terça-feira, 18 de outubro de 2011

Egito: Wael Aly, símbolo da revolução confiscada

Rabha Attaf


15/10/2011, *Rabha Attaf, Fausto Giudice - MediaPart
Publicado em Rebelión – com tradução de Caty R.
Enviado pelo pessoal da Vila Vudu e Rede Tlaxcala




Fausto Giudice
Recordem. Em janeiro passado, um vento de liberdade, vindo da Tunísia, soprou sobre o Egito. Dezenas de milhares de egípcios tomaram a Praça Tahrir no Cairo, rapidamente seguidos por centenas de milhares de pessoas, para formar uma multidão de mais de um milhão de manifestantes. Como onda de poeira, a revolta popular tomou as principais cidades do país, de Alexandria a Assuã, passando por Suez e pelas cidades do Alto Egito, como Assiut e Al Minia. A palavra de ordem “chaab yourid askat el nidham” (O povo quer o fim do regime) sobrepôs-se a todas as demais!

Rapidamente, o exército tomou posição nas ruas do Cairo, interpondo-se entre os manifestantes da Praça Tahrir e as hordas de contrarrevolucionários agenciadas pelo regime, sobretudo durante as jornadas de enfrentamento do início de fevereiro que cobraram o preço da vida de muitos “mártires da revolução” que tombaram em combate. Correu sangue, marcando um ponto sem volta, que precipitou a queda do “raïs el makhlou” Moubarak. Dia 11 de fevereiro, à noite, o Conselho Superior das Forças Armadas [ing. SCAF] anunciava a destituição do ditador, desencadeando júbilo popular inimaginável. 


Os egípcios viviam como se um sonho se tivesse realizado. Tudo seria possível: o exército estava com o povo e recusara-se a atirar contra a multidão; um novo governo fora nomeado e a coalizão de revolucionários convidada a discutir com Essam Sharaf, primeiro-ministro, para construírem os fundamentos do novo Egito, um Egito “democrático”, diziam eles.

Mas os acontecimentos se precipitaram. As reuniões de cúpula pariram um rato: nada de nova constituição, só emendas precipitadamente apresentadas a um referendum popular, no dia 19 de março. Os dados estavam viciados, porque a abertura controlada do campo político só permitiu, de fato, que a principal força política do país, a Fraternidade Muçulmana, novamente se organizasse em partido (Partido pela Justiça e Liberdade) e confiscasse o processo eleitoral. E, assim, que sufocassem as aspirações do polo revolucionário, mediante o controle da sociedade que eles enganam há décadas, por diferentes embustes culturais e caritativos.

Mesmo assim, apesar do desencantamento gerado pela vitória do “Sim” favorável a um arremedo de reforma constitucional e ao apressamento do calendário eleitoral, a contestação popular não arrefeceu. Os irredutíveis da Praça Tahrir continuaram lá, a qualquer preço, todas as 6as-feiras dessa primavera árabe, a repetir suas legítimas reivindicações: justiça para as famílias dos mártires, nova constituição e novo calendário eleitoral, com tempo suficiente para que os partidos democratas se organizassem livremente. E, finalmente, novo governo civil, com a volta dos militares à caserna!

Houve uma reivindicação a mais, um excesso, do ponto de vista do SCAF, que se autodesignara “garantidor da revolução”. Inaceitável, porque no Egito, como em todas as ditaduras comandadas com mão de ferro por militares, o exército sempre foi base de defesa do regime no poder!

Rapidamente os ocupantes da Praça Tahrir compreenderam. Em seguida, dia 9 de março, o exército tentou pela primeira vez, ajudado por agentes contrarrevolucionários rapidamente batizados de “baltaguiya” (assaltantes), esvaziar a praça. A operação deixou dezenas de feridos, dezenas de manifestantes presos e imediatamente levados a julgamento pelo tribunal militar! Depois, na noite de 9 de abril, um dia depois da manifestação monstro de 8 de abril, outra vez, mais de um milhão de manifestantes invadiram a praça Tahrir. Essa jornada, durante a qual o presidente deposto Mubarak foi simbolicamente julgado por um tribunal popular, deveria ser, na opinião do SCAF, a última e marcar o fim dos protestos populares. 

Mas um acontecimento inesperado perturbou os planos ardilosamente construídos, com a cumplicidade da Fraternidade Muçulmana que assumiram o controle da praça. À multidão, somara-se um batalhão de militares vindos de Suez e, logo depois do meio dia, os oficiais haviam sido vaiados quando subiram à tribuna, o que desencadeou euforia na multidão. A linha vermelha havia sido ultrapassada, e a resposta não tardou. Dessa vez, o exército atacou brutalmente.

Na noite de 8 para 9 de abril, pouco depois das 3h da madrugada, a polícia militar e as forças especiais chegaram à praça com ordem de evacuação geral. Cercaram centenas de manifestantes e os aterrorizaram, com rajadas de metralhadora para o ar e golpes de cassetetes elétricos. A Praça Tahrir converteu-se rapidamente em palco de cenas de violência urbana de rara intensidade: tiros de advertência, veículos incendiados, pedras atiradas contra os militares e, até, um “alto oficial” agredido pela multidão enfurecida. Objetivo principal: cercar aquele grupo de militares que, tomados pela embriaguez das massas, muito rapidamente se apresentaram como “livres”. Saldo dessa noite terrível: 19 civis e dois “militares livres” mortos, dezenas de feridos... Tudo foi rapidamente camuflado. Pela manhã, a praça estava aberta à circulação, completamente limpa!
Wael Aly
Para mascarar seu crime – mas também para aterrorizar os manifestantes – o SCAF emitiu mandado de prisão contra Wael Aly Ahmed Aly, ativista pacifista da praça Tahrir, mais conhecido pelo nome de Wael Abouleil. Apresentado como contrarrevolucionário a soldo de Ibrahim Kamel, empresário ligado ao clã Mubarak, Wael foi acusado de induzir a população à revolta contra o exército e de, por essa ação, ter provocado a morte de civis na famosa noite de 9 de abril. Acusação forjada em todos os detalhes, sem qualquer fundamento ou prova.

Na verdade, Wael Abouleil é exemplar do novo revolucionário do mundo árabe. Filho de classe média ameaçada pelo desemprego e pela miséria, com diploma universitário, agente de turismo formado, Wael Abouleil é independente e não tem ambições políticas. É homem de caráter jovial e de infinita paciência, traços que rapidamente conquistaram a simpatia de muitos jovens das classes populares e sem recursos. É democrata horizontalista, que sabe escutar e responder às demandas dos mais pobres e os incita a pensar para dar mais pleno sentido às suas ações. É homem também de alta capacidade de organização logística, que desenvolveu enquanto trabalhou no setor turístico.

Não surpreende portanto que se tenha convertido em alvo preferencial do SCAF, decidido a retomar, por todos os meios, o controle da rua egípcia. Preso dia 13 de abril, logo depois de uma conferência de imprensa na qual anunciou que se rendia, Wael foi julgado num primeiro julgamento e absolvido, dia 11 de maio, pelo tribunal militar. 

Mas seu calvário continua: dois outros acusados no mesmo processo foram libertados, mas Wael continuou preso e, logo depois, foi acusado em outro processo criminal, construído do começo ao fim, com a ajuda do depoimento de duas testemunhas falsas confirmados pela... polícia política! Um complô do começo ao fim, armado com requintes dignos dos processos da época de Stálin, destinado a matar ainda no ovo qualquer futura contestação contra o regime militar

O julgamento de Wael Abouleil começará dia 24 de outubro próximo, na Corte Criminal do Cairo. Há risco real de ser condenado a longa pena de prisão, ou a pena ainda mais drástica, porque o tribunal será presidido pelo juiz Adel Esam Gom’a, sistematicamente designado para julgar processos de conteúdo político. Gom’a tem fama de “matador”, o que não permite que se espere qualquer solução justa para o processo.

Nesse contexto, a defesa de Wael é questão vitalmente importante para todos os muitos prisioneiros políticos que enchem as cadeias do Egito (atualmente, são 12 mil!). Seu caso deve servir de exemplo para todos que defendem os direitos humanos e as liberdades democráticas no Egito, e também em todo o mundo árabe, onde milhares de outros Wael levantaram-se, na luta para que outro mundo seja possível. Só uma onda de solidariedade transnacional poderá obrigar os carrascos a absolverem Wael e o deixarem partir em liberdade.

*Rabha Attaf e Fausto Giudice são jornalistas independentes francófonos. Rabha foi enviada especial da revista francesa Les Inrockuptibles ao Egito. Fausto é animador da Rede Tlaxcala – Rede Internacional de Tradutores pela Diversidade Linguística.

Para contatos e para saber como apoiar a defesa de Wael : egypteaucoeur@gmail.com

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