19/10/2011, M K Bhadrakumar, Asia Times Online
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Como se diz, o sucesso tem muitos padrinhos, mas o fracasso é órfão. A troca histórica de prisioneiros entre Israel e o Hamás comprova o velho adágio. Egito, Qatar, Turquia e Alemanha – todos tiveram papel importante. Mas, no fim, o sucesso ficou com Israel, que bem merece reclamá-lo para si. Por outro lado, o jogo está na metade e ninguém, por hora, pode declarar-se vencedor.
Parentes carregam nos braços os presos políticos, alguns com mais de 20 anos de prisão |
O Hamás, na 3ª-feira, entregou a Israel o soldado Gilad Shalit, 25 anos, e obteve a liberdade para mais de mil prisioneiros palestinos, alguns deles condenados por crimes de morte.
Para Israel, que apostou muito no resgate de um único cidadão merece louvor e Israel insistiu, com chantagem e ameaças e gritaria, para que o Hamás libertasse Shalit, capturado há cinco anos. Isso é bom e os israelenses têm bem o que festejar. O assunto está em todas as manchetes de todos os jornais em Israel. Momentos assim dão significado à existência de qualquer estado, e valem muito, sobretudo, para estado sitiado.
Mas, à parte a sensação de júbilo, Israel ganhou também em termos mais substantivos. A política do Oriente Médio muda de fase, com a entrega de Shalit. Emergiram pelo menos seis novas grandes questões, o que caracteriza extraordinário evento geopolítico, cada uma delas significativa por si só e ainda mais significativa em combinação com as demais.
1. Em primeiro lugar, o Egito está sendo amplamente aplaudido pelo papel que teve nas negociações da troca e, assim, está hoje no centro da política regional, de volta à tradicional liderança que sempre teve na política árabe. Surgirão daí desdobramentos imensamente importantes em termos das relações do Egito com EUA, Israel e seus vizinhos.
Simultaneamente, o resultado da atual transição política no Egito transformou-se e tornou-se extraordinariamente importante para toda a região e fora dela. No processo, o marechal-de-campo Mohammed Hussein Tantawi pode ter consolidado sua base de poder e aumentado sua importância aos olhos das potências ocidentais, especialmente os EUA. O papel do Egito, na troca, chama a atenção para a evidência de que os EUA tiveram importante papel por trás das cortinas no “diálogo” com Tantawi sobre as intrincadas minúcias da troca e o encorajaram a prosseguir.
2. Em segundo lugar, a Turquia também ganha uma fatia do bolo – embora menor – e dá um passo (pequeno) na direção de cobrar para si o perdido legado otomano, como potência a considerar-se, no Oriente Médio. Segundo os jornais, a Turquia teve papel ativo nas consultas entre Israel e o Hamás, dentre outros.
No processo, a Turquia pode ter dado o primeiro passo na direção de descongelar as relações com Israel. Por outro lado, mostrou que tem influência também junto ao Hamás – o que a pode pôr em posição de contribuir, pelo menos um pouco, num futuro acordo para o Oriente Médio.
3. Em terceiro lugar, Qatar e Síria também tiveram atuação importante para que a troca se consumasse. Esses dois países receberão a maior parte dos prisioneiros palestinos que estão saindo das prisões israelenses. O Qatar segue, triunfante, a marcha na direção de fazer aumentar o seu peso na política regional.
Já na Líbia, o Qatar pareceu ter alcançado status de fazedor de reis; agora, já aspira a direitos de peso pesado no primeiro círculo da política do Oriente Médio, completamente tomado pelo problema das relações entre palestinos e Israel. Sem dúvida, o Qatar emergiu como um dos atores mais valiosos para as potências ocidentais no tabuleiro do Oriente Médio. É jogador de características únicas: é peão e torre, ao mesmo tempo.
Do mesmo modo, Damasco também comprovou que sempre se pode contar com ela como fator de estabilidade regional. O líder do Hamás, Khalid Meshaal, vive em Damasco. A Síria, com certeza sabia das idas e vindas e não só contribuiu para o pragmatismo do Hamás como, possivelmente, o encorajou. Israel não deixará de ver o papel da Síria na troca de prisioneiros, aspecto que tem sido deixado de lado, no projeto de “mudança de regime” em Damasco.
4. Em quarto lugar, salta aos olhos a evidência de que nem EUA nem Arábia Saudita nem Irã aparecem entre os protagonistas da troca de prisioneiros. E eram vistos como atores chaves na política regional. O fato de os países da região terem organizado iniciativa de tal magnitude, com os EUA, no máximo, trabalhando nas sombras, traz, só ele, importante mensagem.
Arábia Saudita e Irã só puderam, de fato, dar os parabéns aos protagonistas palestinos, e depois de a troca estar feita. Não há notícia de que tenham tido participação na coreografia do evento; a contribuição desses dois países limitou-se à concordância com os termos já definidos da troca.
5. Em quinto lugar, o Hamás ganhou incomensuravelmente, em estatura. Negociou diretamente com grande número de países, especialmente com a Alemanha, o que faz crescer muito a sua imagem internacional[1] e lhe dá ainda maior legitimidade entre os palestinos. O mais crucialmente significativo é que o Hamás negociou e acertou a troca com o seu pior inimigo.
Já é mais que hora de o Hamás ocupar o lugar que lhe cabe como voz legítima dos palestinos ao lado do Fatah – se não mais influente que o Fatah. Na prática, o Hamás impôs-se como ator forte e persistente, em qualquer acordo para resolver o problema palestino. A popularidade que o Hamás havia perdido, está hoje mais do que recomposta, e crescendo.
6. Em sexto e último lugar, Israel venceu, mas de cabeça baixa. Conseguiu “reengajar” a vizinhança árabe, especialmente o Egito. Do outro lado da fronteira, Israel está quebrando o agudo isolamento regional em que ficou, desde o início da Primavera Árabe. As coisas devem melhorar, doravante, com Ancara, onde já há um sentimento nascente de que o primeiro-ministro turco Recep Tayyip Erdogan talvez tenha levado um pouco longe demais a “inimizade” com Israel, se se consideram os interesses turcos de longo prazo.
Mas, para Israel, o mais precioso ganho é estar de volta aos negócios com o Egito, o único vizinho árabe sem o qual Israel simplesmente não vive. As relações entre Egito e Israel estavam deteriorando muito rapidamente e o que se dizia era que as coisas poderiam piorar – talvez, piorar muito – antes de poderem começar a melhorar. Pelo menos, do ponto de vista de Israel, o desastre em andamento foi contido, e Israel respirará aliviada, vendo o Egito retomar seu papel tradicional, no relacionamento entre os dois países.
Também aqui, é só um começo. O Egito mostrou que tem vontade e capacidade para desempenhar papel de liderança, do qual abdicou, há três décadas, depois do acordo de paz de Camp David. O Egito se sentirá induzido a assumir maiores responsabilidades na segurança e na estabilidade regionais.
Israel com certeza estimulará essas tendências. Egito e Alemanha foram os dois únicos países aos quais o presidente Shimon Peres e o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu fizeram referência, elogiados por terem possibilitado que a troca fosse feita sem incidentes. Antes, Israel já apresentara desculpas formais ao Egito, pela morte de soldados da segurança egípcia no Sinai – desculpas que os israelenses negaram obstinadamente à Turquia, no caso dos militantes mortos na abordagem da Flotilha Free Freedom, que viajava para Gaza no ano passado.
O mais importante é que a troca suspende momentaneamente o continuado declínio da imagem de Israel no mundo nos últimos meses. Ao que parece, os levantes no Oriente Médio deixaram Israel sem saber o que fazer para prosseguir. Era visível que a bússola sionista não funcionava bem.
A troca, na qual Israel concordou em libertar 1.027 palestinos por um único israelense é um modo de reparar a imagem manchada de Israel. Sim, Netanyahu agiu sob a imensa pressão do isolamento em que Israel estava na comunidade mundial. Mas também mostrou que pode vir a ser parceiro sério em futuras negociações.
Seja como for, a euforia pela volta de Shalit não durará para sempre. As duras realidades começarão a aparecer. Há várias outras importantes decisões que Netanyahu terá de tomar imediatamente, se quiser que os atuais bons resultados se mantenham.
Uma dessas decisões pode ser levantar imediatamente o bloqueio contra Gaza. De positivo, hoje, que as tensões diminuíram. Mas voltarão a subir, se nada mais for feito.
Nota dos tradutores
[1] Prova disso é que até o Jornal Nacional, da Rede Globo – que é o pior noticiário do mundo! – mostrou Khaled Meshall, dia 11/10, como se vê em: Israel e grupo palestino Hamas anunciam acordo para libertar soldado sequestrado. Mas as imagens hoje acessíveis por internet, no endereço acima não são as mesmas que foram ao ar. Nas imagens que foram ao ar, Khaled Meshall aparece numa conferência de imprensa, cercado por um oceano de microfones e câmeras de todo o mundo. Aparentemente, os jornalistas que editam o Jornal Nacional entenderam que aquelas imagens mostravam algum “excesso de realidade”, que a Rede Globo censurou imediatamente.
Embaixador *MK Bhadrakumar foi diplomata de carreira do Serviço Exterior da Índia. Prestou serviços na União Soviética, Coreia do Sul, Sri Lanka, Alemanha, Afeganistão, Paquistão, Uzbequistão e Turquia. É especialista em questões do Afeganistão e Paquistão e escreve sobre temas de energia e segurança para várias publicações, dentre as quais The Hindu e Asia Online. É o filho mais velho de MK Kumaran (1915–1994), famoso escritor, jornalista, tradutor e militante de Kerala.
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