Jeremy Salt |
17/10/2011, Jeremy Salt, Counterpunch
Traduzido pelo Coletivo da Vila Vudu
Jeremy Salt é professor associado de história e política do Oriente Médio, na Universidade Bilkent, em Ankara, Turquia.
23 razões pelas quais devemos ver com desconfiança o ponto de vista ocidental sobre a insurreição na Síria.
A insurreição afunda-se em guerra civil na Síria, e é preciso pôr um freio na propaganda que escorre da imprensa-empresa ocidental, aceita sem qualquer crítica por muita gente que tem o dever de saber mais sobre o que diz. Aqui, um quadro geral de informações, a partir das quais se pode começar a discutir o que realmente está acontecendo nesse país criticamente importante do Oriente Médio.
2. Não há dúvidas de que o núcleo inicial de manifestantes que se reuniram na Síria quer uma transição pacífica para forma democrática de governo. Tampouco pode haver qualquer dúvida de que grupos armados operando no subsolo das manifestações públicas não têm nenhum interesse em qualquer tipo de reforma. Querem, só, destruir o governo.
3. Houve manifestações muito grandes de apoio ao governo. Detesta-se tanto a violência das gangues armadas quanto qualquer interferência externa e a exploração da situação, por governos de fora e pela imprensa. Aos olhos de muitos sírios, a Síria é hoje, outra vez, alvo de uma conspiração internacional.
4. Por mais que sejam verdadeiras as acusações feitas contra as forças de segurança, as gangues armadas mataram centenas de policiais, soldados e civis, num total que se aproxima, agora, de 1.000 mortes. Os civis mortos incluem professores universitários, médicos e até, recentemente, o filho do Grande Mufti da república. As gangues armadas massacraram, emboscaram, assassinaram, atacaram prédios do governo e sabotaram linhas de trens.
5. O presidente sírio Bashar Al-Assad tem base forte e alta popularidade pessoal. Embora seja parte do sistema, erra quem o definir como ditador. Na Síria, o verdadeiro ditador é o próprio sistema. O poder mais profundamente enraizado na Síria – lá entrincheirado há 50 anos – é o establishment militar e de inteligência e, em menor grau, a estrutura de governo do Partido Baath. Essas são as forças que realmente resistem à mudança. As manifestações foram a oportunidade, para Al-Assad, de dar seu recado, de que o sistema tem de mudar – o que ele fez.
6. Confrontado às manifestações gigantes, esse ano, o governo afinal apresentou um programa de reformas. Essa evidência é descartada, sem qualquer consideração, pela oposição. Não houve sequer alguma tentativa de testar a boa fé do governo.
8. Os grupos armados são bem armados e bem organizados. Grandes quantidades de armas têm sido contrabandeadas e chegam à Síria, por mar, vindas do Líbano e da Turquia: armas automáticas, metralhadoras, Kalashnikovs, lança-granadas, granadas de fabricação israelense e inúmeros outros tipos de explosivos. Não se sabe exatamente quem vende essas armas, mas alguém as vende e alguém paga por elas. Informações obtidas de membros das gangues armadas capturados apontam na direção do Movimento Futuro, do primeiro-ministro libanês Saad Al-Hariri. Hariri é conhecido homem dos EUA e da Arábia Saudita, com influência que avança bem além das fronteiras do Líbano.
10. As gangues armadas recebem forte apoio externo, além dos já conhecidos ou indicados. Um ex-presidente e ministro das Relações Exteriores da Síria, hoje exilado, Abdel-Halim Khaddam, que vive em Paris, há anos faz campanha para derrubar o governo de Al-Assad. Recebe recursos simultaneamente da União Europeia e dos EUA. Outros ativistas exilados, dentre os quais Burhan Ghalioun, apoiado pelo Qatar como líder do “Conselho Nacional”, tem base em Istanbul. Ambos, Ghalioun e Khaddam, vivem em Paris; e ambos fazem ativo lobby contra o governo de Al-Assad na Europa e em Washington.
Como Mohamed Riyad Al-Shaqfa, líder da Fraternidade Muçulmana na Síria, Ghalioun é altamente receptivo a “intervenção humanitária” do exterior à Síria, no modelo líbio (outros são contrários a qualquer intervenção). Promover os exilados como governo alternativo é tática que faz lembrar o modo como os EUA usaram os exilados iraquianos (o chamado “Congresso Nacional Iraquiano”) antes da invasão do Iraque.
12. Na Síria, a mesma imprensa-empresa seguiu o mesmo padrão de mal noticiar e desinformar. Ignorou ou reduziu todas as evidências dos crimes praticados pelas gangues armadas. Induziu o público a não acreditar no que o governo sírio diz e a acreditar cegamente no que dizem os “rebeldes”, que falam, muitas vezes, por intermédio de organizações de direitos humanos com sede na Europa ou nos EUA. Noticiaram-se como fatos inumeráveis mentiras, como se noticiaram sobre a Líbia e como, antes da invasão, se noticiaram sobre o Iraque. Algumas dessas mentiras, pelo menos, já foram desmascaradas.
Pessoas cuja morte foi noticiada, como assassinadas por forças de segurança, reapareceram vivas. Os irmãos de Zainab Al-Hosni disseram que ela havia sido seqüestrada por forças de segurança, assassinada e esquartejada. Esse trágico relato, repetido pelos canais de TV Al-Jazeera e Al-Arabiya dentre vários outros, sempre foi absolutamente falso. A mulher continua viva até hoje, enquanto a propaganda diz que não é ela, a viva, mas uma “dublê”. Al-Jazeera, o Guardian britânico e a BBC têm-se destacado pelo apoio cego a qualquer um que apareça para desacreditar o governo sírio. E as principais empresas de imprensa e comunicação nos EUA seguem o mesmo padrão. Al-Jazeera, em particular, que se destacou ao cobrir a revolução egípcia, perdeu toda a credibilidade como canal de notícias independente no mundo árabe.
13. No empenho para destruir o governo sírio, a Fraternidade Muçulmana tem objetivos em comum com EUA, Israel e a Arábia Saudita, cuja paranóia contra o islã xiita chegou ao auge no levante do Bahrain. WikiLeaks revelou o quanto os EUA estavam impacientes para atacar o Irã. Alvo substituto é destruir o relacionamento estratégico que une Irã, Síria e o grupo libanês xiita Hizbullah. EUA e os sauditas querem destruir o regime Baathista dos alawitas em Damasco por razões apenas ligeiramente diferentes, mas o que conta é que querem destruí-lo.
14. Os EUA estão fazendo o máximo que podem para prender a Síria nas cordas. Estão oferecendo apoio financeiro a políticos exilados da oposição. Já tentaram (e falharam, pelo menos até aqui, graça à oposição de russos e chineses) introduzir um vasto programa de sanções, usando para isso o Conselho de Segurança da ONU. Não há dúvidas de que voltarão a tentar novamente e, dependendo do rumo que a situação tome, podem tentar, com o apoio de britânicos e franceses, impor Resolução para que se crie uma zona aérea de exclusão que abriria caminho para ataque militar.
A situação é fluida e não há dúvida de que se preparam os mais diferentes planos de contingência. A Casa Branca e o Departamento de Estado fazem, dia sim, dia não, declarações sempre mais agressivas. Em ato de provocação aberta contra o governo sírio, o embaixador dos EUA, acompanhado do embaixador francês, viajou a Hama, antes das orações da 6ª-feira. Contra tudo que já se viu do que já fizeram no passado em termos de interferência em países do Oriente Médio, é absolutamente inconcebível que EUA e Israel, com França e Grã-Bretanha, não estejam envolvidos no levante sírio, muito mais profundamente do que já é sabido.
15. Ao mesmo tempo em que dão atenção máxima à violência do regime sírio, os governos de EUA e de países europeus (especialmente a Grã-Bretanha) têm ignorado completamente a violência dirigida contra aquele regime. E a violência desses governos, é claro, contra Líbia, Iraque, Afeganistão e outros países, de tão vasta, nem cabe nesse quadro. A Turquia uniu-se a essa campanha contra o governo da Síria com grande empenho, e já foi muito mais longe do que nunca antes, contra o regime sírio.
No espaço de poucos meses, a política regional turca de “nenhum problema” com os vizinhos regionais, mudou, da forma mais incoerente. A Turquia já apoiou até o ataque da OTAN à Líbia, depois de, inicialmente, ter-se mantido à parte. Antagonizou o Irã, por sua política de apoio à Síria e ao aceitar, contra forte oposição doméstica, a instalação, em território turco, de uma base norte americana de radares e mísseis, claramente direcionada contra o Irã. Os EUA dizem que os dados recolhidos nessa base serão partilhados com Israel, que se recusa a desculpar-se pelo ataque contra o barco turco Mavi Marmara, questão que levou à beira de grave crise as relações entre Israel e Turquia. Assim, depois da política de “nenhum problema”, a Turquia abraça hoje uma política cheia de problemas com Israel, Síria e Irã simultaneamente.
16. Enquanto alguns membros da oposição síria falaram contra qualquer intervenção estrangeira, o “Exército Sírio Livre” disse que seu objetivo declarado é implantar uma zona aérea de exclusão sobre o norte da Síria. Zona aérea de exclusão não se implanta sem força, e já se viu a que resultado levou na Líbia – destruição massiva de infraestrutura, matança de milhares de civis e portas abertas a um novo período de dominação ocidental.
17.Se o governo sírio cair, todos os baathistas e todos os alawitas serão caçados até o último sobrevivente. Em governo dominado pela Fraternidade Muçulmana, regredirá o status de todas as minorias e das mulheres.
18. Mediante à “Lei [norte-americana] da Transparência na Síria” e mediante as sanções já impostas pela União Europeia, os EUA tentam destruir a Síria há 20 anos. Destroçar qualquer unidade entre estados árabes unificados e criar linhas de separação etno-religiosas são objetivos de Israel há décadas. Onde vai Israel, os EUA naturalmente seguem. Os frutos dessa política podem ser vistos no Iraque, onde se criou estado que só é independente no nome para os curdos, e onde a constituição, escrita pelos EUA, separa o povo iraquiano em curdos, sunitas, xiitas e cristãos, destruindo o laço lógico do nacionalismo árabe. O Iraque nunca mais conheceu um momento de paz, desde que os britânicos entraram em Bagdá em 1917.
Na Síria, divisões etno-religiosas (árabes muçulmanos sunitas, curdos muçulmanos sunitas, druzos, alawitas e várias seitas cristãs) tornam o país vulnerável. É o mesmo plano para enfraquecer o país e promover a discórdia sectária com eventual desintegração como estado árabe unificado, que os franceses tentaram originalmente impedir que se formasse nos anos 1920s.
19. Destruir o governo baathista na Síria seria vitória estratégica de valor inestimável para EUA e Israel. O arco central do relacionamento estratégico entre Irã, Síria e o Hezbullah estaria destruído; o Hezbullah ficaria geograficamente isolado, com um governo muçulmano sunita hostil, ao pé da porta; e o Hezbullah e o Irã estariam mais expostos a ataque militar pelos EUA e Israel. Por acaso ou não, a “Primavera Árabe”, do modo como evoluiu na Síria, pôs nas mãos de EUA e Israel uma alavanca que pode levá-los a conseguir o que querem.
20. Um governo da Fraternidade Muçulmana no Egito ou na Síria não será necessariamente hostil aos interesses dos EUA. Desejoso de mostrar-se membro respeitável da comunidade internacional e outro bom exemplo de “islamismo moderado’, o mais provável é que um eventual governo egípcio dominado pela Fraternidade concorde com manter o acordo de paz com Israel, enquanto possa (quer dizer, até que outro ataque massivo de Israel contra Gaza ou contra o Líbano torne o tal acordo absolutamente insustentável).
21. Um governo da Fraternidade Muçulmana na Síria seria aliado da Arábia Saudita e hostil ao Irã, ao Hezbullah e aos xiitas do Iraque, sobretudo aos aliados do líder xiita Muqtada Al-Sadr. Falaria muito a favor da causa palestina e da libertação das Colinas de Golan, mas, na prática, suas políticas dificilmente seriam diferentes das do governo que a Fraternidade luta hoje para destruir.
22. O povo sírio tem todo o direito de exigir e ter democracia, mas desse modo e a esse preço? Mesmo hoje, o caminho a seguir é o fim da matança e o início de negociações para reformas, não violência e ameaças de dividir o país. Infelizmente, a violência, não qualquer acordo negociado, é o que muita gente deseja dentro da Síria, e muitos governos que assistem e esperam pela melhor oportunidade também querem mais violência. Nenhum sírio tem qualquer coisa a ganhar nesse quadro, pensem hoje o que pensarem.
A Síria está sendo arrastada para uma guerra civil sectária, talvez com intervenção estrangeira, e com certeza para o caos, em escala ainda maior do que hoje se vê. Não haverá rápida recuperação, se o estado entrar em colapso ou for destroçado. Como o Iraque, e provavelmente também como a Líbia, olhando a situação presente, a Síria mergulharia em um torvelinho de sangue que se poderia arrastar por muitos anos. Também como o Iraque, seria atirada para fora do ring, como estado incapaz de defender interesses árabes, o que significa, claro, que só seria capaz de defender interesses dos EUA e de Israel.
23. Assim, tudo considerado, que interesses esse tipo de resultado atenderia?
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