia a graduação para pessoas que não podem pagar. E com a Graça de Deus e intercessão de Nossa Senhora Aparecida, levarei meu jaleco para Aparecida do Norte no ano que vem, pois já estou no 4º ano de Psicologia. Obrigada a Deus e a Nossa Senhora Aparecida pela Graça recebida”. Em dúvida, leiam no “Testemunho da Graça Alcançada”.

De empregos conseguidos a compra de carro, de motocicleta, de casa para morar a curso superior, foram muitas graças. Nos jornais de ontem a principal discussão sobre a santa era:

“Branca ou negra? Festa de Nossa Senhora Aparecida, Padroeira do Brasil, traz de volta debate sobre sua cor”.

Que diferença para julho de 2002, quando todas nossas senhoras apareciam em cor azul.

*Urariano Motta é natural de Água Fria, subúrbio da zona norte do Recife. Escritor e jornalista, publicou contos em Movimento, Opinião, Escrita, Ficção e outros periódicos de oposição à ditadura. Atualmente, é colunista do Direto da Redação e colaborador do Observatório da Imprensa. As revistas Carta Capital, Fórum e Continente também já veicularam seus textos. Autor de Soledad no Recife (Boitempo, 2009) sobre a passagem da militante paraguaia Soledad Barret pelo Recife, em 1973, e Os corações futuristas (Recife, Bagaço, 1997).

Enviado por Direto da Redação

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